MP 867/18: Organizações e movimentos em defesa dos direitos territoriais e socioambientais pedem tratamento específico dos territórios coletivos pelo CAR

Idioma Portugués
País Brasil
- Foto tomada del sitio web La Tinta.

Na semana da Jornada nacional de lutas pela terra e reforma agrária e em memória ao massacre de Eldorado de Carajás, no dia 17 de abril de 1996, organizações e movimentos em defesa dos direitos territoriais e socioambientais  de povos e comunidades tradicionais e assentamentos de reforma agrária pedem à Comissão Mista da MP 867/18 tratamento específico dos territórios coletivos pelo CAR. 

A MP 867/18 tenta prorrogar o prazo do Programa de Recuperação Ambiental (PRA) por até dois anos, mantendo o prazo do Cadastro Ambiental Rural (CAR) que expirou em 31.12.2018. Com a alteração do prazo apenas do PRA, o governo e a bancada ruralista pretendem acessar os benefícios conferidos pelo CAR, sem exigir em contrapartida nenhuma recuperação ambiental dos imóveis rurais.

BENEFÍCIOS COM O CAR: Apenas com o CAR, a área tem acesso a diversos benefícios, dentre outros:

  • crédito agrícola, em qualquer modalidade, pelas instituições financeiras, sem exigir nenhum compromisso de regularidade ambiental;
  • continuidade das atividades de agricultura e pecuária nas APPs autodeclaradas como consolidadas até 22.07.2008 até a adesão ao PRA. A prorrogação do prazo de adesão do PRA permite que os imóveis deixem de recuperar as áreas de as APPs hídricas (matas ciliares ao redor de rios, lagos e lagoas, olhos d`água e nascentes e veredas), em verdadeira anistia aos desmatadores. Segundo dados do IMAFLORA  as APPs hídricas contam com déficit de 8 milhões de hectares, sendo 59% delas em grandes propriedades e 35% em médias.
  • Cômputo da APP na cálculo da Reserva Legal;
  • Aprovação do local declarado da Reserva legal, impedindo aplicação de multa;
  • Procedimentos especiais para pequena propriedade ou posse rural familiar ou até 4 módulos fiscais e terras indígenas e de povos e comunidades tradicionais, tituladas ou não. Dentre eles para plano de manejo em APP com licenciamento simplificado ou dispensa (art. 56 a 58); autorização do uso do fogo para agricultura de subsistência etc.

Pela regra anterior à MP, os imóveis com CAR, mas sem PRA até o prazo de 31.12.2018, perdem os benefícios da adesão ao programa dentro do prazo: a) a suspensão de penas e multas por infração até 22.07.2008, devendo ser executadas normalmente; b) os incentivos econômicos para a recuperação ambiental, como linhas de financiamento a juros menores e prazos maiores e isenção fiscal; c) recuperação das APPs hídricas a menor, devendo haver a recuperação das matas ciliares nos parâmetros do art. 4 da Lei.

Como o CAR já foi realizado pela maioria dos grandes e médios proprietários que resolveram seu acesso ao crédito e todos os outros benefícios, a pauta ruralista do momento é apenas a postergação do prazo para recomposição das APPs, o que vem com a MP 867/19. No entanto, se mantida a exigência do CAR obrigatório ou o prazo do CAR para todos os imóveis, a partir de 01.01.2019, o governo estará excluindo os territórios tradicionais e assentamentos de reforma agrária coletivos de todos os benefícios do Código Florestal.

CAR COLETIVO: O CAR individual vem sendo condição para o acesso a todas as políticas públicas no campo, desde o crédito agrícola, a emissão de guia de conformidade da produção  até para acesso a benefícios do INSS. A maioria das instituições vem negando o CAR coletivo, ou seja, a inscrição apenas do perímetro da área do assentamento ou território coletivo para acessa à essas políticas, o que vem pressionando pela inscrição de CAR individual sobre estas áreas coletivas.

De um universo de mais de 5 milhões de imóveis  rurais cadastros em mais de 543 milhões de hectares cadastros  [1 ], apenas 1.805 cadastros de imóveis rurais de Povos e Comunidades Tradicionais registrados no CAR, contando com aproximadamente 36.191 beneficiários e 27.046.087,24 hectares, conforme dados de 31 de dezembro de 2017 ( LINK – Nota Técnica nº 10/2018/gecaf/dcf/sfb 01/03/2018 do processo nº 02209.000411/2018-21).

SÓ PELO MANUAL DE CRÉDITO NÃO RESOLVE: Embora o Manual de Crédito Rural (art. 12-A LINK  [2]) tenha permitido o acesso ao crédito agrícola com a apresentação do CAR coletivo (inscrição do perímetro de toda a área coletiva) para povos e comunidades tradicionais, esta é uma solução provisória e parcial,  porque resolve o problema do crédito e apenas para este ano, dependendo das reedições do Manual de crédito, ano a ano. No caso dos assentamentos de reforma agrária a situação é ainda mais preocupante, já que a regra é a inscrição individual do lote, sendo a inscrição do perímetro do assentamento válida apenas até 30/06/2020.

MÓDULO CAR CNPCT: No caso dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, a manutenção do prazo do CAR é inconstitucional, já que o STF na julgamento das ADIs do Código Florestal em 28.02.2018 conferiu o mesmo tratamento aos territórios titulados e não titulados.  Deve assim, a União, Estados e Municípios conferir gratuidade de inscrição também às áreas não demarcadas e tituladas no CAR coletivo, com apoio técnico e jurídico, para que tenham acesso a todas as demais políticas e crédito. Também o Módulo CAR PCTs específico para as áreas coletivas dos povos e comunidades tradicionais, embora esteja disponível desde 2014,  entrou em funcionamento, conforme as normas supralegais incidentes, como a Convenção 169 (Decreto 5051/04) e os novos parâmetros acordados com o GT CAR CNPCT apenas no mês de maio de 2018. Dentre os direitos dos PCTs no CAR está:

  1. i) a possibilidade de inscrição apenas do perímetro de toda a área coletiva e inclusive do perímetro
    de ocupação e do perímetro da área de pertencimento (de uso e/ou reivindicável), mesmo sem
    documento formal de posse ou propriedade, nos termos dos precedentes da Corte Interamericana
    de Direitos Humanos;
  2. ii) a não obrigatoriedade de declaração das feições ambientais (RL e APP), ao reconhecer
    manejo segundo os modos de vida associados à conservação da biodiversidade, conforme
    Convenção 169 e a Convenção da Diversidade Biológica;

iii) a manutenção do CAR coletivo como ativo mesmo diante de sobreposições com imóveis rurais particulares ou públicos, mesmo que tenham matrícula, devido ao reconhecimento do vínculo com a terra como fundamento para os direitos territoriais dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, nos termos da Constituição, da Convenção 169 e dos precedentes em torno da propriedade coletiva da Corte IDH;

  1. iv) o direito de consulta livre, prévia, informada e de boa fé antes da realização do CAR para PCTs,
    inclusive com as fases pré-procedimentais de observância dos protocolos comunitários de consulta
    e gestão do território, indicação de profissionais no processo licitatório, e disponibilização de
    informações sobre os direitos específicos antes da consulta.

Apesar destas adaptações do Módulo CAR PCTs no SICAR já estejam em operação, não há norma geral editada por autoridade competente que regulamente o modo de inscrição e análise dos territórios tradicionais. Estudo jurídico encomendado pelo GT CAR PCTs no âmbito do Serviço Florestal Brasileiro para fundamentar os direitos dos povos e comunidades tradicionais no âmbito da inscrição e análise do CAR, não pode sequer ser socializado com os membros do GT.

Enquanto os imóveis rurais tiveram 6 anos para sua inscrição no CAR, devido as sucessivas prorrogações, os povos e comunidades tradicionais, assim como os beneficiários da reforma agrária não tiveram o direito de inscrever a área como território coletivo, por omissão do Estado, que até 02.2018 (data do julgamento do STF) excluía os territórios não titulados do âmbito do Código Florestal; por não adequar o módulo do CAR específico para estas áreas coletivas e por ausência  de gratuidade e apoio técnico para inscrição coletiva.

Estas omissões junto à exigência para inscrição individual dos lotes no CAR vem descaracterizando os assentamentos de natureza coletiva e os territórios tradicionais coletivos, sendo fator concreto de pressões e conflitos nos campo.

CAR INDIVIDUAL E LEI DA GRILAGEM: O efeito prático da extinção do prazo do CAR para os territórios coletivos seria a invisibilização destas áreas de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais e assentamentos coletivos,  que passariam a constar no sistema como terras devolutas ou de propriedade individual própria ou de terceiros, que tenham realizado a inscrição individual sobre um território tradicional ou assentamento coletivo não inscrito.

Embora o CAR não tenha efeitos fundiários, ao tornar possível o desembaraço ambiental da propriedade, com acesso a financiamento dos bancos e a políticas públicas de toda a espécie, o Cadastro vem sendo utilizado como documento de posse, sendo comprado e vendido (inclusive em aplicativos como a OLX), assim como vem sendo apresentado como prova de posse para ações de reintegração na justiça. Assim, o CAR individual sobre territórios coletivos contribuiu com o reconhecimento de propriedade sobre terras devolutas e públicas federais de até 2500 ha que podem ser vendidas por preço muito abaixo do valor de mercado (com até 90% de desconto do valor da tabela do INCRA), conforme autorizado pela Lei 13.465/17. Conjugados, CAR e titulação individuais podem fomentar a grilagem de terras no país sobre os territórios coletivos tradicionais.

No caso dos assentamentos de reforma agrária, a exigência da inscrição do lote individual no CAR como imóvel rural também vai de encontro com o tipo de desenvolvimento de vários assentamentos que não possuem parcelas individuais de produção, mas apenas coletivas, como nos estados do Ceará e Piauí e na maioria dos assentamentos diferenciados (Projeto de Assentamento Agroextrativista – PAE; Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS e Projeto de Assentamento Florestal – PAF) da Amazônia Legal. O CAR individual associado com a possibilidade de titulação individual precoce nos assentamentos e a proibição de emissão de titulo em nome de pessoa jurídica, promovida pela Lei 13.654/12, também acaba por induzir, seja a venda do título de domínio, seja a execução individual por dívidas com o banco, tendo efeito, a médio e longo prazo, de inserir tais áreas no mercado de terras, aprofundando a concentração fundiária, o que promove uma verdadeira contra-reforma agrária no país.

No momento em que a Comissão Mista da MP 867/18 discute pela primeira vez a desvinculação dos prazos do CRA e PRA, deve avaliar os efeitos que a futura Lei terá para o conjunto da sociedade, de modo a evitar que uma solução geral para todos signifique a exata violação de direitos para um determinado setor ou grupo social. Se a obrigação do CAR para acesso a direitos permanecer para os territórios e assentamentos de reforma agrária coletivos, trará impactos desproporcionais a este setor, excluindo de diversos direitos previstos em lei devido à omissão do próprio Estado em seu dever de agir, o que é vedado, pelo princípio da isonomia e igualdade pelo STF.  Trará ainda uma invisibilização destes territórios coletivos, contribuindo para grilagem destas áreas, o que pode aprofundar a já insustentável concentração de terras no país.

EMENDAS QUEREM REABRIR O CÓDIGO FLORESTAL: Apenas 5 das 35 emendas apresentadas versam sobre prazo do PRA ou CAR (Emendas 8, 21, 26, 27 e 35). As demais tratam sobre temas completamente estranhos ao objeto da MP 867/18 como a possibilidade de lixão sobre APPs e outras hipóteses de anistia, o que já foi exautivamente debatido durante os quatro anos de negociação do Código Florestal no Congresso Nacional, inclusive com posterior análise de (in)constitucionalidade pelo STF.

Segundo o STF, é inconstitucional a tentativa de inserir matéria nova pelos parlamentares que não tenham relação estrito com o conteúdo original da MP, as chamadas “emendas de contrabando”, pois acabam restringindo o debate legislativo, como em comissões temáticas, e ainda usurpando a competência exclusiva do Presidente da República para disposições normativas urgentes e relevantes. (ADI 5127/15).

Reabrir os debates do Código sobre o rito de uma Medida Provisória, rompe o acordo político fixado naquele momento – que diga-se de passagem tornou legal cerca de 58% do desmatamento ilegal no país (SOARES FILHO, Science, 2014) -, assim como abre nova insegurança jurídica sobre o marco ambiental do país. Péssimo para o meio ambiente, péssimo para economia.

TRAMITAÇÃO: A Comissão Mista é presidida pela senadora Juíza Selma (PSL-MT) e tem como relator o deputado Sérgio Souza (MDB-PR) e previu a realização de duas audiências públicas. No dia 10.04, as organizações e movimentos pautaram a questão da desvinculação inconstitucional dos prazos do PRA e CRA e o impacto do prazo do CAR nos territórios coletivos  [3]. Hoje, 16.04 nova audiência pública ocorrerá entre órgãos de governo, a CNA e a Contag. Após relatório consolidado do Relator, que pode indeferir liminarmente as Emendas que não tenham pertinência com o prazo, a MP e as emendas vão para votação na Câmara e depois no Senado. É possível apresentar novas emendas neste momento. A MP 867/18 deve ser votada até 03/06/2019 para se converter em Lei,  sob pena de perder vigência.

As organizações abaixo assinadas requereram na audiência pública do dia 10 de abril de 2019:

1) A rejeição liminar pela presidência da Comissão das Emendas 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34  sem nenhuma pertinência lógico-temática com o objeto da Emenda 867/19, que versa sobre o prazo para regularização ambiental no país, conforme precedente do STF (ADI 5127/15). Se aceitas, acabam por modificar, pelo rito de urgência de uma MP a regulamentação normativa da Lei 12.651/12, em usurpação ao debate legislativo e à competência do Presidente da república;

2) Rejeição do art. 1º da MP 867/19 e as Emendas 8, 21, 26, 27, 35 para manter a vinculação dos prazos do CAR (art. 29,§3) e do PRA (art. 29§2) e a higidez e lógica do sistema jurídico constitucional ao condicionar o acesso à benefícios conferidos pelo CAR ao compromisso de regularização ambiental, sob pena de o Estado autorizar o financiamento de atos ilícitos e ratificar a concessão do direito adquirido à devastação e poluição ambiental. Deste modo, após 01.01.19 aqueles que não aderiram ao PRA estão excluídos dos benefícios de suspensão de penas e multas por infrações cometidas até 22.07.08; recuperação a menor das áreas de APP e RL; assim como dos incentivos fiscais e creditícios conferidos para ações de recuperação ambiental.

3) Que a comissão Comissão chame representantes do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e de outras representações de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, assim como dos beneficiados pela reforma agrária em assentamentos de natureza coletiva, a fim de se chegar a uma solução razoável quanto a situação dos territórios coletivos no CAR, evitando-se os efeitos do fim do prazo a partir de 01.01.2019;

Abaixam assinam:

ANA- Articulação Nacional de Agroecologia

APIB – Articulação dos Povos Indígenas  do Brasil

APA-TO – Alternativas para Pequena Agricultura no Tocantins

Amigos da Terra Brasil

CNPCT – Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais

CNS – Conselho Nacional das populações extrativistas

CONAQ – Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

ISA – Instituto Socioambiental

GRAIN

FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional

MIQCB – Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu

MAB – Movimentos dos Atingidos por Barragens

MMC – Movimento de Mulheres Camponesas

MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Terra de Direitos

 Notas:

[1]  http://www.car.gov.br/publico/imoveis/index

[2]  https://www3.bcb.gov.br/mcr/manual/09021771806f4863.pdf

[3]  https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/04/10/especialistas-criticam-prorrogacao-de-prazo-para-regularizacao-ambiental

 Fuente: Carta Belem

Temas: Agricultura campesina y prácticas tradicionales, Movimientos campesinos, Tierra, territorio y bienes comunes

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