“Janeiro sangrento” para os Kaiowá do Mato Grosso do Sul tem incêndio em casa de reza, ataques e corte em cestas básicas
O ano de 2020 mal havia começado quando uma série de agressões assolaram os Kaiowá em Dourados e Rio Brilhante, municípios próximos à fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Entre os dias 2 e 3 de janeiro, houve atentados a locais sagrados aos indígenas, expulsões e violentos embates contra seguranças armados e oficiais do governo estadual. A situação chegou a tal ponto que uma criança indígena foi atingida e ferida por uma granada em Dourados.
Na madrugada do dia 2, cerca de 80 indígenas da aldeia Laranjeira Nhanderu acordaram com barulhos muito altos e invasores fugindo para as matas. Ao saírem de suas barracas e casebres improvisados, viram as chamas engolindo a casa de reza da comunidade. O alvoroço foi geral, com homens e mulheres em pânico à procura de água para conter o incêndio. Com bastante esforço, conseguiram – mas parte da estrutura ficou comprometida. A aldeia fica em Rio Brilhante, em uma área sob disputa fundiária.
As casas de reza são o símbolo mais forte de um povo em constante ameaça por interesses do agronegócio no Centro-Oeste. “Os Kaiowá fazem questão de construir casas de reza para lhes dar mais segurança. No seu modo de ver, uma construção dessas garante um local de onde ‘a palavra brota’, o que os faz imaginar que não-indígenas respeitem esse lugar”, diz a teóloga e historiadora Graciela Chamorro.
Professora aposentada de História Indígena da Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), ela estuda relações espirituais e práticas religiosas da etnia há mais de 30 anos. “Para os Kaiowá, é nas casas de reza que ‘a palavra dorme’, onde sua tradição permanece viva”, afirma Chamorro.
Os indígenas em Rio Brilhante estão alarmados e os sinais que o poder público emite não são dos melhores. Como Laranjeira Nhanderu não está em uma terra demarcada e homologada, há dificuldade até para que a Fundação Nacional do Índio (Funai) preste apoio básico.
Muito se deve a uma decisão do governo federal no fim de 2019, que determina que toda e qualquer viagem a campo seja autorizada pela presidência da Funai. Graças à medida, tem sido comum a demora no apoio de servidores a comunidades como essa. O atual presidente da Funai é o ex-delegado da Polícia Federal, Marcelo Xavier, notório aliado de grandes fazendeiros no Mato Grosso. Em agosto de 2019, ele negou que trabalhe a serviço dos ruralistas, em entrevista ao jornal O Globo.
Há muitas incertezas sobre quem foram os responsáveis pelo ato de intolerância religiosa. Uma liderança do grupo Aty Guasu, principal organização política dos Kaiowá, acusou não-indígenas pelo atentado contra o local sagrado. Ao mesmo tempo, a Mongabay apurou que há rixas internas em Laranjeira Nhanderu, contrapondo os que seguem os ritos ancestrais a indígenas convertidos ao cristianismo.
Visões de mundo em constante atrito
O ataque em Laranjeira Nhanderu é o segundo do tipo em pouco menos de 6 meses na região. No caso anterior, uma casa de reza foi totalmente destruída em julho de 2019 na aldeia Jaguapiru, às margens da Reserva Indígena Dourados. O incêndio aniquilou objetos de valor inestimável para os Kaiowá: foi o caso de um xiru, espécie de cruz sagrada para a etnia, com mais de 180 anos de idade.
A reserva é um dos territórios mais antigos e povoados do Brasil. São pouco mais de 15 mil indígenas – somados os Kaiowá, os Guarani Ñandeva e os Terena – vivendo em condições precárias em uma área de 30 km2 na periferia de Dourados.
À Mongabay, o Ministério Público Federal disse que, após o incêndio na aldeia Jaguapiru, foi realizada uma audiência pública sobre intolerância religiosa no fim de novembro de 2019. Já a Polícia Federal, responsável por investigar o caso, não respondeu até o fechamento da reportagem.
Como se não bastasse o forte simbolismo de ataques como esses, há outros desafios para a manutenção das tradições indígenas na área. O principal deles é a expansão de outras matrizes religiosas, em especial as igrejas evangélicas neopentecostais.
Religiões cristãs estão presentes nos arredores desde os anos 1930, quando a Missão Evangélica Caiuá aportou em Dourados. Hoje, a instituição se divide entre a missão religiosa – ainda muito influente – e uma organização que atua no campo da saúde indígena. Como prestadora de serviços, a Caiuá já foi alvo de denúncias de favorecimento em licitações milionárias, como noticiado pelo jornalista Maurício Angelo em reportagem de 2017 para o The Intercept Brasil.
“Na década de 1980, surgiram novas igrejas à revelia da [Missão Evangélica] Caiuá. Os indígenas vão às congregações nas cidades e, depois, trazem os pastores para dentro da reserva. Mal sabemos de onde as novas igrejas surgiram, mas elas chegaram, de vez”, diz Chamorro. Segundo a teóloga, só na Reserva Indígena Dourados há algo em torno de 100 igrejas neopentecostais. Tamanha profusão aumenta rixas internas na reserva.
“Quando vou à região para conversar com líderes e pastores, pergunto sobre a convivência [religiosa] nos territórios. É claro que eles não admitem seu desejo pelo fim das práticas tradicionais, mas há sim uma tensão, mesmo que amena”, diz a teóloga.
Há mais de uma década, a apreensão chegou a tal ponto que o Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul interveio. Em 2008 e 2010, o MP elaborou dois termos de ajustamento de conduta (TAC) para que as diferentes congregações respeitassem a fé e os rituais tradicionais indígenas.
Os documentos foram assinados por representantes de mais de 24 igrejas, determinando que fosse observada “a liberdade cultural nas aldeias indígenas, respeitando todas as danças e rezas típicas”. Os TACs exigiam também que elas realizassem “cursos de capacitação, orientação e formação” com seus líderes e pastores para garantir a “liberdade religiosa dentro do local de sede de suas congregações, dependências ou entidades”.
Tensão em Dourados mobiliza a Força Nacional
Enquanto os indígenas lutavam para apagar o incêndio na casa de reza em Rio Brilhante, outro ataque aconteceu na periferia de Dourados. Seguranças particulares de fazendas ao redor da reserva atacaram cerca de cem famílias Kaiowá em áreas retomadas nos limites da Reserva Indígena. “Retomadas” são terras que os indígenas invadem para pressionar pela demarcação – um processo previsto na Constituição, paralisado sob o governo de Jair Bolsonaro.
O grupo de agressores era composto por cerca de 15 seguranças armados, munidos com um trator modificado – apelidado de “caveirão” pelos indígenas. Durante o ataque, uma criança teria perdido os dedos de uma das mãos ao manusear uma granada, atirada contra os indígenas.
Há ainda acusações sobre o Departamento de Operações de Fronteira, que teria participado da ofensiva com tiros de balas de borracha e bombas. Trata-se de um órgão subordinado ao governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB).
Uma comitiva com membros da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal (MPF) e outras 18 entidades da sociedade civil visitou a área para apurar as denúncias. No dia 10 de janeiro, a defensoria encaminhou um ofício ao governador, pedindo explicações sobre o caso.
No documento, é descrito que a comitiva “constatou a existência de diversas cápsulas deflagradas calibre 22, bem como certificou a presença de indígenas feridos por armas de fogo” e que “não restam dúvidas que o cenário é de intenso conflito”. Procurado pela Mongabay, o Departamento de Operações de Fronteira se esquivou.
Seu subdiretor, o tenente Coronel José Roberto de Souza, disse que “se não fosse a pronta intervenção [do Departamento de Operações de Fronteira], mais pessoas teriam ficado feridas e talvez viessem a óbito”. Souza ainda levantou dúvidas quanto às vítimas ao dizer que o departamento socorreu um “suposto indígena”, com lesões leves, e disse que “não houve qualquer queixa ou reclamação formal” sobre a operação. Já o governo de Mato Grosso do Sul não se manifestou.
As motivações do ataque em Dourados também são nebulosas. Há indígenas que ligam a ofensiva a fazendeiros de soja, ao mesmo tempo em que há suspeita sobre outros interessados em expulsá-los dali.
Desde 2002, a área urbana do município tem expandido e, em 2015, o entorno da reserva foi incluído no perímetro urbano de Dourados. Na prática, a especulação imobiliária se intensificou a partir da decisão: hoje, há empreiteiros interessados nas terras ao redor da reserva.
Fato é que a tensão em Dourados e região beira o insuportável. Não à toa, o Ministério da Justiça e Segurança Pública determinou o envio da Força Nacional ao Mato Grosso do Sul. A decisão foi publicada no Diário Oficial da União em 16 de janeiro, destacando tropas pelos próximos 180 dias para os municípios de Caarapó e Dourados.
O envio da Força Nacional também se explica pela recorrência de assassinatos de Kaiowá ali. Baseado em dados de 2012 a 2014, o Ministério Público Federal afirma que a taxa de homicídios contra indígenas em Dourados e região é maior que o triplo observado no Brasil.
“[É] um índice superior ao do Iraque, sobre uma população submetida a um índice de violência extremo”, diz o procurador da República, Marco Antônio Delfino de Almeida, do MPF em Dourados. Segundo o órgão, eles têm quase 400% a mais de chances de serem assassinados na comparação com não-indígenas no resto do estado.
Um dos mais recentes picos de violência em Dourados aconteceu em junho de 2019: só na primeira quinzena daquele mês, seis indígenas foram assassinados. Estatisticamente, é o equivalente a um homicídio a cada dois dias e meio, em média.
Não bastasse a violência física que ameaça os Kaiowá da região, o governo de Jair Bolsonaro tomou uma medida cruel no fim de janeiro de 2020. Por decisão da Funai de Marcelo Xavier, foi interrompido o envio de cestas básicas a mais de 77 mil indígenas que vivem em áreas ainda não demarcadas. O MPF cobrou explicações da Funai e, enquanto isso, o governo estadual assumiu a distribuição aos Kaiowá.
Monoculturas se alastram por Dourados e região
No Mato Grosso do Sul, conflitos fundiários são o principal motivo das ameaças a povos indígenas, e não é diferente com os Kaiowá. “Há várias ações na Justiça que buscam comprovar a titularidade da terra [aos indígenas], mas elas demoram anos e desgastam tanto índios quanto fazendeiros”, disse à Mongabay o Ministério Público Federal no estado.
Em geral, são fazendeiros quem avançam sobre suas terras. Hoje, as monoculturas e a pecuária em larga escala imperam nas paisagens próximas ao Paraguai, como em Dourados e região.
“No geral, a maior parte da vegetação nativa [das terras indígenas no estado] foi substituída por pasto e diferentes cultivos agrícolas desde a Guerra do Paraguai [no século 19]”, explica Ariel Martins, o professor de Engenharia Ambiental e Recursos Hídricos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). “Em torno de Caarapó, Dourados e Ponta Porã [região dos ataques no início de 2020], hoje há um domínio do cultivo de arroz, soja, milho e cana-de-açúcar”, diz o professor.
O plantio exclusivo de monoculturas como a da cana-de-açúcar e da soja agrava erosões, o que implica em maior perda de solo e queda da produtividade de alimentos, além do assoreamento de rios. Como resultado, hoje resta muito pouco do que já foi um rico encontro entre Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal no estado.
No caso da Reserva Indígena Dourados, por exemplo, são ínfimos os resquícios de Mata Atlântica nativa, e as práticas dos agricultores ainda são pouco sustentáveis, sob um ponto de vista ambiental. “Muitas vezes falta apoio técnico para que os produtores façam o mínimo, como diversificar as culturas agrícolas em suas propriedades ou drenar águas superficiais, para evitar erosões”, diz Martins.
Enquanto isso, a cultura da soja segue em franca expansão na região, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo dados da Produção Agrícola Municipal, em Dourados e Rio Brilhante a área de plantio exclusivo de soja aumentou, respectivamente, em 20 mil e 30 mil hectares de 2013 a 2018.
A expansão do cultivo se explica pelas cifras: nos dois municípios, o valor da produção da soja em grãos mais que dobrou nesse mesmo período. Em Rio Brilhante, a soja plantada valia R$ 252 mil em 2013 e, em 2018, mais que dobrou: foi para R$ 506 mil. Já em Dourados, o valor estimado em R$ 312 mil em 2013 saltou para R$ 688 mil em 2018.
- Foto: Mídia Ninja
Fuente: MONGABAY