“Efeito Bolsonaro” fez MST perder 15% de sua base em acampamentos
Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, um dos dirigentes nacionais do movimento, João Paulo Rodrigues, conta que o movimento perdeu 15% da sua base em acampamentos pelo Brasil, diante das perspectivas do governo Bolsonaro – e do receio decorrente. O fim da reforma agrária e o medo da violência motivou a desarticulação: a violência policial, a dos próprios latifundiários e a dos apoiadores do presidente, agora com acesso facilitado à posse de armas.
Dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Paulo Rodrigues analisa
cem primeiros dias de governo; ele prevê aumento da criminalização contra movimentos do campo e
da truculência policial contra trabalhadores.
Alvo de Bolsonaro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) repensa suas estratégias de luta.
Agora, completados cem dias de um governo de extrema-direita, o MST promete voltar à protagonizar a oposição no campo, até agora puxada por grandes atos organizados pelo movimento indígena. Rodrigues entende que o governo está “movido por grandes contradições internas” e que não é “nenhum bicho de sete cabeças”. “Os primeiros da lista são os indígenas, mas vão chegar em nós da mesma forma que chegaram neles”, afirma.
A estratégia escolhida pelo movimento é a unificação da esquerda ao redor de grandes pautas. No momento, a reforma da Previdência:
– No início do governo de Fernando Henrique Cardoso ficamos um ano sem fazer praticamente nada. Não sabíamos por onde. Nesses períodos, é muito difícil saber pode onde. Uma coisa é fazer disputa na internet, na Avenida Paulista, outra coisa é um acampamento no Pará, onde a situação é muito adversa. Não podemos radicalizar sem ter perna para fazer. Mas em algum momento temos que avançar contra Bolsonaro, o conjunto da esquerda, agindo em bloco contra o ataque da direita.
Na próxima semana, o movimento realizará sua tradicional Jornada de Lutas, que culmina no dia 17 de abril, Dia da Luta Camponesa. Na data, há 23 anos, ocorreu o Massacre de Eldorado de Carajás, quando 19 integrantes do MST foram assassinados pela Polícia Militar durante uma marcha no município paraense. Para esta semana, o movimento promete focar em ocupações de terras com simbolismo político e histórico.
Confira a entrevista completa, feita pela repórter Julia Dolce:
- De Olho nos Ruralistas – Os cem primeiros dias de governo Bolsonaro confirmam as expectativas que o movimento tinha? Eram esperados tantos retrocessos para o campo?
João Paulo Rodrigues – Ninguém tinha expectativa que Bolsonaro ganhasse. Segundo, não tínhamos expectativa que governasse. No entanto, tínhamos muitas dúvidas sobre como seriam esses primeiros cem dias de governo. Houve uma oscilação da esquerda que teve início com uma euforia, pensando que o mundo iria acabar com o Bolsonaro, depois houve um relaxamento, “não é bem isso”, e agora começa uma compreensão de qual será a natureza desse governo. O MST desde o início disse que esse governo seria movido por graves contradições internas, em especial três.
Uma delas, disputas internas do governo. Outra, estar muito vinculado a uma agenda internacional pela dependência do capital. Por fim, estar à mercê da política econômica. Estamos vendo tudo isso acontecer. O governo está refém da política internacional dos americanos. Estão dando todos os sinais de uma Previdência que venda parte da política de capitalização. Querem vender os recursos naturais da Amazônia e o pré-sal para os americanos. Com o agronegócio completamente parado do ponto de vista de sua perspectiva estratégica. Claro, o grande capital resolverá o problema do agronegócio, mas o rumo da política econômica deles está muito voltada a isso.
As contradições internas são gigantes. Estamos vendo pelo menos duas políticas sendo disputadas. A primeira é a agenda liberal, de Paulo Guedes, reforma da Previdência e tal. A segunda são as “pautas de costumes”. Exatamente o que acontece na agenda do MEC, sai alguém da “pauta de costumes” e entra alguém mais vinculado à pauta econômica, que pode ou não também ter pautas de costumes. As contradições internas desse governo o deixaram paralisado. O que é ruim desses cem dias? Que tudo isso aconteceu sem que tenha sido fruto da ação da oposição, das esquerdas e muito menos do movimento. Não conseguimos incidir no fracasso do governo. Isso é ruim porque cria um descrédito da população: “Nós não podemos confiar em ninguém na política”. Nesse sentido, é muito importante que a oposição diga o que somos contra ou o que somos a favor.
De Olho nos Ruralistas – Quais os riscos imediatos?
- Ainda sobre os cem dias, o que nos preocupa é que, na medida em que o governo enfraquece, ele fica mais perigoso do ponto de vista militar. Ou seja, o governo tem que dar respostas. Ora ele mira para a Venezuela, ora contra nós. Então a esquerda vai ter que se cuidar ainda mais. Um governo fraco é um governo mais perigoso. Ele perde o apoio popular e começa a dar sinais mais raivosos de ofensiva contra o movimento organizado, sindical, em especial o movimento ideológico. É muito difícil saber onde eles irão nos atacar. É mais provável que eles apressem ações de criminalização do movimento no Congresso. E, nos meses de mobilizações em abril e maio, devemos ver uma polícia mais truculenta contra as ações dos trabalhadores. No Abril Vermelho do MST temos que ter cuidado. Pode ser também que ele resolva dar um ataque via fake news, o que ainda não fizeram contra a gente de movimento popular.
A ação dessa semana do Sergio Moro e do Paulo Guedes recebendo artistas, Zezé de Camargo e companhia, demonstra que podem fazer uma grande ação de comunicação no tema da reforma da Previdência. E aí vão vir com conteúdos contra nós, contra o movimento sindical, as trabalhadoras do campo. Uma das fake news diz que as trabalhadoras do campo falsificam os documentos para dizer que são camponesas, mas moram nas cidades. Um dos motivos que justificam essa reforma, para eles, é que há 5 milhões de pessoas vivendo no campo, mas 3 milhões seriam informação falsa, porque viveriam nas cidades. Isso é dito pelo Paulo Guedes. A justificativa de quem conhece o assunto é que os trabalhadores vivem no campo a vida toda, quando estão velhinhos e se aposentam vão morar na casa de alguém na cidade, perto do hospital, da farmácia, para ter um cuidado maior.
Com esse enfraquecimento do governo, mesmo com a opinião de que ele fica mais perigoso, seria a hora de colocar a oposição nas ruas?
- Não necessariamente precisamos ir para a rua, mas precisamos ter um conteúdo mais unificado. Há muita dubiedade no discurso contra Bolsonaro, então a esquerda precisa ter algumas agendas em comum. É a Previdência? O que mais além dela? Há áreas sensíveis nas quais poderíamos avançar mais. Por exemplo, o tema dos agrotóxicos, é uma bandeira ampla que poderíamos tocar e bater no governo. A liberação de agrotóxicos é uma coisa absurda. O tema da violência é assustador, o tanto de pessoas que o governo matou a mais no governo Bolsonaro. Um fato como esse que aconteceu no Rio de Janeiro, os 80 tiros do Exército. O Emicida chama a atenção que deveríamos fazer um grande ato, de massa, para bater nesse fato grave. Mas não conseguimos fazer. Não é uma ação normal, são as forças armadas brasileiras cometendo um atentado contra seu próprio povo, e não conseguimos dar resposta. A solidariedade na internet foi boa, mas não conseguimos dar resposta, por vários motivos. E vamos ter que trilhar por esses dois caminhos que a esquerda escolheu: Lula Livre e a reforma da Previdência. A última mobilização Lula Livre foi boa, deu corpo, mas não necessariamente atinge Bolsonaro, e o tema da Previdência tem caldo para uma boa mobilização.
Em relação aos conflitos no campo, como vocês sentiram esses primeiros cen dias? Perceberam mais ameaças?
- Vamos colocar os primeiros 120 dias. Porque o maior problema que tivemos, pasme você, foi quando Bolsonaro ganhou, antes de tomar posse. Foi uma onda de medo terrível no campo, onde perdemos pelo menos 15% da nossa base acampada. Saiu do campo uma parcela que não tinha perspectiva de conseguir terra, e uma parcela que ficou com medo. Começou a tranquilizar agora depois do carnaval, quando todo mundo viu que ele não é um bicho de sete cabeças. Mas nos primeiros dias e meses depois das eleições foi quando os bolsonaristas atacaram os nossos acampamentos, botaram fogo. Esse número de 15% é um pouco mais amplo, envolve os últimos seis meses. Isso é fruto do discurso de ódio e do medo. Fora isso, as ações que houve foram das policias militares, vinculadas ao discurso de Bolsonaro, não necessariamente decisão do governo. O governo do Ceará fez dois despejos violentos, e o do Maranhão outros dois. Dois governos de esquerda. Tivemos muitas ações complicadas em Minas Gerais, que é um governo de direita, natural. Mas as policias militares já se sentem no direito de nos atacar, mesmo sem decisão judicial. Essas foram as maiores preocupações no último período.
Quando você diz que perdeu 15% da base do campo, o medo desses camponeses era mais em relação ao Estado ou em relação ao porte de arma?
- O motivo principal era a falta de perspectiva de conquistar terra. Ninguém vai para lá se não tiver o negócio. O segundo medo era a preocupação com os policiais e os despejos violentos. O terceiro, pelo que pesquisamos, era o medo de bolsonaristas, ataques violentos aos acampamentos, seja o latifúndio, seja quem passa na rua e faz qualquer tipo de maldade contra no nosso povo.
Essa incitação ao ódio já impacta o comportamento de fazendeiros e milícias no campo?
- Acho que sim, mas não é um fato concreto ainda. Não dá pra dizer que o judiciário prendeu mais porque é o governo Bolsonaro, nem que morreu sem-terra porque é governo Bolsonaro. O governo Temer foi muito pior que tudo, perdemos 115 pessoas assassinadas no campo durante dois anos de Temer. Os conflitos que houve no governo Bolsonaro ainda não demonstraram como virão. Tenho por mim que eles estão achando ainda o melhor jeito de nos enfrentar. O que é certo é que o maior ataque contra o MST até agora foi a retirada de direitos, não há diálogo, acabou toda a negociação, houve a retirada das políticas públicas em massa, sobre todos os aspectos, e claro que isso dificulta mais. Agora, não sentimos ação do Ministério da Justiça, do Gabinete de Segurança Nacional, efetivamente contra nós. Pode ser que venha, mas ainda não vimos isso.
Se fizermos um comparativo em relação aos primeiros cem dias do governo Temer, é possível perceber que esse governo mira mais a população do campo?
- Cinco medidas que eles tomaram: cortaram todos os recursos para obtenção de terra; todas as políticas públicas da compra de alimentos; toda a assistência técnica; aumentou o processo de regularização fundiária, a privatização das terras públicas para os fazendeiros; e, por último, todo o pacote de maldades que é o apoio ao agronegócio. Aí são grandes maldades: liberação de agrotóxicos, transgênicos, renegociação de dívidas, e o fim das multas trabalhistas e ambientais. Isso é maldade.
Sobre os agrotóxicos, é sem precedente. tudo bem que no meio desses 150 registros há alguns que só mudaram a marca, o nome, agrotóxicos que já estavam no mercado. Mas tem a outra metade que são de agrotóxicos proibidos em toda a parte do mundo. O 2-D, por exemplo, é absurdo. Agora, nós achamos que a contradição é essa, os consumidores possivelmente reagirão em algum momento. É impossível manterem essa pauta sem que isso os afete.
De que forma essa liberação de agrotóxicos afeta diretamente o MST?
- São vários motivos. Primeiro você fortalece um jeito de produzir alimento que é o modelo dos grandes do agronegócio. Segundo, você destrói a biodiversidade, especialmente onde há assentamentos próximos. Boa parte desse veneno é pulverizado, então cria um problema nas nossas regiões. Em terceiro, como são áreas de monocultura, na medida em que “matam um determinado tipo de praga e inseto” uma outra parte corre para as nossas áreas. Isso infesta, há um desequilíbrio ambiental. O maior motivo é que, na medida em que eles aumentam a quantidade de veneno, eles geralmente não têm imposto, você produz distorção também na quantidade e na produção de alimento. O grosso é para a soja, mas o impacto ambiental na saúde e no mercado é muito grande como essa quantidade de herbicida, veneno, ataque aos trabalhadores em geral. Em especial, a saúde.
Os movimentos indígenas estão sendo protagonistas neste primeiro momento de resistência ao governo Bolsonaro. Os camponeses estão receosos ou é estratégico?
- Os camponeses estão sendo menos atacados que os índios. No caso deles, ou eles reagem ou perderão todo o território. A ofensiva é muito grande, não há ofensiva do agro ainda contra o MST, não querem retirar áreas. A única ofensiva que há por enquanto é a titularização das famílias que vivem no lote, que é a privatização. Mas ninguém está pedindo as terras. Para os índios não, ou ele fazem uma ação dessa natureza ou perderão todo o território. E que bom que estão fazendo isso. Por estarem sendo os mais atacados, há um setor importante, inclusive no próprio judiciário e em alguns setores da classe média, que está sendo muito solidário aos povos indígenas, isso é bom. Os primeiros da lista são os indígenas. Mas vão chegar em nós, da mesma forma que chegaram neles. Os quilombolas estão sendo atacados, acho que não tiveram a mesma forma de resistência que os indígenas, mas é uma boa disputa que estamos tendo agora.
Durante as eleições o movimento sugeriu que a base não caísse em provocações caso Bolsonaro vencesse. Isso não torna os movimentos do campo reféns do governo? Não simboliza uma vitória da extrema-direita?
- Provocação, luta e mobilização não têm nada a ver uma coisa com a outra. Nós, no primeiro ano de Fernando Henrique Cardoso, ficamos um ano sem fazer praticamente nada. Não sabíamos por onde. Nesses períodos, é muito difícil saber por onde. Uma coisa é fazer a disputa na internet, na Avenida Paulista. Outra coisa é um acampamento no Pará, onde a situação é muito adversa. Nosso movimento não não vai radicalizar quando não tiver perna para fazer. É um cuidado de orientação, porque as famílias que estão afastadas dos grandes centros de mobilização, como é o caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), dos indígenas, têm uma pressão muito maior. Perdemos 130 pessoas na luta pela terra nos últimos dois anos. Não é pouca coisa para um movimento popular. Agora, em algum momento temos que avançar contra Bolsonaro, não só a gente, mas o conjunto da esquerda. Escolhemos a pauta da Previdência, poderíamos ter escolhido o latifúndio improdutivo e outras pautas, mas achamos que temos que agir em bloco contra o ataque da direita.
A bancada ruralista demonstra descontentamento diante da ameaça de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, pois são os árabe que compram nossa carne bovina. Se nem o agronegócio está satisfeito, como fica para Bolsonaro?
- Agora eles têm muito claro o lado deles, a insatisfação é porque a taxa de lucro está diminuindo. Mas eles não votaram em Bolsonaro por isso, e sim pela propriedade privada. Isso não há risco nenhum de desapropriação. Então, no limite, eles se juntam. Ainda não é motivo para comemorarmos tudo isso. Ainda vão uns dias para o agronegócio morrer qualquer relação que seja com Bolsonaro. Para nós é que é mais grave, porque além de não termos conquistas econômicas, seremos atacados por eles. Mas não tenho ilusões que o agro possa romper relações com eles agora, porque ele namora e flerta com o atraso e com a modernidade. O setor internacional moderno das commodities está magoado, mas o setor conservador, que é o mesmo, está feliz da vida. Vamos ter arma no campo e tal. Os dois são o mesmo que têm uma propriedade em Ribeirão Preto uma do lado da outra. Trabalho escravo, mas mega máquinas da Agrishow tocando a mesma roça. Eles têm isso. Nós fizemos essa experiência no governo Lula: dizíamos, vamos fazer uma aliança com Roberto Rodrigues para combater o latifúndio. Não deu certo, eles se juntaram contra o governo e contra nós. Eles não têm grandes contradições entre eles.
Acredita que os ataques ao MST, a liberação dos agrotóxicos, até o adiamento da Feira da Reforma Agrária, em São Paulo, podem aumentar o apoio popular ao movimento?
- Acho que pode, nós temos um grande desafio agora que é de se comunicar com a população. Precisam entender os motivos do adiamento dessa feira, de negarem o Parque da Água Branca. Faremos uma reunião nessa semana para afinar a viola. Há muitas pessoas que querem o debate da feira porque são a favor dos orgânicos, muitas querem caçar briga com o governador João Doria, e muitas porque são solidárias ao MST. Precisamos juntar tudo isso e não colocar o MST como inimigo principal do Dória, porque isso nos cria um problema na base, não aqui na capital. Doria já pegou o MST como principal inimigo, dependendo da forma como atacamos, além de não fazermos a feira, eles vêm pra cima com repressão. Então temos que dialogar com a sociedade para que não defendam apenas a feira, mas que a cada iniciativa que eles cortem do nosso lado possamos fazer uma ação em conjunto. Por isso essa movimentação unitária que saiu em defesa da nossa feira foi muito boa, porque conseguimos avançar e construir uma luta.
A pergunta é: o que podemos fazer além da disputa da internet? Podemos criar um bom debate com a sociedade sobre os orgânicos em São Paulo, a partir da feira. Já há setores querendo ocupar o Parque da Água Branca em solidariedade a nós. Mas temos que construir isso legalzinho, para não ser só uma panfletagem, e ter consistência. Tem que ser para acumular, não apenas para criar uma confusão que não nos dá perspectiva de fazer a feira. Mas está bacana, estou animado. Eu digo que nós vamos ter feira, e no Parque da Água Branca. Semana que vem também temos a nossa Jornada anual de Lutas, faremos ocupações de terras em áreas simbólicas. Serão mais ocupações do que atos, vamos nos dedicar a isso.
Fonte: De Olho nos Ruralistas