Mulheres Guardiãs da Agrobiodiversidade no Paraná: renda, sementes e solidariedade em tempos de pandemia
A Rede Sementes da Agroecologia (ReSA), criada em 2015, no Paraná, envolve 25 organizações, dentre: movimentos sociais, sindicatos, cooperativas, ONGs e órgão públicos, além de professoras/es, estudantes, Guardiãs e Guardiões de sementes. Ela foi constituída e se desenvolve como espaço de troca de saberes, de articulação política e de ações voltadas à produção, à multiplicação e à preservação de sementes crioulas.
A Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade do Centro-Sul do Paraná, organizada anualmente pelo Coletivo Triunfo e pela AS-PTA, é uma das mais significativas atividades do calendário da Rede. Essa feira mobiliza agricultoras, agricultores e organizações da agricultura familiar de toda a região e é antecedida por festas e feiras locais que acontecem nos municípios e comunidades. No ano passado, a 17ª edição da Feira Regional recebeu aproximadamente 4.000 visitantes vindos de 60 distintos municípios.
Em 2020, a pandemia da Covid-19 impossibilitou a realização desses espaços coletivos de comercialização e de troca de sementes e saberes, o que colocou o duplo desafio de construir alternativas de renda para as famílias que não puderam comercializar seus produtos nas Feiras, e, ao mesmo tempo, manter aceso os trabalhos coletivos com as sementes crioulas.
Ao longo dos últimos dois anos, a ReSA tem avaliado a necessidade de fortalecer a participação das mulheres guardiãs. Foi com esse objetivo que a Rede estruturou um projeto de compra de sementes crioulas produzidas pelas mulheres guardiãs, que reúne um grupo de 18 guardiãs de 10 comunidades e quatro regiões do Paraná. São no total mais de 4.800 pacotes de sementes e mais de 1.400 mudas de plantas medicinais, flores e árvores da Mata Atlântica. André Emílio Jantara e Luiza Damigo (AS-PTA e Coletivo Triunfo) e Naiara Bittencourt (Advogada da Terra de Direitos e integrante do GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia), todos integrantes da ReSA, nos ajudam a contar a história desse projeto.
Antes disso, dona Iraci, Maria Terezinha, Andrea e a jovem Maria Jaqueline, guardiãs de sementes crioulas participantes do projeto, têm um recado para nós! Vamos ouvi-las.
Em primeiro lugar, elas destacam a satisfação de saber que as sementes que cultivam com tanto carinho chegarão às mãos de muitas outras famílias, que estão precisando desse apoio nesse momento de pandemia. Andrea, agricultora urbana, ressalta a importância das feiras para a troca de sementes e a recuperação daquelas variedades que foram perdidas e também para conhecer novos tipos de grãos, hortaliças, flores, frutas e plantas medicinais. Maria Terezinha, que participa de um grupo de mulheres que já recuperou diferentes tipos de sementes, disse que sente o seu trabalho e o de suas companheiras reconhecido e valorizado com esse projeto. Iraci é agricultora assentada da reforma agrária em Santa Catarina, com produção bastante diversificada, de leite e derivados, sementes, morango e pequenos animais, tudo orgânico, além de artesanato e bordados. Iraci nos conta de sua alegria ao ver um projeto só para as mulheres guardiãs. Maria Jaqueline, guardiã mirim ligada ao Coletivo Triunfo, uma articulação regional da agricultura familiar, espera que, assim como ela recebeu dos pais a missão de cuidar das sementes, que mais e mais famílias também sigam nesse caminho, garantindo que as sementes continuarão a ser passadas de geração em geração: “Entregamos as sementes com muito amor e esperamos que as famílias possam receber essas sementes com muito amor e multiplicar cada vez mais”. Todas as guardiãs são unânimes em destacar a importância do projeto nesse ano em que as feiras de sementes não serão realizadas em decorrência da pandemia, em que até as visitas em casa diminuíram e estão todos mais isolados. Multiplicar as sementes e passá-las adiante é a forma de garantir que elas não serão perdidas. Como bem disse dona Iraci: “É vida que segue, é luta que continua”.
Agora com a palavra, Naiara, André e Luiza.
Contem-nos um pouco sobre esse projeto com guardiãs de sementes que vocês estão desenvolvendo durante o isolamento social e frente à impossibilidade de realização das feiras de sementes no Paraná.
Naiara Bittencourt (Terra de Direitos) – É um projeto que se aproxima do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), só que mais facilitado e totalmente gerido pela sociedade civil. A estratégia é comprar sementes diretamente das mulheres, garantindo que a renda fique para elas, e distribuir essas sementes e mudas a comunidades que, muitas vezes, não têm acesso a essas sementes, como quilombos, terras indígenas e acampamentos. Estamos também preparando materiais de comunicação para as comunidades, com informações sobre as sementes que elas vão receber, os cuidados recomendados pelas guardiãs e dicas para o cultivo e multiplicação.
André Jantara (AS-PTA) – O projeto envolve 20 mulheres guardiãs e mais de 180 tipos de sementes. São mudas de frutíferas vindas do litoral do estado, a turma do Sudoeste junto com a ONG Assessoar trazendo as plantas medicinais e as mulheres aqui do Coletivo Triunfo, com as hortaliças. A ideia é fortalecer a segurança alimentar do povo, com as miudezas, como hortaliças, que, às vezes, as pessoas não têm o hábito de plantar ou não têm a própria semente. Mas sabemos que nem tudo que a pessoa planta consegue multiplicar. Por isso, vamos incluir arroz e a mandioca, que é um alimento muito importante nas terras indígenas. Devemos chegar a mil famílias. Cada família receberá um kit com sementes de cerca de dez espécies. Esse projeto apoiado pela Terra de Direitos e pela Fundação Heinrich Boll é um piloto para uma ação bem maior que estamos construindo com o Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT).
Como se inicia a ideia do Projeto?
Naiara Bittencourt – A ação se tornou importante neste momento para garantir a circulação da agrobiodiversidade, já que não está sendo possível realizar encontros. Como pensar uma feira de sementes no Paraná sem as rodas de chimarrão? No caso das guardiãs, elas executam uma série de atividades que geram renda e que foram impactadas pelo isolamento social. Isso abre toda uma discussão sobre a valorização do trabalho da mulher, que é um dos pontos centrais do projeto. Junto disso vem a questão da segurança das pessoas, a vida em primeiro lugar. Tanto é que a ReSA divulgou nota, informando sobre o cancelamento das feiras neste ano e sugerindo que as feiras organizadas em outras regiões por outros coletivos sigam os mesmos cuidados.
Luiza Damigo (AS-PTA) – Numa reunião da ReSA, em Morretes, litoral do Paraná, ano passado, foi aberto um espaço para depoimentos das mulheres. Foram mais de 20 depoimentos, todos muito fortes, dizendo que o espaço de participação delas ainda era limitado e que as mulheres muitas vezes já pensaram em desistir. São histórias que precisamos escutar. Muitas dessas mulheres estão sendo agora beneficiadas pelo projeto. Por isso que a mensagem política desse projeto é bastante forte, já que aqui falta debate até para as mulheres entenderem as diferentes formas de violência a que estão expostas, que algumas vezes não são nem reconhecidas por elas como violência. O projeto é um passo importante para fortalecer esses espaços das mulheres, para dar corpo e força para algo que já vínhamos querendo construir. A reunião de Morretes representa um momento em que a própria ReSA assume o compromisso de valorizar a participação das mulheres na Rede e valorizar tambémseu papel fundamental na conservação das sementes.
Quais são os principais resultados colhidos até agora? Como vocês sentem o envolvimento das pessoas?
Naiara Bittencourt – O trabalho das guardiãs trouxe uma reflexão interessante ao projeto sobre a agrobiodiversidade, muitas das mulheres envolvidas têm as flores como uma grande paixão. Elas gostam de trocá-las nas festas e feiras, ampliando o tema agrobiodiversidade para além da questão alimentar. Nas conversas com elas, por exemplo, elas colocaram que “tudo bem, vai entrar o milho, o feijão, mas e as flores?”. As mulheres trazem assim outros elementos, um sentido amplo de diversidade, que envolve as flores, as medicinais, as nativas, olhares que, muitas vezes, estão distantes nas práticas dos guardiões homens. Esse trabalho com as mulheres levou ainda à criação de um Grupo de Mulheres na ReSA. O projeto é parte de um movimento maior de auto-organização, possibilitado pelas dinâmicas com as sementes. Em breve, vamos organizar um material de entrevistas com essas 20 guardiãs, que vai contar um pouco quem elas são, suas histórias, e também discutir a relação entre as mulheres, a agroecologia e agrobiodiversidade no Paraná.
André Jantara – Está sendo bem importante para as agricultoras, elas não esperavam. Elas não sabiam pra quem iam vender as sementes. O ano passado produziu muito bem e as mulheres esperavam as feiras para vender, mas como as feiras não puderam acontecer, poderia haver um desânimo para a próxima safra. Nós tínhamos 30 feiras programadas, o que daria um público de 50 mil pessoas e seria um excelente momento de comercialização. O projeto veio como estratégia para garantir a renda diante da impossibilidade das feiras. A renda está difícil, então qualquer dinheiro que entra ajuda bastante. A cultura do fumo está em crise na região, isso pode abrir espaço para trabalhar alternativas com mais famílias por aqui. No caso desse projeto com as guardiãs, o dinheiro vai direto para a conta da mulher. A riqueza da diversidade está nas mãos das mulheres, elas têm sempre seus potinhos cheios de sementes. Elas sempre contam muitas histórias, como a agricultora Terezinha Santos, que me disse que “essa alface aqui eu trouxe da minha mãe quando me casei, já tem mais de 40 anos”. E tem muitas outras histórias assim aqui na região.
Luiza Damigo – O primeiro ganho é que é um projeto só de mulheres. Além disso, vamos chegar a diferentes regiões do estado. É importante ainda se sentir parte do processo produtivo da família. Não apenas ser concebida como um “apoio” ou uma “ajuda”, que é uma designação recorrente ao trabalho da mulher agricultora. É também um momento de auto-reconhecimento das mulheres, de compreensão de que são parte e constroem junto, cada uma fazendo sua parte. Tudo isso abre caminhos para o fortalecimento de vínculos entre as mulheres, é uma rede que se fortalece entre elas. Outro ponto de celebração desse projeto é a participação de uma agricultora urbana, que está ali, em um município pequeno, cuidando diariamente das suas sementes, se propondo a cuidar desses materiais e a multiplicá-los.
Podem falar um pouco sobre os principais desafios para a execução do projeto, mas também, de forma mais ampla, para a conservação da agrobiodiversidade no Paraná?
Naiara Bittencourt – Um dos desafios é garantir a proteção das guardiãs e das outras pessoas participantes do projeto nesse período de pandemia. Algumas pessoas terão que circular para coletar e distribuir as sementes. A montagem dos kits de sementes será feita na Casa da Semente da ABAI. Compramos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e também estão sendo pensadas estratégias para evitar as aglomerações nessas etapas. Outro desafio é a dificuldade de interlocução com o poder público. Essa ação poderia ter muito mais impacto se contasse com o apoio de políticas públicas. Aqui no Paraná não foram feitas chamadas públicas para compra de sementes, somente para alimentos.
André Jantara – Temos que demonstrar a importância das sementes crioulas para os órgãos públicos. Não tem nenhum órgão que favoreça o trabalho das mulheres. Ao contrário, na hora de recomendar, por exemplo, os técnicos recomendam semente comercial. Com pouco dinheiro dá pra fazer muita coisa, as prefeituras poderiam investir mais nisso. O investimento é pouco e o retorno muito grande, basta querer. Vamos apresentar essa proposta para os municípios. Não sabemos até quando vai durar a pandemia, não sabemos se vai sair vacina e, se sair, se vai resolver. Enquanto isso, as mulheres sentem necessidade de estar juntas e não podemos apagar esse fogo que está começando, precisamos valorizar os conhecimentos dessas mulheres.
Luiza Damigo - A questão de gênero é o grande desafio, e em muitas dimensões. Precisamos que as mulheres se sintam confortáveis para poder participar e falar, expressando suas visões sobre seu próprio trabalho. E, ao falar, ver a riqueza do que elas fazem a partir de suas próprias experiências. O conhecimento é super vasto. O desafio é também a mulher ser parte da geração da renda familiar, da gestão estratégica da propriedade e decidir o que vai produzir. Para isso, é fundamental o auto-reconhecimento das mulheres. A questão de gênero envolve, assim, a relação das mulheres com os demais e tambémdelas com elas mesmas. Esse projeto pode ser uma possibilidade para fortalecer nosso sonho de termos aqui na ReSA uma rede de guardiãs já envolve, nesse momento, de 80 a 100 mulheres.
Fonte: AS-PTA