Tecnologias de convivência: estratégia redesenha espaços de moradia no Semiárido

Idioma Portugués
País Brasil

Há duas décadas, a construção de cisternas de placas iniciou um projeto que segue em disputa na região.

Ao longo de 20 anos, a construção de mais de um milhão de cisternas de placas no Semiárido brasileiro concretizou uma conquista na segurança hídrica para povos e comunidades da região. Foram feitas 1,14 milhões de tecnologias, de acordo com o Programa Cisternas, sendo a quase totalidade delas concluídas até 2016. Essa implementação se soma a um processo mais amplo de lutas populares por políticas públicas para  convivência com o território climático.

O desenvolvimento de políticas adequadas cobrada pelas organizações impactou na convivência no território / Ricardo Araújo

A universalização no acesso à água, entretanto, ainda é um desafio. As dificuldades aumentaram com a redução de investimentos no setor nos últimos 8 anos. De acordo com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), executora do Programa Cisternas, cerca de 500 mil famílias ainda não têm a cisterna para consumo humano, enquanto 900 mil carecem de tecnologias de acesso à água para a produção de alimentos agroecológicos.

Entre desenvolvimentos e dificuldades, após a execução das políticas de Convivência com o Semiárido, não foram registrados impactos socioeconômicos como os que eram registrados em estiagens anteriores. Os dados alarmantes de mortalidade infantil e êxodo rural até a década de 1990, de acordo com as reivindicações da ASA, estavam muito mais na conta de um imaginário negativo da região e na falta de políticas públicas adequadas.

“Historicamente, sempre se falou em combater a seca com os grandes programas de governo, na perspectiva de que o ‘Nordeste era um lugar seco, de solo rachado, de fome e de miséria’, e de que era preciso ‘combater' a seca. A ASA traz justamente um olhar voltado para a ‘convivência com o semiárido’. De enxergar o território com suas riquezas e potencialidades, considerando suas possibilidade de conviver bem com a região, desde que sejam incorporadas tecnologias apropriadas, políticas públicas adequadas e orçamento específico”, define Mardônio Alves, coordenador da ASA Alagoas. 
Um dos ‘termômetros’ do andamento - ou estagnação - das políticas de Convivência com o Semiárido está no quintal das moradias das famílias. Simbolicamente, uma casa adequada para essa “convivência com a região climática” possui tecnologias para captação e armazenamento de água, casas de sementes,  quintais produtivos, plantios consorciados, agroflorestas entre outras estruturas. 

Na diversidade de terras, matas e culturas, não há uma “receita pronta” para esses espaços de moradia, mas uma perspectiva em comum. São instalações que respeitam as pessoas, a natureza e as comunidades, e ampliam as condições práticas da própria sabedoria popular e tradicional camponesa. "Conviver com o Semiárido é ter a capacidade de perguntar e ouvir da natureza, dos  animais, do ambiente e das pessoas como se pode viver bem ali. Quando temos essa escuta atenta, descobrimos estratégias para transformar a realidade", afirma o educador Naidison Baptista, liderança histórica da ASA. 

Dessa forma, as moradias se adaptam a uma proposta político-ambiental, que potencializam práticas e saberes sustentáveis. Essas iniciativas são desenvolvidas entre as cerca de três mil organizações que formam a rede ASA, em metodologias com agricultores e agricultoras e profissionais de campo. Dessa forma, dois novos projetos foram apresentados em novembro, em Piranhas (AL), durante um encontro nacional da rede. As ideias foram maturadas durante anos, propondo casas com tetos solares fotovoltaicos e saneamento rural específico para a região climática. 

As duas medidas continuam no campo da proposição e buscam fôlego de orçamento. “O desafio é grande, mas estamos aqui para exigir os direitos dos povos do Semiárido e avançar na luta por uma vida digna”, disse Maria Cristina Aureliano, coordenadora do Centro Sabiá, organização dedicada à  agroecologia e convivência sustentável com o semiárido.

Tetos solares

Placas solares partem de uma proposta de acesso à energia de forma democrática / Divulgação / ASA

O avanço de megaempreendimentos de energia renovável no Semiárido entrou na pauta política da ASA, como uma possível ameaça à democratização no acesso a esse bem comum. O avanço do setor também é visto como um problema para as culturas camponesas, na disputa por territórios, impactos no bem-estar e alteração do meio ambiente.  

Até certo ponto, o debate pode traçar um paralelo com as reivindicações de décadas atrás com a questão hídrica. O próprio plano foi apresentado como Um Milhão de Tetos Solares, inspirado no Um Milhão de Cisternas. 

“Conseguimos democratizar o acesso à água no Semiárido brasileiro e afirmar a agroecologia como modelo de produção de alimentos justos e saudáveis. Isso é muito importante para a ASA, para as famílias e os povos. Mas agora precisamos democratizar o acesso à energia. E estamos falando de uma energia renovável, limpa, de produção da agricultura familiar, que combate a pobreza e não exclui pessoas de seus territórios”, defende Valquíria Lima, coordenadora da ASA Minas Gerais. 

Ainda buscando fonte de financiamento, a iniciativa pretende instalar placas solares de forma descentralizada na casa das famílias agricultoras. A previsão é iniciar neste ano de 2025 uma fase piloto, com cerca de 4 mil famílias de 60 municípios, com um investimento na casa de R$ 78 milhões.
De acordo com o projeto, há uma perspectiva de apropriação produtiva da tecnologia, assim como é feito com as cisternas de placas. As placas fotovoltaicas devem ser produzidas em pequenas fábricas distribuídas pela região. Cada instalação deve se inspirar na experiência da Escola Agrícola Familiar de Monte Santo, no sertão da Bahia. No local, jovens estudantes participaram de formações e hoje produzem o equipamento.

No documento apresentado pela ASA, cada família conseguiria gerar 500 kw de energia elétrica por mês — 150 kw para consumo e 150 kw para produção agrícola, e o excedente seria vendido e integrado ao SNI (Sistema Nacional Interligado).

Saneamento rural

O Programa de Saneamento Rural é outra frente que pretende garantir direitos e mudar a arquitetura das moradias no Semiárido. A ideia é fruto de debates, oficinas e visitas de campo, com experiências bem sucedidas entre as famílias agricultoras. Ela envolve a criação de sistemas de tratamento de esgotos adaptados às realidades locais.

O biodigestor é uma das tecnologias que favorecem um melhor aproveitamento de recursos naturais no território / Bruno Morais

De uma forma geral, o saneamento rural apresentado pela ASA avança no desenvolvimento de tecnologias para captação e reúso de água, mais necessidades básicas das famílias. “Já temos água para beber e cozinhar e água para a produção de alimentos, mas falta uma água que podemos chamar de ‘terceira água’ ou ‘água do cuidado’. É preciso ter uma água com mais qualidade para outros usos da casa, que seria para lavar roupa, cuidar das crianças, de banhos e de lavar pratos”, exemplifica Maria Cristina Aureliano. 

A iniciativa parte de experiências individuais e comunitárias, entre elas, as de tratamento das chamadas  águas cinzas. Elas são provenientes de pias, ralos e banheiros, e de águas fecais associadas a sistemas agroflorestais, a exemplo de outras iniciativas no Brasil e em outros países. O programa de saneamento também estabelece “Protocolos de Manejo dos Sistemas de Tratamento de Esgoto e Reúso de Águas” e capacitação das comunidades para gestão sustentável dos recursos hídricos. 

Entre as estruturas estão a experiência de bioágua, filtros e cisternas multifuncionais, no princípio da convivência com a região. “A casa do bem viver não é apenas um espaço físico, mas um lugar onde as necessidades de conforto e saúde são garantidas por políticas públicas. Por isso, estamos construindo não só sistemas de saneamento, mas também ambientes saudáveis, sem águas contaminadas e com destinos adequados para resíduos”, define Maria. 

Construção de direitos

A imagem simbólica das “moradas da convivência” rebate as propostas de décadas atrás que em se “combatia o clima” com ações emergenciais, como as doações de alimentos. "A ASA não inventou o conceito de convivência, mas o aprimorou a partir do aprendizado com as comunidades locais, transformando-o em um modelo replicável. Antes, o semiárido era visto apenas como o "polígono da seca", caracterizado por miséria e assistencialismo. Hoje, é um território reconhecido por sua diversidade, cultura e capacidade de resiliência", aponta Naidison.

A conquista das tecnologias favorecem a tradição camponesa na região e propostas sustentáveis de produção de alimentos / Maurício Pokemon

“Quando vemos esse cenário de casas com um sistema agroflorestal, horta comunitária, reúso de água, teto solar, cisternas de captação de água para consumo humano e produção de alimentos e várias outras tecnologias no sentido da preservação do bioma, no combate à desertificação e às mudanças climáticas, da preservação das sementes crioulas, da economia solidária, a garantia de direitos, dizemos que esse é o projeto de convivência que está sendo construído”, afirma Alexandre Pires, que já fez parte da coordenação executiva da ASA e hoje atua na diretoria de Combate à desertificação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Brasil de Fato acompanhou o Encontro Nacional da Articulação Semiárido (EnconASA) a convite da Articulação Semiárido Brasil (ASA), em novembro de 2024. O evento teve o apoio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), da Prefeitura Municipal de Piranhas, da Cáritas Francesa, e patrocínio da Fundação Banco do Brasil.

- Edição: Nathallia Fonseca.

Fonte:  Brasil de Fato

Temas: Agricultura campesina y prácticas tradicionales

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