Revista Biodiversidade, Sustento e Culturas 58 em Português
"O momento é difícil para a América Latina. Esta atravessa inquietudes de toda sorte. As alianças de proprietários de terras de uma direita continental alçam vôo... Em Biodiversidade estamos com os povos indígenas e daqui seguimos atentos para que possam fazer ouvir sua voz e sua versão dos fatos..."
Editorial
O trabalho no campo, a colheita e a coleta. Plantadores de batatas: velhos chapeludos bem camponeses, homens de idade madura um pouco mais urbanos, jovens e gurizada com pinta de que estiveram "no Norte", nas cidades norte-americanas: todos prontos para carregar. As fotos que acompanham este número vêm do estado de Puebla, no México, e nos conduzem a um campo que não deixa suas antigos maneiras e que já é, há anos, obrigado a plantar ao modo industrial. É o contraste entre as tradições antigas - que solucionavam a vida com o cuidado daqueles que sabiam que cultivar é vida plena, e não só trabalho rentável - e as formas novas, "empresariais", que exigem mais agrotóxicos, mais créditos, mais pacotes tecnológicos, e nem com isso o solo rende, desgastado depois de tantos anos de traição e droga aplicada a cada safra. Um debate entre os que vão à cidade ou aos Estados Unidos e os que ficam para ver o que mais pode ser feito com a terra. No México, o plantio da batata representa tudo isso. Rapidamente se tornou um cultivo para vender, para ter dinheiro vivo, e começou a fluir pelos circuitos que intermediam a comida do campo para a cidade do México. Nesses circuitos, há sujeitos chamados por todo mundo de "coiotes" (por que será?). Nas fronteiras de Puebla, já perto da cidade, eles "atacam" os caminhões carregados para comprar suas cargas por preços muito abaixo dos designados, com ameaças e maus modos.
E, ainda que sejam apenas um dos muitíssimos fatores que criam uma situação de fome tão devastadora, esses coiotes contribuem para a especulação, o monopólio e a má distribuição de alimentos. Este número de Biodiversidade, sustento e culturas trata dos fatores que formam uma crise alimentar, mas também de que esta é somente parte de um ataque mais geral que o capitalismo renova, cada vez que se mete em encrencas, para se readaptar e lucrar de novo. E, nesse meio tempo, leva de arrasto povos e comunidades rurais, bairros urbanos repletos dos excluídos de sempre.
É a eles, os dos bairros urbanos, que a crise alimentar, e agora essa recessão econômica mais generalizada, mais total, atingirá com toda a sua violência, porque são os mais desprotegidos de todos os mortais.
É sintomático que aqueles que têm seus próprios alimentos defendam-se mais, porque além de comida têm uma dignidade da qual não precisam vangloriar-se porque vem ao natural de uma vida desde sempre, de uma vida à margem, mas com horizonte histórico, coisas a respeitar e um senso do sagrado no mundo.
Enquanto elaborávamos este número, recebemos, com profunda preocupação, notícias que nos confirmam que as elites pretendem erradicar os povos indígenas, as formas de vida camponesas, suas estratégias que propiciam liberdade e consciência de horizonte. Esse é o drama boliviano que hoje espalha a inquietude e a esperança por toda a América Latina. Hoje, os povos marcham para defender o projeto de sua nova Constituição, e para defender a possibilidade de ter um país onde as rançosas aristocracias – nesse caso, proprietários de terras, fascistas e plantadores de soja – não mandem, não decidam, ao menos mais que os demais, que são maioria e que estão desde sempre nessas terras. É uma demonstração importante. Em setembro, as juventudes fascistas e bandalheiros, ajuntados em pelotões de choque, atacaram os indígenas da chamada Media Luna, em Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, tentanto fazer o conflito evoluir para uma guerra civil, a partir de emboscadas e metralhamentos por parte de mercenários armados. Sabe-se de pelo menos 30 indígenas assassinados nesses dias cruentos.
O momento é difícil para a América Latina. Esta atravessa inquietudes de toda sorte. As alianças de proprietários de terras de uma direita continental alçam vôo com os aristocratas de Santa Cruz, Guayaquil, Paraguai, mais os fazendeiros argentinos e brasileiros com pretensões de estabelecer uma "república unida da soja" onde o modelo agroindustrial seja mais importante do que as vidas e os territórios, onde o trabalho escravo seja a norma, onde não importe a contaminação transgênica, e nem a devastação de grandes extensões de floresta.
O sinal de alerta mais recente vem da Colômbia, onde, após anos de guerra suja, os povos indígenas, as comunidades camponesas de todo país, decidiram se manifestar em oposição às tentativas de fazê-los desaparecer. As Forças Armadas e a polícia reprimiram a sangue e fogo os civis desarmados. Os meios de comunicação justificam o massacre acusando falsamente os indígenas de estarem sendo controlados e infiltrados pela guerrilha.
Na mobilização, as representações indígenas de Cauca, molestadas, expressam uma verdade que está no coração do que este número de Biodiversidade quer trasmitir: "As demandas legítimas são ignoradas. O exercício de direitos e liberdades é negado, o território é entregue a transnacionais, a guerra suja assassina membros da comunidade e líderes, os meios de comunicação enganam e promovem o terror e a manipulação, as leis despojam, o Plano Colômbia converte territórios em palco de operações ; o governo, respaldado pelos Estados Unidos, fecha o espaço para o conflito político civilista e promove a guerra para, a seguir, tachar de terroristas os que protestam. O governo promove a insurgência, fabrica-a, instiga-a. O resultado disso é que o movimento indígena e popular, cansado, encurralado, digno, se mobiliza em uma ação de fato para dar a conhecer sua agenda e exigir que ela seja respeitada. A resposta é marcar-nos como terroristas, atacar-nos como se atacaria um exército, e, enquanto fazem isso, apresentam um discurso democrático e civilista como se não tivessem obrigado os povos ao desespero. O que quer o governo? Que voltemos silenciosamente a ser vítimas da guerra suja a nos deixar despojar e assassinar, sem protestar, a deixar nos meterem em uma guerra contra nós mesmos?"
Em Biodiversidade estamos com os povos indígenas e daqui seguimos atentos para que possam fazer ouvir sua voz e sua versão dos fatos.
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