‘Primitivos’ nos dizem o que devemos fazer

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"Claude Lévy Strauss em seu livro Saudades do Brasil (1994), escreve: “os que folhearem este livro deverão precaver-se contra outra ilusão: acreditar que estes índios completamente nus (...) ofereçam a imagem de uma humanidade primitiva (...) Os povos do Brasil Central e de outras partes são os resíduos enfurnados de civilizações mais altas e mais numerosas”. Por sua vez, o cientista Adalberto Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI) constata que “os conhecimentos tradicionais encerram vasto conjunto que a ciência demoraria muito tempo para apropriar-se. E precisa ter essa intenção”.

As duas citações são feitas por Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 17-07-2015.

Eis o artigo.

No momento em que voltaram à tona discussões no Congresso sobre o Marco Legal da Biodiversidade – com restrições feitas pelos que o viram como prejudicial às comunidades tradicionais e indígenas, que deixariam de receber pagamento de empresas e instituições que utilizem seus conhecimentos tradicionais –, estudo das Universidades Stanford, Princeton e California (Yahoo, 25/6) indica que está ocorrendo a sexta extinção em massa de espécies da biodiversidade – considerada a maior riqueza do planeta. A taxa de extinção é cem vezes maior do que em qualquer outro período. E seria alimentada pelo desmatamento, por mudanças climáticas e pela poluição. Só na área dos animais, por exemplo, a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) diz que 41% das espécies de anfíbios e 21% das de mamíferos já estão ameaçadas pela extinção.

Não por acaso, estão vindo a público, nesta hora, livros importantes para a tomada de consciência da sociedade a respeito do problema. A Enciclopédia de Medicina Tradicional Matsés, por exemplo, documenta em 500 páginas, compiladas durante anos por cinco xamãs nascidos no Brasil e no Peru, a rica biodiversidade de suas áreas e as valiosas possibilidades na medicina tradicional. O texto detalha como cada espécie na área oferece recursos para enfrentar a variedade de doenças. Mas só em língua nativa, “para garantir que o conhecimento medicinal” não seja roubado “por empresas ou pesquisadores”, como já aconteceu. E não haverá uma tradução. A compilação foi também uma das formas de atrair a atenção de jovens que resistiam a processos tradicionais de formação de xamãs, que levam anos e exigem muitas abstinências e sacrifícios. É um texto que ensina, ainda, como reconhecer cada doença por seus sintomas, que plantas usar, como preparar o medicamento. E ainda tem uma fotografia de cada uma.

Outra publicação importante na área, e que também acaba de vir a público, é o Manual de Remédios Tradicionais Yanomami, segundo volume da série Saberes da Floresta Yanomami, fruto da parceria entre a Hutukara Associação Yanomami e o Instituto SocioAmbiental. Traz estudos de pesquisadores yanomami sobre diversas áreas do conhecimento e pesquisas de outras procedências.

É um trabalho que reúne pesquisas do etnobotânico William Milliken, do Royal Botanic Gardens Kew, e do antropólogo Bruce Albert, do Institut de Recherche pour le Development (IRD), sobre plantas tradicionais naquela cultura. A publicação foi postergada pela necessidade de encontrar formatos jurídicos de proteção aos conhecimentos. Nos anos de 2012 e 2013 houve oficinas a respeito.

A relação, no livro, de problemas que podem ser tratados com espécies de biodiversidade é impressionante. E vale a pena transcrever pelo menos alguns deles: doenças da pele, coceiras decorrentes de feitiçarias e de contatos com aranhas caranguejeiras, bernes, sapinho; dores de dentes; doenças e infecções nos olhos, no ouvido, na cabeça e lombar; dores no corpo; ferroadas de arraia, picada de escorpião, de cobra e de tucandeiras; bichos de pé; leishmaniose; queimaduras; doenças intestinais, diarreias nas crianças; vermes; rinite; inflamação na garganta; gripe; dores no peito; vômito; tonturas; falta de apetite; cólicas menstruais; hérnias inguinais.

E há um milenar conhecimento associado a cada remédio. Como escreve no livro Justino Yanomami, nada ali é acaso: “Minha própria mãe coletava esses remédios e me dizia ‘vou escolher com cuidado, não vou dar depressa outra coisa que não é, vou procurar devagar e achar!’ (...) E, finalmente, achava. Então ela dizia: ‘Estas coisas aqui são riori wekixi!’. É assim que antigamente a gente mostrava de verdade os remédios! Não mostrava uns que eram parecidos, mostrava os que eram de verdade. Esses riori wekixi são difíceis de reconhecer. Só alguém que os conhece, procurando muito, revirando folhas, consegue achar e trazê-los”. É exatamente o que o livro faz.

Com tanto conhecimento compilado, é preciso saber o que vamos fazer com os lugares onde está grande parte da biodiversidade – e que se perde aos saltos. Na Amazônia Legal, desmatamos 248 mil quilômetros quadrados entre 1997 e 2013, segundo o IBGE (20/6). Pelo menos 15% da Amazônia Legal já foram desmatados. A Mata Atlântica já perdeu 85,5% da área florestal; os pampas, 54,2%; o Cerrado, 49,1%; a caatinga, 46,6%; e o Pantanal, 15,4%.

E que vamos fazer, se em muitos lugares indígenas continuam a ser assassinados (138 no ano passado), a se suicidar (48) e a ser perseguidos por quem quer suas terras, sem se importar se com eles se perde um conhecimento inestimável sobre a biodiversidade nativa? Na recente visita do papa Francisco à América Latina, os índios lhe pediram ajuda. Como diz Claude Lévy Strauss em seu livro Saudades do Brasil (1994), “os que folhearem este livro deverão precaver-se contra outra ilusão: acreditar que estes índios completamente nus (...) ofereçam a imagem de uma humanidade primitiva (...) Os povos do Brasil Central e de outras partes são os resíduos enfurnados de civilizações mais altas e mais numerosas”.

Também vale a pena lembrar palavras do cientista Adalberto Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI): “Os conhecimentos tradicionais encerram vasto conjunto que a ciência demoraria muito tempo para apropriar-se. E precisa ter essa intenção”.

Mas como fazer, se em boa parte do território nacional continuamos a despejar agrotóxicos em números inacreditáveis, que dizimam a biodiversidade? São 6,9 kg por hectare/ano – eram 2,7 kg em 2002. Diz o IBGE que os mais usados são perigosos (64,1%) ou muito perigosos (27,7%).

O tema é muito forte: diz a Convenção da Biodiversidade, da ONU, que as perdas nessa área chegam a US$ 1,4 trilhão (equivalentes a 5% da economia mundial) por ano. O que não seria possível fazer, sem essas perdas, só na área de saúde, por exemplo?

Fuente: Instituto Humanitas Unisinos

Temas: Agricultura campesina y prácticas tradicionales, Pueblos indígenas

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