Organizações: “Nem todos estão comemorando Svalbard”
Após meses de muita publicidade e com o apoio aparentemente unânime da comunidade científica, foi inaugurado em 26 de fevereiro o “Cofre Global de Sementes”, no arquipélago de Svalbard, na Noruega. Embora a imprensa em geral esteja exaltando a iniciativa, algumas organizações internacionais que promovem o manejo sustentável da biodiversidade e o controle dos agricultores sobre os recursos genéticos levantam sérias preocupações a este respeito.
Reproduzimos aqui uma compilação de documentos divulgados por essas organizações esta semana, que merecem nossa atenção.
“Nem todos estão comemorando Svalbard”O cofre, construído numa geleira gigante no Pólo Norte, tem capacidade para guardar 4,5 milhões de amostras de sementes. A idéia é que se algum desastre de grandes proporções vier a afetar a agricultura mundial, como uma chuva radioativa após uma guerra nuclear, os países poderão recorrer ao cofre para obter sementes e reiniciar a produção de alimentos.
Entretanto, este chamado “sistema de segurança” para a biodiversidade do qual depende a agricultura mundial é infelizmente mais um passo na estratégia destinada a converter o armazenamento “ ex situ” (em bancos de sementes fora de seu lugar de origem) no mecanismo dominante -- em verdade, o único mecanismo -- para a conservação da biodiversidade dos cultivos.
O cofre cria um falso sentido de segurança em um mundo em que a agrobiodiversidade presente no campo continua sendo erodida e destruída a uma velocidade crescente, ao mesmo tempo em que aumentam os problemas de acesso ao sistema internacional de conservação ex situ.
Existem atualmente no mundo 1.500 bancos ex situ que, em conjunto, são incapazes de guardar e cultivar a diversidade cultivada. Milhares de amostras de sementes morreram durante o armazenamento, muitas outras foram inutilizadas por falta de informação básica sobre elas e um sem número perdeu suas características únicas ou foi geneticamente contaminada durante os processos de multiplicação ou rejuvenescimento.
Tudo isto aconteceu em todo o sistema ex situ e não exclusivamente nos bancos de germoplasma dos países em desenvolvimento. Assim, a questão não é ser a favor ou contra os bancos de sementes, mas sim de se depender exclusivamente de uma estratégia de conservação que sofre de muitos problemas intrínsecos.
Mas o problema mais profundo de concentrar-se a conservação da biodiversidade agrícola no armazenamento ex situ de sementes (que o cofre reforça) é que ele é fundamentalmente injusto. É um sistema que coleta sementes de variedades únicas entre as comunidades de agricultores, indígenas e povos tradicionais que originalmente as desenvolveram, selecionaram, protegeram e compartilharam e que, então, as armazena e as torna inacessíveis a essas mesmas comunidades. Para se ter acesso às sementes dos bancos, é necessário estar integrado a um marco institucional que a maioria dos agricultores do planeta sequer conhece. Dizendo de forma mais simples, o conjunto da estratégia ex situ responde às necessidades dos melhoristas e das empresas e não dos agricultores.
O sistema opera sob a suposição de que uma vez tendo as sementes dos agricultores entrado em algum banco de armazenamento, elas passam a pertencer a quem as depositou, e negociar direitos sobre o material -- como propriedade intelectual ou outro direito -- passa a ser atribuição dos governos ou da própria indústria sementeira.
O governo norueguês é o responsável final pelo cofre e atualmente é considerado justo e confiável, mas não há garantias de que as políticas do país não venham a mudar. Isto é reconhecido pelo próprio governo norueguês, que redigiu acordos a serem assinados com os depositários que duram somente dez anos e que contêm cláusulas que permitem dar fim ao acordo se determinadas políticas mudarem. Além disso e talvez mais importante, o governo norueguês não tomará decisões de forma autônoma. As decisões serão tomadas em conjunto com o Fundo Global para a Diversidade Agrícola, uma entidade privada com forte financiamento privado e empresarial.
Já existem aspectos preocupantes relacionados com o acesso ao cofre. Em termos práticos, não se poderá armazenar sementes no cofre, a não ser que elas provenham de um banco de sementes que já as mantenha duplicadas. Além disso, os depositantes não poderão guardar sementes de variedades que já estejam no cofre. E a regra é que só os depositantes ou aqueles por eles autorizados podem ter acesso às suas próprias coleções em Svalbard.
O Grupo Consultivo sobre Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR, em inglês), que controla 15 bancos internacionais com os cultivos alimentícios de maior uso no mundo (incluindo a Embrapa), já está enviando caixas com amostras de sementes, o que implica em que os centros do CGIAR serão os depositantes da maioria das sementes guardadas no cofre, dando-lhes um controle quase exclusivo sobre o acesso.
Dos 19 institutos que se registraram no cofre até o momento, só 3 são bancos de sementes nacionais de países em desenvolvimento. O cofre, portanto, não é uma caixa de segurança para todos, é antes de mais nada um depósito do CGIAR. Na prática, isto significa que muitos países em desenvolvimento que desejem duplicar suas coleções em Svalbard não poderão fazê-lo de maneira direta, pois isto seria visto como uma duplicação do que o CGIAR já depositou. Portanto, não terão acesso direto às sementes que se mantenham no cofre e que podem ser provenientes de seus próprios territórios.
Isto provavelmente não causa muitas preocupações atualmente, já que os governos têm distintas fontes de respaldo para acessar as sementes, mas o contexto seria muito diferente no caso de um desastre maior, onde se tomaria decisões acerca de recursos fundamentais e únicos que em princípio só restariam em Svalbard. E quanto aos agricultores, estes não têm praticamente nenhuma possibilidade de acessar diretamente as sementes do cofre.
Mas para além das possibilidades de um grande desastre, é importante que se pergunte quem realmente se beneficia de um sistema ex situ para o qual contribui o cofre. Na medida em que poucas transnacionais que já controlam mais da metade dos 30 bilhões de dólares que se negociam no mercado mundial de sementes estão comprando os sistemas públicos de melhoramento vegetal, e que os governos estão abandonando os programas de melhoramento, os beneficiários últimos serão as próprias corporações que estão na raiz dos processos de destruição da diversidade dos cultivos.
Vale destacar que, entre os doadores do cofre, destacam-se a Dupont e a Syngenta, duas multinacionais da agroquímica que controlam uma parte importante das licenças referentes às biotecnologias e à produção de plantas transgênicas.
Se as empresas patrocinadoras das culturas transgênicas levam a sério a necessidade de salvaguardar os recursos genéticos das plantas, é porque diversos indicadores atestam a contaminação das plantas convencionais pelas plantas geneticamente modificadas. O CGIAR, que abriga em seus bancos de genes mais de meio milhão de amostras de sementes das principais espécies cultivadas, estimou em 2004 que, no curto prazo, a probabilidade de contaminação nas coleções de bancos de sementes seria grande para o milho e a colza e mediana para o arroz e o algodão -- o que demandava atenção imediata.
Essa contaminação coloca também em perigo as fontes de diversidade no interior de uma mesma espécie, isto é, os centros de origem, localizados em algumas partes determinadas do planeta. Por exemplo, no México, centro de origem da diversidade do milho, uma contaminação de variedades locais pelas variedades transgênicas comerciais norte-americanas foi revelada em 2001 pelas pesquisas da universidade de Berkeley, ainda que, na época, o país não aceitasse os transgênicos.
Nota-se portanto que o cofre, antes de mais nada, visa a preservação das sementes não contaminadas por transgênicos, por incentivo da própria indústria que está promovendo a contaminação.
Se os governos estivessem realmente interessados em conservar a biodiversidade relacionada à agricultura e à alimentação, fariam ao menos duas coisas. Primeiro, poriam maior prioridade em concentrar seus esforços para apoiar a diversidade nos campos e nos mercados de seus países, e não apostariam exclusivamente em grandes bancos de germoplasma centralizados. Isto implica em deixar as sementes nas mãos dos camponeses locais, junto com suas práticas agrícolas ativas e inovadoras, respeitando e fortalecendo o direito das comunidades de conservar, produzir, melhorar, trocar e vender sementes. Mas isto não acontecerá ao menos que os governos mudem totalmente as políticas e regulamentações agrícolas e deixem de promover a industrialização e os mercados controlados pelas grandes multinacionais ao custo de impedir que os camponeses alimentem livremente suas próprias comunidades e países. Isto implica em converter a soberania alimentar na base das políticas agrícolas e não continuar empurrando a agricultura para a destrutiva seara da integração global dos mercados.
No dia da inauguração do cofre, o governo da Noruega se comprometeu a dar 0,1% do dinheiro gasto nas vendas de sementes comerciais para apoiar os Direitos dos Agricultores, e desafiou outros governos a fazer o mesmo. Enfim o governo norueguês está admitindo que até mesmo o mais seguro banco de armazenamento de sementes não é a solução final. De fato, a conservação da biodiversidade agrícola depende de uma estratégia coerente in situ (nas comunidades) e ex situ, e a necessidade de se apoiar a conservação promovida pelos agricultores locais é urgente.
Adaptado de / maiores informações em:- New from GRAIN - Faults in the Vault: not everyone is celebrating Svalbard, fevereiro de 2008. aquí y aquí
- ETC Group: Svalbard's Doomsday Vault: The Global Seed Vault Raises Political/Conservation Debate, 26/02/2008. www.etcgroup.org / aquí
- Le Monde Diplomatique Brasil - Coexistência, engodo dos tolos, abril de 2006. aqui
*** Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos
Boletim Número 382 - 28 de fevereiro de 2008
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