Memórias e saberes: “Agroecologia em rede” celebra 20 anos de histórias e experiências em agroecologia
“Temos asas e raízes. A mente voa livre por todo o universo, o corpo se harmoniza com a terra, mãe e amante. O tempo de crescer e se soltar não se faz anunciar por um relógio – a gente tem que ter tempo para viver, pra viver o tempo que leva pra viver, e pra perceber em nós o equilíbrio do universo em que asas e raízes obedecem a mesma lei". (Sonia Hirsch)
Mais de 3 mil experiências em agroecologia no Brasil e em outros países da América Latina estão sistematizadas e cadastradas na plataforma “ Agroecologia em Rede”, uma ferramenta virtual de Ecologia de Saberes a serviço da construção do movimento agroecológico. Na plataforma, estruturada a partir de tecnologias da informação em software livre, estão registradas experiências de agricultoras e de agricultores, seus relatos de vida, as memórias de projetos e organizações, entre outras informações sobre os movimentos pulsantes da agroecologia em diferentes territórios e temporalidades.
Concebido há cerca de 20 anos no âmbito de um projeto sobre plantas nativas no Nordeste, realizado em parceria entre a AS-PTA e a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o AeR serve a diversos propósitos na perspectiva de acúmulo e partilha de saberes ao potencializar a visibilidade das experiências de agroecologia dos territórios com informações preciosas para a construção do conhecimento agroecológico. É a partir de processos mapeantes que as experiências são sistematizadas e cadastradas na plataforma e ficam à disposição para pesquisas, intercâmbios, análises e estudos sobre a agroecologia no Brasil e em outros países da América Latina.
Atualmente, por meio de uma cooperação técnica com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) iniciada em 2018, o Agroecologia em Rede vivencia um processo de reestruturação da sua interface. A plataforma está leve, moderna e adaptada a todos os tipos de dispositivos, em especial celulares e tablets. E para que toda essa base de dados, informações e relatos pudessem estar disponíveis como um bem comum, nutrindo e inspirando outros processos, a equipe do AeR promoveu um grande trabalho coletivo de organização da memória.
Frente de Acervo: memória coletiva é cuidado coletivo
Ao longo de 20 anos de existência, o Agroecologia em Rede (AeR) foi construído por muitas mãos, em diferentes tempos históricos e lógicas diversas de mapeamento e sistematização. Por isso, a reestruturação organizacional e metodológica iniciada em 2018, chamada de “Frente de Acervo”, chega como uma lapidação de toda a memória preciosa que os caminhos do AeR puderam garimpar.
O primoroso trabalho de organização da memória foi conduzido pela equipe do Agroecologia em Rede, composta por André Biazoti, Natália Almeida, e incorporada a partir do ano passado por Nemo Côrtes, graduado em História, técnico em Agroecologia e pesquisador das áreas de memórias, resistências e educação do campo.
Na Frente de Acervo, Nemo desenvolve a nobre tarefa de conferir o olhar histórico ao processo de construção da memória do AeR. “Um dos maiores desafios da Frente foi lidar com o grande volume de dados das experiências cadastradas em todos esses anos, pois estamos falando de uma plataforma pioneira que conseguiu fazer a transição agroecológica no meio digital, sempre pautada pela tecnologia livre. E, ao conectar diversas experiências e potencializar a construção de redes e espaços de denúncias e anúncios, o AeR traduz um pouco dessa grandeza que é o movimento agroecológico brasileiro, desse território imenso que é o nosso continente na América do Sul”, afirma Nemo.
Outra observação importante do ponto de vista dos mapeamentos é a conexão desses processos com as mobilizações e encontros do movimento agroecológico. “Observamos a interconexão da plataforma com os encontros da ANA e da ABA como momentos importantíssimos de convergência. Identificamos que picos de cadastro no site estão atrelados diretamente aos anos em que ou o ENA ou o CBA utilizaram a plataforma como mapeamento e inscrição das atividades dos encontros. Isso mostra a relação com a articulação e como a plataforma acaba sendo reflexo da complexidade do movimento agroecológico nacional”, explica Nemo.
Somos feitas/os de histórias
“Enquanto estamos vivos, nos alimentamos pelo menos três vezes por dia. E a gente precisa entender que, mesmo uma simples salada que comemos hoje, foi plantada por alguém meses atrás. Que tipo de compromisso eu posso ter com as pessoas que garantem o meu alimento? Nós rompemos com paradigmas mercantilistas quando deixamos de ser pessoas que apenas vão lá comprar seus alimentos e passamos a ser coagricultoras/es, a fortalecer a biodiversidade e a agricultura familiar”, afirma Ariel Molina, cofundador da Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA-Brasil), uma grande rede com mais de 150 pontos em todo o país que conecta produtoras/es e consumidoras/es em relações de parceria.
A CSA-Brasil é uma das mais de 3 mil experiências cadastradas no AeR e que ajuda a tecer uma grande e diversa rede agroecológica espalhada por quase todos estados do Brasil e alguns territórios latinoamericanos. Mergulhar nesse acervo é ter contato com o acúmulo conjunto e descentralizado construído por múltiplas organizações, movimentos e coletivos em todo o país. Longe de ser uma fotografia estática da realidade, passível de ser encaixada em análises herméticas, a memória é viva e pulsante.
A história do AeR se confunde com os caminhos trilhados pelo movimento agroecológico ao longo de sua estruturação. Por isso, além dos artigos acadêmicos, entrevistas e documentos internos da plataforma utilizados para a organização da memória do AeR, também foi elaborada uma cronologia que divide a iniciativa em ciclos, de acordo com a história do movimento agroecológico no Brasil.
“Desde o início, a sistematização de experiências agroecológicas era vista pela ideia de um portal que fosse usado pelas agricultoras e agricultores, agentes da experiências, para compartilhar documentos/textos/vídeos produzidos pelos próprios grupos/experiências. Uma memória coletiva da agroecologia”, explica a docente da Universidade de Brasília (UnB), Flaviane Canavesi, que participou da criação e estruturação da iniciativa desde os seus primeiros anos.
O Ciclo 1, denominado “Pré – Agroecologia em Rede”, percorre os anos de 1980 a 2000, e rememora o surgimento da ideia embrionária que mais tarde viria a se tornar o “Agroecologia em Rede”. É na década de 1980 que se inicia a construção de catálogos que destacam a importância de sistematizar as experiências agroecológicas, com foco em tecnologias sociais alternativas ou apropriadas.
Entre os anos de 2000 a 2010 tem-se o Ciclo 2, ou seja, a “Criação de uma rede virtual a serviço das redes reais”, quando o sistema de informação é moldado a partir da ideia coletiva de aproximar a pesquisa acadêmica dos processos sociais do campo agroecológico. O ciclo também é marcado por mobilizações em torno dos Encontros Nacionais de Agroecologia em consonância com mutirões nacionais para alimentar o banco de dados, resultando na identificação de mais de mil experiências georreferenciadas, as quais compuseram o Mapa Nacional das Expressões da Agroecologia.
Já no Ciclo 3, que compreende os anos de 2010 a 2018, amadurece-se a ideia de criação da plataforma Intermapas, resultado do processo de integração de quatro banco de dados: Agroecologia em Rede, Cirandas (derivado do Farejador da Economia Solidária) e Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde. Após um período de perda de investimentos que se reflete em um hiato de sistematizações, a plataforma se reacende entre os anos de 2018 e 2020, a partir da reestruturação geral do sistema possibilitada por meio da parceria com a Fiocruz. Neste Ciclo 4, o AeR é relançado após uma profunda alteração na sua interface. Esse processo de retomada é fruto da articulação entre a Fiocruz, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e ABA-Agroecologia.
Com o passar do tempo, as inovações tecnológicas e o amadurecimento intelectual em torno da importância das cartografias sociais para a agroecologia e o avanço do movimento agroecológico brasileiro, a plataforma se configura atualmente como um sistema mais complexo. Além de contribuir com a sistematização das experiências e com a construção coletiva do conhecimento agroecológico, tornou-se uma plataforma política e pedagógica que se apresenta como um caixa de ferramentas para movimentos sociais e organizações articularem redes, estimularem convergências e diálogos entre iniciativas a partir do mapeamento coletivo e descentralizado de experiências.
De acordo com o integrante da secretaria executiva do AeR, André Biazoti, hoje a plataforma está organizada em um processo que envolve o estudo, a atualização e a reestruturação do sistema do AeR, além do fomento de atividades presenciais e virtuais de intercâmbio e articulação envolvendo um conjunto diverso de redes e organizações. “Hoje, estamos em um processo rico de consolidação e avanço no modelo de gestão. Por meio do diálogo horizontal e colaborativo entre diversas instituições e projetos de mapeamento, o AeR se estrutura a partir do conceito de rede e do comum, compartilhando as responsabilidades e os esforços da construção do conhecimento”, explica.
Horizontes e protagonismos
O coordenador executivo da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, Paulo Petersen, ressalta que o horizonte atual do AeR é desenvolver as autonomias e processos autogestionários que valorizem a diversidade. “Estamos falando de um exercício coletivo de democratização da fala entre os diversos atores e atrizes protagonistas da agroecologia, colocando todo mundo no mesmo patamar de detentora/or de conhecimento, seja acadêmica/o ou agricultora/or, todas/os com suas histórias de vida valiosas para compartilhar. Por isso, a importância de mudar a cultura política para introduzir a cultura da ação em rede. O AeR é uma ferramenta para ajudar a construir essa cultura política no movimento agroecológico”, afirma Petersen.
Para que o AeR continue se firmando como esse grande ponto de memórias e convergências, é fundamental que seja amplamente fortalecida em seu propósito, segundo Flaviane Canavesi. “É importante seguir alimentando a plataforma, torná-la uma ferramenta de uso para muitas instituições que ainda não assimilaram seu potencial. Promover a articulação com universidades e movimentos sociais, e também envolver as instituições que já incidem nesse campo. Outra estratégia interessante é fazer com que as bases dos movimentos sociais alimentem a plataforma e que a ANA tenha um protagonismo no AeR”, afirma Canavesi.
Ilustrações – Patrícia Nardini
Fonte: Em Pratos Limpos