Financiamento pela indústria interfere nos resultados de estudos sobre alimentos transgênicos

Por AS-PTA
Idioma Portugués

"Um artigo científico publicado em dezembro de 2010 na revista Food Policy evidencia como os conflitos de interesse envolvendo a filiação de pesquisadores às indústrias de biotecnologia influenciam os resultados de pesquisas que avaliam os riscos de alimentos transgênicos para a saúde."

Um artigo científico publicado em dezembro de 2010 na revista Food Policy (uma das mais importantes publicações internacionais na área de economia e política agrícola) evidencia como os conflitos de interesse envolvendo a filiação de pesquisadores às indústrias de biotecnologia influenciam os resultados de pesquisas que avaliam os riscos de alimentos transgênicos para a saúde -- mesmo aquelas publicadas em revistas científicas. O estudo foi realizado por pesquisadores da Universidade Católica Portuguesa.

 

O artigo relembra exemplos já demonstrados de interesses industriais que afastaram a pesquisa científica do seu objetivo primordial de difundir conhecimento independente: houve no passado, sobretudo em pesquisas sobre tabaco, álcool e medicamentos, claros indícios de perigos para a saúde pública que foram encobertos, enquanto as vantagens ou inocuidade dos produtos eram exageradas em estudos que recebiam dinheiro de multinacionais e depois eram publicados, ou eram elaborados por cientistas funcionários dessas multinacionais.

 

Para a realização do novo estudo, os pesquisadores selecionaram, segundo critérios compatíveis com os objetivos da pesquisa, 94 artigos científicos publicados em duas bases de dados (Medline / National Library of Medicine, EUA; e Web of Science / ISI Web of Knowledge, Thomson Scientific). Em função de seu conteúdo e conclusões, os artigos foram classificados por dois pesquisadores independentes como “favoráveis”, “desfavoráveis” ou “neutros” em relação aos alimentos geneticamente modificados. Um terceiro pesquisador independente classificou os mesmos artigos quanto ao financiamento da pesquisa, filiação dos pesquisadores e conflito de interesse. Nenhum dos três pesquisadores teve conhecimento prévio da classificação produzida por seus pares e todos só tiveram acesso às seções dos artigos relevantes às suas respectivas tarefas.

 

A partir da análise estatística dos resultados encontrados, os pesquisadores observaram que a existência de conflito de interesse, fosse ele através do financiamento ou do vínculo dos pesquisadores envolvidos, estava associado a resultados de pesquisa favoráveis aos alimentos transgênicos.

 

O estudo indicou ainda que mais de metade (52%) dos artigos analisados não indicaram a fonte de financiamento e, mais importante ainda, que na maioria destes artigos pelo menos um dos autores tinha ligações com a indústria (73% do total). Por outro lado, em 84% dos artigos em que o financiamento era indicado nenhum dos autores tinha ligações com a indústria. E confirmou-se que nos artigos que não indicaram a fonte de financiamento foi maior a frequência de conclusões favoráveis aos transgênicos.

 

Segundo os autores, estes resultados corroboram a visão de que todas as afiliações profissionais dos pesquisadores deveriam ser explicitadas em publicações científicas sobre análises de risco de alimentos transgênicos, uma vez que a existência de conflitos de interesse pode interferir nos resultados dos estudos.

 

A pesquisa cita diversos exemplos de editoriais e artigos já publicados manifestando preocupação com relação a este problema. Em 2001, por exemplo, diversos editores das principais revistas médicas expressaram estas preocupações, manifestando, em particular, forte oposição a “acordos contratuais que negam aos pesquisadores o direito de examinar os dados de maneira independente ou de submeter o texto para publicação antes de obter o consentimento do financiador” (Davidoff et al., 2001). Segundo os autores, embora as revistas médicas tenham ao longo dos últimos anos implementado algumas mudanças em suas políticas de transparência para melhor lidar com os conflitos de interesse (Smith, 1998), trabalhos recentes mostram que estas questões ainda não foram resolvidas de maneira satisfatória (Jagsi et al., 2009; Lo, 2009; Wingate, 2009). O estudo cita ainda um artigo publicado na revista Nature Biotechnology em 2009, que apresentou acordos contratuais, restrições à publicação e outras limitações que afetam a integridade científica como prática comum em pesquisas de análise de riscos de plantas transgênicas (Waltz, 2009).

 

Os autores ressaltam que, de fato, pesquisadores independentes que queiram investigar os potenciais impactos das plantas transgênicas são muito limitados para conduzir seus estudos em função dos acordos de tecnologia, que efetivamente permitem às empresas proibir qualquer pesquisa sobre seus produtos sem que haja uma autorização explícita do detentor da tecnologia, mesmo depois de o produto ter sido aprovado e colocado no mercado. O mesmo não acontece com os produtos farmacêuticos patenteados, sobre os quais a indústria não limita a realização de pesquisas relativas à eficácia ou impacto.

 

Nas conclusões do estudo, os pesquisadores ressaltam que os dados analisados reforçam a necessidade de que todas as afiliações, tanto financeiras como profissionais, deveriam ser abertamente declaradas em publicações científicas: “Em situações onde as avaliações de riscos à saúde ou avaliações nutricionais de produtos transgênicos servem para informar tomadores de decisão, os procedimentos deveriam ser desenvolvidos de modo a minimizar o risco de as decisões serem tomadas com base em resultados de pesquisas que foram influenciadas por conflitos de interesse. Isto pode ser alcançado dando-se preferência a estudos científicos em que nenhum conflito de interesse possa ser observado.”

 

Esta sábia recomendação vem sendo solenemente desprezada pelos doutores da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que avalia e autoriza produtos transgênicos no Brasil. Os estudos que baseiam a análise de riscos e a tomada de decisão são elaborados e fornecidos pelas próprias empresas requerentes das liberações comerciais. Mais que isso, várias partes importantes destes estudos (que jamais foram publicados em revistas científicas) relativas à avaliação de riscos são omitidas dos próprios membros da Comissão a título de “sigilo comercial”. Citamos no último Boletim ( 538) que no processo (ainda em curso) de liberação comercial do feijão transgênico o acesso à íntegra dos dados foi negado até mesmo a um membro da Comissão e relator do processo.

 

Além disso, não se sabe se, na prática, os membros da CTNBio têm cumprido a regra de assinar uma declaração de conduta quando tomam posse, segundo a qual se abstêm de votar em processos em que há conflito de interesse. No caso do feijão transgênico, por exemplo, o pesquisador responsável pelo projeto e por seu pedido de liberação comercial é integrante da Comissão.

 

- A íntegra do artigo em inglês (incluindo as referências completas das citações reproduzidas no texto acima) está disponível aqui.

 

- A referência do artigo é a seguinte:

 

Diels, J. et al., 2011. Association of financial or professional conflict of interest to research outcomes on health risks or nutritional assessment studies of genetically modified products. Food Policy, 36 (2011), pp.197-203.

 

Fuente: AS-PTA

Temas: Transgénicos

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