“Eles mataram a gente quando mataram o rio”

Idioma Portugués
País Brasil

Nossa equipe acompanhava o seminário dos atingidos por barragens, que acontecia na cidade de Betim, na Região Metropolitana de BH, quando foi convidada a visitar a casa do senhor Sebastião, que mora na beira do Rio Paraopeba. Ele queria muito mostrar para os repórteres a situação do leito após o rompimento da barragem da Vale. A relação do aposentado com o rio é tão forte, que no bairro onde mora, Colônia Vila Izabel, ele é conhecido como Zé Dend’água.

Não é para menos. Dos 76 anos de vida, 40 Sebastião Adão da Cunha passou à beira do Paraopeba, 25 deles como pescador. Agora, além de pescador, ele também é integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) desde que o Rio Paraopeba foi tomado pela lama de rejeitos da barragem da Vale, que rompeu em 25 de janeiro de 2019, em Brumadinho (MG). 

Zé Dend’Água

“Eu moro aqui há 39 anos e 8 meses. Eu falei com vocês que ia trazer vocês aqui no rio pra ver a situação. Essa água era clarinha, você entrava ali no rio até a cintura e dava pra ver tudo. Quando você pegava na mão, ela [a água] era cristalina. Agora, olha como está! Virou um barro. Morreu peixe aqui na lama que pesava 100 quilos. O que todos os pescadores tão pedindo é para limpar o rio. Deixar o rio do jeito que ele estava. Pra gente pescar, ter um lazer. Ter alegria na vida de novo. O rio pra nós é a nossa vida. Sem ele a gente não vive. Nós vive sem tudo, até sem a comida, mas sem a água não”, lamenta.

“Nós somos 48 pescadores. Tem muitos que hoje choram porque era desse rio que a gente tirava um 'trem' pra nos alimentar, um peixe. Agora, se a gente quiser comer um peixe tem que comprar e a gente não sabe nem de quem vai comprar. Aqui era o nosso lazer. A gente vinha pra cá, dormia aqui, não tinha perigo nenhum. E agora? Nós vamos pescar onde? Eu tenho 30 molinetes em casa, mas não posso pescar. Acabou. A minha alegria acabou. Acabou por causa desse dano que a Vale causou. E não é só aqui não. Ela fez isso em vários lugares. Ela tá acabando com os municípios e os governos não estão fazendo nada. Não tomam nenhuma providência. Não tão nem aí pra nós, que é somos de uma classe pobre, que vive de um salário mínimo. Que na verdade é um salário de fome. Porque enquanto um deputado, um vereador tá ganhando 20, 30 mil reais, nós ganhamos R$ 900. Será que eles têm mais valor do que nós?”, questiona.

O medo do rejeito

Por ser um bairro ribeirinho, a Colônia Vila Izabel já enfrentou diversas inundações. Mas, desde 2011, não vivenciava um novo episódio. Na noite de sexta-feira (24), véspera do aniversário de um ano do rompimento da barragem da Vale, os moradores temiam não só a enchente vinda do Rio Paraopeba, mas também os rejeitos vindos com ela. E esse também era o temor do seu Sebastião.

“A gente tá preocupado com o rejeito que ainda está no rio. Nós fomos na Vale avisamos que o rio ia encher. O rejeito encheu o rio de lama embaixo e o rio ficou sem água. Tem lugar no rio agora que dá para atravessar a pé. A gente não atravessa porque sabe que é perigoso, porque a água é contaminada. É um grande absurdo o que eles fizeram com a gente. E não vai dar em nada. Porque se a gente pegar uma contaminação ela vai vir cuidar da gente? Não vai né. E se essa água subir aqui e jogar esse rejeito pra dentro das casas? Como que vai fazer? Nós estamos num beco sem saída, porque essa água vai inundar o bairro e vai contaminar muitas pessoas. Nós estamos com medo é da doença da pele aparecer mais tarde”, afirma.

Enquanto transcrevia a entrevista do senhor Sebastião, dezenas de vizinhos dele foram retirados de casa por causa da inundação. A temida água de rejeitos já havia entrado em diversas moradias da Colônia Santa Izabel.

Na beira do rio, mas sem água

Outra denúncia que o senhor Sebastião faz é relacionada a água. “Eles estavam entregando a água mineral aqui para nós e parou. Sendo que a nossa água está contaminada. A água da Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais] vem fedendo, com mau cheiro e gosto ruim. Quando a gente vai lá na Vale reclamar, eles mandam um fardo de água e no outro dia mandam cortar a distribuição. Eu gasto em média R$ 30 por semana para comprar água. E eu só tô dando conta de comprar porque eu tenho uma oficina e faço uns brinquedos de madeira em casa, gaiolas e também cadeiras, e aí consigo um dinheiro. Hoje mesmo eu vendi 5 cadeiras por 150 reais, aí eu compro minha água para beber. Porque eles não dão nada pra nós. Eu tenho que comprar água e também as coisas para comer, então tem que medir bem o dinheiro. Nós estamos passando uma peleja”, conta.

“Cortaram o pagamento do auxílio emergencial, sem avisar nem nada. Eu recebia um salário mínimo, depois cortaram para R$ 500 e esse mês eu fui lá pegar meu dinheiro e não tinha nem um real. Não tinha nada, eles cortaram. A gente vai na sede da Vale aqui na cidade falar o que está acontecendo, aí os funcionários nos enrolam, falam que vão resolver, vão resolver… mas não resolvem nada. Mas o que a gente vai fazer com eles? Vai brigar? Eles são só funcionários. A gente fica num beco sem saída porque não tem nem com quem brigar”, complementa Sebastião.

O senhor tá conseguindo dormir direito?

“Não. Eu não vou mentir pra você e falar que estou, porque não tô. Eu deito, mas só fico pensando no dano que eles fizeram com o rio, no que eles “fez” com nós. Pra falar a verdade 'procês', eu não tava nem conseguindo comer. Eu só penso na desgraça que eles fizeram com nós aqui na beira do rio. Porque nós somos pobres, mas somos filhos de Deus. E eles mataram nós. Não mataram o rio, mataram nós! Muitas pessoas aqui tão chorando, na miséria. Porque era saqui que a gente tirava o pão de cada dia. E hoje? Como nós vamos tirar? Eu não tô passando fome porque eu tenho minha oficinazinha. Mas, por eles a gente tava todo mundo morrendo de fome. Mas será que o coração deles não dói não? Será possível que essas pessoas donas da Vale não pensam na desgraça que eles tão fazendo com o povo? Será possível que eles deitam a cabeça no travesseiro e dormem tranquilos?”, pergunta Sebastião.

Fuente: Brasil de Fato

Temas: Megaproyectos, Tierra, territorio y bienes comunes

Comentarios