Dos “transgênicos” aos “trans-atômicos”. Entrevista especial com Enildo Iglesias

Idioma Portugués

As companhias transnacionais prometeram eliminar a fome e a pobreza com um modelo de produção agrícola que denominaram “Revolução Verde”. Nesse jogo de melhorar as mazelas da humanidade, encadearam a população num emaranhado, proclamando as opções convenientes: “agrotóxicos ou fome”, “transgênicos ou fome” e agora reforçam: “nanotecnologias ou fome”, avalia Enildo Iglesias, pesquisador.

23/4/2008

As nanotecnologias não vão solucionar os problemas da sociedade do século XXI. “Elas põem em risco a vida de 2.600 milhões de pessoas dedicadas à agricultura”, considera Enildo Iglesias

As companhias transnacionais prometeram eliminar a fome e a pobreza com um modelo de produção agrícola que denominaram “Revolução Verde”. Nesse jogo de melhorar as mazelas da humanidade, encadearam a população num emaranhado, proclamando as opções convenientes: “agrotóxicos ou fome”, “transgênicos ou fome” e agora reforçam: “ nanotecnologias ou fome”, avalia Enildo Iglesias, pesquisador.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele alerta: “Ao falar em novas tecnologias, a população deve ter presente três princípios básicos: elas, por si, não resolvem as velhas injustiças; nas relações capitalistas, o objetivo do desenvolvimento tecnológico é o lucro e não a satisfação das necessidades das pessoas; e qualquer tecnologia nova que se introduza numa sociedade que não seja essencialmente justa tenderá a agravar a diferença entre ricos e pobres”.

Iglesias é pesquisador da Secretaria Latino Americana da União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação e Agricultura (UITA).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a influência dos transgênicos para a nanotecnologia? Como entender o processo do “geneticamente modificado” para o “atomicamente modificado”?

Enildo Iglesias – Faz apenas 28 anos (1980) que se descobriu como transferir fragmentos de informação genética de um organismo a outro, e dois anos mais tarde se criava a primeira planta transgênica. Dessa maneira, entramos na era da biotecnologia e seus autores nos prometeram uma série de aplicações em campos tão diversos como a saúde e a energia. No entanto, o desenvolvimento mais forte ocorreu na agricultura, especialmente no que se refere às sementes. As grandes companhias agroquímicas e farmacêuticas, que até 1981 não estavam interessadas na biotecnologia, passaram a deter o controle quase monopólico da investigação nesta matéria. Essas instituições utilizam dinheiro público, conseguido através de acordos com algumas universidades, para comercializar organismos geneticamente modificados (OGM) especialmente sementes, e respectivas patentes.

Sem que a sociedade tenha sido advertida e muito menos consultada, começamos a passar dos “transgênicos” aos “trans-atômicos”, ao integrar-se a biotecnologia com a nanotecnologia. A fusão da biotecnologia com a nanotecnologia tem conseqüências desconhecidas para a saúde, a biodiversidade, o ambiente e a organização social, particularmente no que tem relação com o trabalho.

IHU On-Line - Em que sentido a nanotecnologia pode contribuir para solucionar os grandes problemas da sociedade do século XXI, como a fome, a miséria e a desigualdade social?

Enildo Iglesias - Em nenhum sentido, agravará cada um desses flagelos. Pelo contrário. Os antecedentes, desde a Revolução Industrial do século XVIII até o dia de hoje, não são nem um pouco alentadores. Ao finalizar a Segunda Guerra, as companhias transnacionais nos prometeram eliminar a fome e a pobreza com armas químicas e um modelo de produção agrícola que denominaram “Revolução Verde”, proclamando que era preciso optar entre “agrotóxicos ou fome”. Décadas mais tarde, as mesmas companhias formularam idênticas promessas com os OGM (as que ficaram reduzidas à possibilidade de utilizar seletivamente alguns agrotóxicos, por exemplo, certos herbicidas) e pediam que escolhêssemos entre “transgênicos ou fome”. As mesmas companhias são as que hoje pretendem persuadir-nos, desta vez sutilmente, de que a única opção é “nanotecnologia ou fome”. As transnacionais que dominam o negócio dos transgênicos fazem grandes investimentos na área da nanotecnologia. São elas a Monsanto, Pharmacia e Syngenta. Conseqüentemente, devemos ter presentes três princípios básicos: as novas tecnologias, por si, não resolvem as velhas injustiças; nas relações capitalistas, o objetivo do desenvolvimento tecnológico é o lucro e não a satisfação das necessidades das pessoas; e qualquer tecnologia nova que se introduza em uma sociedade que não seja essencialmente justa tenderá a agravar a diferença entre ricos e pobres.

IHU On-Line - Como a nanotecnologia pode contribuir para a agricultura? Ela ajuda ou prejudica no fato de termos cada vez mais uma agricultura sem agricultores?

Enildo Iglesias - Os mesmos argumentos que utilizei na pergunta anterior me levam a afirmar que a nanotecnologia põe em risco a forma de vida, e a própria vida, dos 2.600 milhões de pessoas dedicadas à agricultura no mundo; concentrará mais o poder econômico nas mãos das companhias transnacionais e os grandes proprietários de terras e impulsionará um modelo de agricultura industrial. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA por suas siglas em inglês) prognosticou, em 2002, que, com a nanotecnologia, a agricultura será mais atomizada, mais industrializada, reduzida a funções simples e que serão eliminadas ainda mais pessoas no trabalho agrícola. É bom recordar que nesse país, atualmente, existe mais gente nas cadeias do que no campo. Impondo a nanotecnologia, a agricultura do futuro ficará reduzida a biofábricas de grande extensão, monitoradas e manobradas mediante computadores.

IHU On-Line - Qual é o risco de monopólio das grandes empresas em relação ao domínio da técnica da manipulação nanotecnológica?

Enildo Iglesias - Esse monopólio já existe, e a nanotecnologia não fará outra coisa senão agravá-lo. Diferente das revoluções globais anteriores, a nanotecnologia tem um caráter nacional, especialmente agravado por sua utilização em armas e equipamentos de guerra, portanto secreto, ao qual se soma o fato de que as patentes se encontram em poder das transnacionais.

IHU On-Line - A partir da implantação da nanotecnologia em nossa sociedade, como fica o mercado de trabalho?

Enildo Iglesias - Para o Grupo de Trabalho em Ciência, Tecnologia e Inovação do Projeto Milenium das Nações Unidas, a nanotecnologia será benéfica porque implica pouco trabalho na elaboração de objetos (não se atreveram a dizer mercadorias) e por ser altamente produtiva. Sem dúvida, ela provocará turbulências econômicas e desestabilizará ainda mais o trabalho e a sociedade. Como mudará radicalmente a forma de fabricar bens, produzir alimentos, energia e remédios, provocará graves desajustes sociais. O mercado de trabalho se reduzirá ainda mais e se transformará completamente, prejudicando os trabalhadores que não podem responder à demanda de novos conhecimentos e habilidades. À medida que a nanotecnologia aumentará o já altíssimo número de desempregados no mundo, simultaneamente ficará muito fácil traficar ilegalmente com produtos tão pequenos (drogas, armas), atividade a qual serão impulsionados muitos dos desocupados. O preocupante é que, pela primeira vez na história da humanidade, a nanotecnologia também gera a possibilidade de controlar e reprimir as conseqüências sociais não desejadas (agitação, protestos nas ruas, atos delitivos etc.). Além das armas “nanotecnológicas”, criadas especialmente para disciplinar os perdedores, os mais perigosos poderiam ser controlados permanentemente. Já se encontra no mercado o veri-chip, do tamanho de um grão de arroz. Introduzida sob a pele, ele é capaz de transmitir informação sobre seu portador e sua localização.

IHU On-Line - Na sua opinião, a sociedade está preparada para discutir e receber as nanotecnologias em seu cotidiano?

Enildo Iglesias – É baixíssima a porcentagem de pessoas no mundo que tem algum conhecimento sobre a nanotecnologia e os mais informados a relacionam com protótipos de robôs. Poucas semanas atrás, uma publicação especializada dos Estados Unidos informava que naquele país, considerando que em 2007 o número de produtos fabricados com nanotecnologia mais do que duplicou, chegando a cerca de 500, somente 6% dos entrevistados declarou haver “ouvido falar muito” sobre nanotecnologia e 21% haver “ouvido algo”. Semelhante a pesquisas anteriores, também consta que o público requer maior informação e que a maioria dos estadunidenses é resistente a usar nanoalimentos e produtos relacionados até que saibam o suficiente para decidir. Frente a essa falta de informação, a propaganda das companhias nos promete maravilhas para um futuro distante com a nanotecnologia em saúde, energia, melhorias do ambiente etc. Enquanto isso, sem informar os consumidores, pois nenhuma lei assim exige, introduzem a nanotecnologia nos produtos de consumo massivo. O último exemplo é o “cigarro sem fumaça”, que se promove como uma alternativa para quem queira fumar onde é proibido, por exemplo, os aviões.

IHU On-Line – Quais são as principais mudanças na forma de produzir alimentos a partir da introdução de nanotecnologias?

Enildo Iglesias - As previsões indicam que entre 40 e 60% do setor alimentício será resultado, até 2015, dos processos nanotecnológicos. Sem dúvida, a nanotecnologia oferece interessantes possibilidades para a produção de alimentos. O problema é que um slogan como “Fome Zero” é traduzido pelas companhias como “Mais Lucro”. Por esse caminho, até agora as principais mudanças vinculadas à nanotecnologia na produção de alimentos têm a ver com a preservação dos mesmos (melhores embalagens e mais baratos), com capacidade de permanecer por mais tempo nas prateleiras dos supermercados etc. O que produzir e a forma de produzir na indústria alimentícia são aspectos que se modificarão radicalmente, com o único objetivo de aumentar as margens de lucro das grandes companhias.

Fonte: IHU On-Line

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