Dia da Terra: Duas vias para preservar a vida no Planeta
O Dia da Terra, criado em dia 22 de Abril de 1970, completa 52 anos em 2022. A data surgiu em um momento de agravamento da questão ecológica global e a partir da iniciativa do senador norte-americano Gaylord Nelson, com a finalidade de criar uma consciência comum aos problemas da contaminação, conservação da biodiversidade e outras preocupações ambientais para proteger o Planeta.
Mas em vez de ouvir os alertas sobre a degradação ambiental, os governos e os diferentes setores desenvolvimentistas da sociedade preferiram seguir o caminho do crescimento populacional e econômico em nome da grandeza nacional e da maior presença internacional das diferentes culturas, em busca de uma prosperidade material insana e insensata.
O ano de 1970 também marca o momento em que o mundo saiu da situação de superávit ambiental para o quadro de déficit ecológico. A figura abaixo mostra que em 1961 a Biocapacidade do Planeta era de 9,7 bilhões de hectares globais (gha) e a Pegada Ecológica era de 7 bilhões de gha. Desta forma, havia um superávit ambiental de 37%. Porém, no início da década de 1970, a Pegada Ecológica (isto é, o impacto humano sobre o meio ambiente) superou a Biocapacidade (isto é, a capacidade regenerativa do Planeta) e o mundo passou a conviver com um déficit ambiental crescente.
Em 2018, a Pegada Ecológica global chegou a 21,2 bilhões de hectares globais (gha), enquanto a Biocapacidade ficou em 12,1 bilhões de gha, segundo novos dados da Global Footprint Network (atualizado em 2022). Por conseguinte, o superávit de 2,7 bilhões de gha, de 1961, se converteu em um déficit ambiental de 9,1 bilhões de gha em 2018. Isto quer dizer que a civilização humana está produzindo e consumindo além da capacidade regenerativa dos meios naturais. Consequentemente, o déficit ambiental de 75% significa que o tamanho das atividades antrópicas é insustentável. Cada ser humano tem o seu peso no impacto ambiental, mas, evidentemente, são as parcelas mais ricas que mais contribuem para déficit ecológico.
O que a figura mostra é que a humanidade já superou a capacidade de carga da Terra e que o estilo de vida médio da população mundial ultrapassou os limites da resiliência do Planeta. Esta situação é insustentável e se nada for feito o mundo caminha para um colapso sistêmico global, que pode significar o fim da existência da vida humana na Terra. Há duas tarefas para reduzir o déficit ambiental, evitar um aquecimento global catastrófico e a 6ª extinção em massa das espécies: uma via é reduzir a Pegada Ecológica e a outra via é aumentar a Biocapacidade do Planeta.
Reduzir a Pegada Ecológica via decrescimento demoeconômico
Para reduzir a Pegada Ecológica da humanidade é preciso diminuir o nível de produção e consumo da economia internacional. De fato, a população mundial era de 3,7 bilhões de habitantes em 1970 e atingiu 7,9 bilhões em 2022, mais que dobrando no espaço de 50 anos. Mas a economia cresceu muito mais e praticamente quintuplicou em 52 anos, aumentando a dominação humana sobre a natureza e a exploração das riquezas ambientais e elevando de forma assustadora a poluição e o descarte dos resíduos sólidos. As emissões de CO2 que estavam em 14,9 bilhões de toneladas em 1970 passaram para 39 bilhões de toneladas em 2022. A concentração de CO2 na atmosfera que em 1970 estava em 326 partes por milhão (ppm) passou para cerca de 421 ppm em abril de 2022.
Como resultado do crescimento demoeconômico desregrado, a temperatura da Terra subiu e a saúde dos ecossistemas regrediu. Os últimos 8 anos (2014-2021) foram os mais quentes já registrados e a década 2011-20 é a mais quente da série histórica. O Planeta não está apenas esquentando, mas esquentando em velocidade sem igual desde o surgimento dos primeiros ancestrais do ser humano há cerca de 3 milhões de anos. A humanidade está caminhando para um território desconhecido e uma temperatura nunca vista.
O aquecimento global não é um problema qualquer. É uma “Espada de Dâmocles” que ameaça a humanidade e todos os mamíferos da Terra. As consequências devastadoras do aquecimento global não são uma calamidade desenhada em um futuro distante. Ao contrário, as mudanças ambientais se transformaram em “emergência climática”, presente no cotidiano das atuais gerações.
O desequilíbrio já assola os quatro cantos do Planeta e causa danos crescentes, embora esteja apenas em seu começo. Seguindo as tendências dos últimos 52 anos, a Terra caminha para um “ponto de inflexão global” (alguns dizem que já ultrapassou o ponto de não retorno) que pode ser o início de um efeito dominó – capaz de gerar uma série de acontecimentos desagradáveis em cascata. A catástrofe ambiental e climática só será evitada se forem adotadas ações concretas para reduzir e zerar as emissões de gases de efeito estufa e recuperar a biocapacidade dos ecossistemas.
O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) “Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change (IPCC, 04/04/2022) diz no capítulo 1, na página 102: “Nos últimos duzentos anos, a sociedade humana passou por uma transformação rápida e profunda, com a população e a renda per capita se expandindo em uma ordem de magnitude superior a muitos milênios de relativa estagnação nos padrões de vida”. No capítulo 5, na página 983 (ou 5-158) diz: “Há grande confiança de que as mudanças climáticas, o crescimento populacional e as mudanças no consumo per capita aumentarão as pressões sobre os ecossistemas manejados, naturais e seminaturais, exacerbando os riscos existentes para os meios de subsistência, biodiversidade, saúde humana e ecossistêmica, infraestrutura e sistemas alimentares”.
Portanto, população e consumo são os dois lados da mesma moeda e são fatores que se complementam no impacto da crise ambiental e climática. Como explica Herman Daly, em entrevista à revista New Left Review (2018): “O impacto ambiental é o produto do número de pessoas vezes o uso de recursos per capita. Em outras palavras, você tem dois números multiplicados um pelo outro – qual é o mais importante? Se você mantiver uma constante e deixar a outra variar, você ainda está multiplicando. Não faz sentido para mim dizer que apenas um número é importante. No entanto, ainda é muito comumente dito. Suponho que faria algum sentido se pudéssemos nos diferenciar histórica e geograficamente – para determinar em que ponto da história, ou em que país, qual fator merecia maior atenção. Nesse sentido, eu diria que, certamente, para os Estados Unidos, o consumo per capita é o fator crucial – mas ainda estamos multiplicando pela população, então não podemos esquecer a população”.
Enquanto a humanidade progride, o meio ambiente regride. Mais desenvolvimento econômico tem implicado em menos natureza. Para diminuir o impacto das atividades antrópicas sobre o meio ambiente é preciso planejar o decrescimento demoeconômico ao longo do século XXI. Com menos consumo per capita e com uma população menor, a Pegada Ecológica pode ser diminuída até ficar ao nível da Biocapacidade, eliminando o déficit ambiental.
O antropocentrismo precisa ceder espaço para o mundo ecocêntrico. Ser contra o antropocentrismo não é ser contra o ser humano, mas sim ser contra a humanidade ser a grande força degradadora da natureza. Desta forma, a humanidade precisa se auto limitar para sobreviver e permitir a sobrevivência da biodiversidade. O Planeta precisa ter menos humanos e mais qualidade de vida para todas as espécies, incluindo o Homo sapiens.
Aumentar a Biocapacidade via restauração ecológica
Paralelamente à redução da Pegada Ecológica é possível implementar medidas para aumentar a Biocapacidade. Em vez de transformar toda a riqueza do meio ambiente em “valor de troca”, o certo seria reconhecer que a natureza tem valores intrínsecos e princípios que são inegociáveis, como nos ensina a Ecologia Profunda.
Artigo de Daniel Christian Wahl (Beyond Sustainability? — We are Living in the Century of Regeneration, Resilience, 18/04/2018) mostra que é preciso valorizar o ecossistema e promover uma mudança de paradigma, deixando para trás as atitudes ignorantes e egoístas de destruição do próprio habitat para garantir que os sistemas naturais da Terra possam alcançar sua capacidade ideal de sustentar a vida. Ao invés do mito do “desenvolvimento sustentável” seria preciso avançar na ideia do desenvolvimento regenerativo.
Para o autor, o termo sustentável foi cooptado e algumas pessoas consideram sua empresa sustentável porque manteve o crescimento e os lucros por vários anos seguidos. O termo sustentabilidade nos pede para explicar o que estamos tentando sustentar. O termo desenvolvimento regenerativo, por outro lado, traz consigo um objetivo claro de regenerar a saúde e a vitalidade dos ecossistemas. Em um nível básico, a regeneração significa não usar recursos que não podem ser regenerados. Nem usar os recursos mais rapidamente do que eles podem ser regenerados. Desenvolvimento neste contexto é “co-evolução da mutualidade”. A segunda razão é que é preciso ir além de ser apenas sustentável para realmente regenerar o dano que a humanidade provocou no planeta desde o alvorecer da agricultura, das cidades, dos Estados e dos Impérios.
O diagrama abaixo mostra a passagem de um sistema degenerativo para um sistema regenerativo. A escrita verde e vermelha acima e abaixo do eixo x se refere ao impacto positivo (verde) e impacto negativo (vermelho). No modelo em que tudo continua na mesma (“business as usual”) o primeiro avanço ocorre quando as práticas se movem para o estágio “Green” (economia verde), que significa fazer um pouco mais do que o usual, ou seja, poluir um pouco menos, usando menos energia de fontes não renováveis, etc. Este é um passo frequentemente denominado “maquiagem verde” (“greenwashing”), mesmo que seja uma necessidade nos diversos passos na jornada para ir além da sustentabilidade.
Na passagem do verde (“Green”) para o sustentável (“sustainable”) se chega ao ponto do impacto neutro, em que as atividades sustentáveis não causam danos adicionais. No entanto, com os enormes prejuízos ambientais causados desde o início da revolução industrial é preciso fazer mais do que simplesmente sustentar uma população humana de quase 8 bilhões de pessoas e que pode chegar a 11 bilhões até 2100, com um crescimento econômico ainda maior.
Na passagem do estágio sustentável para o restaurativo (“restorative”) ainda é possível utilizar a mentalidade antropocêntrica instrumental que vê o ser humano como a medida de todas as coisas. Essa mentalidade de engenharia para a restauração pode criar projetos que restaurem florestas ou ecossistemas, mas de maneira não sistêmicas e integrativas e, portanto, esses esforços e seus efeitos podem ter vida curta ou resultar em efeitos colaterais inesperados e negativos.
Na passagem do estágio restaurativo (“restorative”) para o reconciliatório (“reconciliatory”) se busca projetos de restauração em grande escala para a adaptação cuidadosa à singularidade biocultural do lugar, podendo gerar sucessos de curto prazo, mas falhar em criar significado suficiente para motivar a transformação de longo prazo.
Na passagem do penúltimo estágio, o reconciliatório (“reconciliatory”), para o último o regenerativo (“regenerative”) o desenvolvimento revela o total potencial ecocêntrico. A reconciliação entre natureza e cultura permitiria reconciliar a jornada evolutiva da vida e iniciando uma nova trilha de atuação de forma regenerativa. Regeneração de ecossistemas em grande escala para reverter o aquecimento global, estabilizar o clima, recuperar a biodiversidade e permitir a transição para uma economia baseada em biomateriais de padrões ecológicos de produção e consumo descentralizados biorregionalmente e orientados para a regeneração social e econômica, a resiliência e a colaboração global na aprendizagem de como viver bem e conjuntamente na mesma nave viva que é a Terra (WAHL, 18/04/2018)
A Terra deveria ter o potencial de alcançar um “Equilíbrio Evolucionário”, significando que os solos, os oceanos, as plantas, os animais, a atmosfera, o ciclo da água e o clima da Terra possam interagir de uma forma natural, sem interferência humana. Se estivermos conscientes disso e não interferirmos no Sistema Terrestre os interesses da humanidade podem coincidir com os interesses de todos os seres vivos da Terra. A civilização precisa ser compatível com a reselvagerização do mundo.
Existe a necessidade de fazer a transição da economia fóssil para a “bioeconomia”, que é uma economia centrada no uso de recursos biológicos renováveis em vez de fontes baseadas em fósseis para produção industrial e de energia sustentável. Abrange várias atividades econômicas desde a agricultura até o setor químico e farmacêutico. Ou seja, é uma economia com base nos recursos renováveis, conhecimento biológico e processos biotecnológicos para estabelecer uma economia de base biológica e, acima de tudo, ecologicamente sustentável, focada na renovabilidade e na neutralidade do carbono.
Mais árvores e menos gente
Para Herman Daly, as atividades humanas já ultrapassaram os limites econômicos do Planeta e entraram em uma fase de “crescimento deseconômico”. Para estabelecer o equilíbrio é preciso haver decrescimento até o ponto de intercessão entre as curvas de utilidade marginal e desutilidade marginal. Depois de restaurado o equilíbrio, que pode ser alcançada com a restauração de 6 trilhões de árvores e a recuperação da vida selvagem, a adoção de uma economia de estado estacionário permitiria evitar se ultrapassar novamente o limite econômico sustentável. O Estado Estacionário, em um ponto anterior ao crescimento deseconômico, é uma “apólise de seguro” contra o risco de uma catástrofe ecológica.
Como mostra o relatório do IPCC, reduzir as emissões imediatamente é absolutamente necessário, mas não suficiente, pois os gases do efeito estufa, por meio do efeito de retroalimentação, continuarão sendo liberado pelo degelo e outros processosl naturais e continuarão se acumulando na atmosfera por longos períodos. Assim, o mundo precisa se tornar “carbono neutro” por volta de 2050 (para estabilizar o aquecimento em 1,5ºC) ou 2070 (para o limite de 2ºC). Isso significa que todo o carbono lançado por atividades humanas na atmosfera precisa ser reabsorvido de alguma forma, seja por vias naturais ou tecnológicas. Para cada molécula de carbono que sobe, uma outra precisa sair da atmosfera.
O plantio de árvores e a recuperação dos solos pode ser uma fonte não de emissão, mas sim de captura de carbono, como mostrei no artigo “Mais árvores e menos gente” (Alves, 02/10/2019). Promover a regeneração ecológica pode reduzir as emissões e evitar a 6ª extinção em massa das espécies. A transição energética e o avanço da energia solar e eólica são fatores de mitigação das mudanças climáticas. São muitas as ações que podem contribuir para o aumento da biocapacidade.
Desta forma, o Dia da Terra 2022 é um momento para ouvir a natureza e compreender que o ecocídio é, ao mesmo tempo, uma forma de suicídio. Para salvar a vida no Planeta (incluindo os próprios seres humanos) é preciso limitar a exploração e a dominação antrópica sobre os ecossistemas e estabelecer um sistema altruísta e harmonioso de convivência entre toda a comunidade biótica.
Referências:
ALVES, JED. Sustentabilidade, Aquecimento Global e o Decrescimento Demoeconômico, Revista espinhaço, 2014, 3 (1): 4-16.
https://revistaespinhaco.com/index.php/revista/article/view/45
ALVES, JED. Mais árvores e menos gente, Ecodebate, 02/10/2019
https://www.ecodebate.com.br/2019/10/02/mais-arvores-e-menos-gente-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
DALY, Herman. Ecologies of Scale, Interview by Benjamin Kunkel. New Left Review 109, Jan-Feb 2018 https://newleftreview.org/II/109/herman-daly-benjamin-kunkel-ecologies-of-scale
Daniel Christian Wahl. Beyond Sustainability? — We are Living in the Century of Regeneration, Resilience, 18/04/2018
http://www.resilience.org/stories/2018-04-18/beyond-sustainability%E2%80%8A-%E2%80%8Awe-are-living-in-the-century-of-regeneration/
IPCC. Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change, IPCC, 04/04/2022
https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/
Fonte: EcoDebate