Brasil: um julgamento emblemático. Tribunal do Júri e o trabalhador rural assassinado
"Entrevista especial com Darci Frigo, é formado em Direito pela PUCPR. Ele trabalhou por 17 anos na CPT e atualmente, além de coordenar a ONG Terra de Direitos, é conselheiro do Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos e recebeu."
A data de hoje, 27 de julho, é emblemática para os movimentos sociais e trabalhadores rurais do Paraná, que há anos são vítimas da violência no campo. Às 13h, inicia-se, em Curitiba, o Tribunal do Júri do caso Eduardo Anghinoni, trabalhador rural, assassinado em Querência do Norte, noroeste do estado, em 1999. O julgamento de Jair Firmino Borracha, pistoleiro acusado pelo assassinato, poderá ser a primeira punição de milícia privada no campo. “O caso de Eduardo é emblemático porque ele pode trazer elementos para identificarmos os mandantes que estão envolvidos não só nesse assassinato, mas em outros. (...) Se o júri tiver um resultado positivo, acredito que vamos dar o primeiro passo para combater a impunidade que persiste ao longo da história do país”, disse Frigo à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone.
Anghinoni foi assassinado em um período em que a violência no campo no Paraná era intensificada pelas milícias armadas. Segundo Frigo, no governo Jaime Lerner, entre 1995 e 2002, “algumas centenas de trabalhadores foram presos e mais de 300 ficaram feridos. Além disso, aconteceram 134 ações de despejos e 17 assassinatos”. Para ele, apesar de apresentar novas nuances, a violência no campo tem problemas estruturais e não é combatida porque é legitimada pela sociedade. “Vivemos uma grande contradição: ao mesmo tempo em que o governo ‘abre uma janela’ para combater a violência no campo e defender os defensores dos direitos humanos, ele reforça projetos de crescimento econômico que têm vulnerabilizado todos aqueles que estão em regiões distantes e que acabam tendo seus direitos violados”, conclui.
Darci Frigo é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Ele trabalhou por 17 anos na Comissão Pastoral da Terra – CPT e atualmente, além de coordenar a ONG Terra de Direitos, é conselheiro do Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos e recebeu. Frigo recebeu em 2001, o prêmio Internacional Robert F. Kennedy por sua luta pelos Direitos Humanos no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que contexto se deu o assassinato do militante do MST Eduardo Anghinoni?
Darci Frigo – O contexto era de conflitos agrários espalhados por todo o estado do Paraná em função de uma demanda muito grande por terras: mais de 100 áreas, naquele período, estavam ocupadas pelo MST. O estado do Paraná, a partir de 1997, no governo Jaime Lerner, passou a adotar uma política de repressão muito forte contra movimentos sociais, especialmente o MST.
IHU On-Line – No que se constituíam, como se organizavam e funcionavam as milícias privadas dos fazendeiros na região?
Darci Frigo – No estado do Paraná, naquele período, houve uma combinação entre a ação do próprio Estado, que passou a atuar através da Secretaria de Segurança Pública como um braço do latifúndio, e uma conivência explícita com a organização de milícias privadas no campo. Essas milícias foram organizadas especialmente na região noroeste do Paraná pela União Democrática Ruralista – UDR, que atuou na mobilização de fazendeiros e na contratação de pistoleiros. Havia uma milícia que atuava através de uma empresa de segurança de fachada, a qual foi responsável por vários assassinatos na região. Entre o final dos anos 1990 e início de 2003 ocorreram seis assassinatos.
IHU On-Line – Quais eram os métodos mais utilizados pelas milícias privadas?
Darci Frigo – Essas milícias atuaram normalmente na região através das empresas de segurança de fachada ou através da contratação de pistoleiros de outros estados. Certa vez, vários pistoleiros do Mato Grosso do Sul foram presos. Eles agiam na região fazendo emboscadas ou atuando através da ação com fazendeiros, fazendo despejos de áreas que estavam ocupadas por trabalhadores, as quais, mais tarde, foram desapropriadas para assentar famílias.
Essas milícias procuravam identificar as lideranças para eliminá-las. A morte do Eduardo Anghinoni se deu exatamente nessa perspectiva, porque os pistoleiros buscavam uma das principais lideranças, Celso Anghinoni, irmão de Eduardo. Eles se confundiram e mataram Eduardo por engano, mas o objetivo era matar Celso para desmobilizar a organização dos trabalhadores.
IHU On-Line – Há ainda esse tipo de milícias em operação?
Darci Frigo – No momento, com a diminuição dos conflitos agrários, não ocorre uma ação mais evidenciada. Entretanto, toda vez que os movimentos sociais e os trabalhadores se mobilizam para reivindicar a reforma agrária, as milícias reaparecem.
Em 2007 e 2008, os produtores rurais organizaram uma milícia privada, que atuou com muita violência, a qual foi responsável pelo assassinato do Valmir Mota de Oliveira (Keno). Eli Dallemole, outro militante também foi assassinado por uma milícia privada.
Essas milícias reaparecem porque não há um combate efetivo por meio das autoridades. Então, na hora em que os fazendeiros querem reprimir os trabalhadores, elas voltam a atuar.
IHU On-Line – O movimento social paranaense acusou o ex-governador Jaime Lerner (1994-2002) de “arquiteto da violência” em função do elevado número de ações violentas praticadas contra os sem terra. Além do uso do aparato estatal contra os movimentos sociais, o governador era conivente com os grupos paraestatais como as milícias privadas?
Darci Frigo – O ex-governador foi alvo de um tribunal popular em maio de 2001, em Curitiba, onde sofreu uma condenação moral e política por ter sido conivente com a ação desses grupos no estado do Paraná. A Secretaria de Segurança Pública, naquele período, agia como um braço forte de repressão aos movimentos sociais e era conivente com essas milícias, as quais nunca foram combatidas e desmanteladas.
De 1995 a 2002, muitos trabalhadores (centenas deles) foram presos e mais de 300 ficaram feridos. Além disso, aconteceram 134 ações de despejos e 17 assassinatos. O governador, na época, teve uma responsabilidade de não ter, apesar das inúmeras denúncias feitas, desmontado o aparato policial organizado em seu governo para reprimir os trabalhadores.
IHU On-Line – Por que o julgamento do caso Eduardo Anghinoni, num Tribunal do Júri, é considerado emblemático?
Darci Frigo – Primeiro, porque estamos vivendo novamente a situação da violência no campo. Esse tema ganhou as primeiras páginas dos jornais da mídia brasileira, como se esse fosse um caso novo no país. O que há de novo nessa situação é o fato de que, além da terra, a busca por recursos naturais se tornou causa de violência no campo.
Alguns ingredientes comuns perpassam a violência no campo no Brasil. Um deles é a cultura instituída em várias regiões do país de que são necessárias milícias armadas para combater posseiros, trabalhadores, quilombolas, indígenas. Essa ideia está arraigada desde os tempos da colônia. O traço de toda essa violência é a impunidade.
Três casos de assassinatos no campo julgados no Paraná foram absolvidos. Nenhum mandante foi levado a júri. Conseguimos que o caso Eduardo fosse julgado na capital, já que na região onde ocorreu o assassinato não há condições para se realizar um júri.
O Brasil já foi condenado na corte interamericana e, dos quatro casos julgados, dois aconteceram no Paraná. Então, há uma tensão internacional sob os casos de violência no nordeste do Paraná. O caso de Eduardo é emblemático porque ele pode trazer elementos para identificarmos os mandantes que estão envolvidos não só nesse assassinato, mas em outros.
O assentamento em que a família de Celso Anghinoni mora foi legalizado em 1988. Eles são grandes produtores de arroz: produzem mais de 250 mil sacas de arroz no município de Querência do Norte, quer dizer, 33% de todo o arroz do Paraná. Se esses agricultores eram assentados e viviam em uma área legalizada, por que pistoleiros foram no assentamento assassinar Eduardo Anghinoni? Essa atitude é característica de uma milícia contratada para matá-lo.
O ex-presidente da UDR foi reconhecido por uma testemunha, a qual disse que ele atirou em Sebastião Camargo, outra liderança sindical.
Se o júri tiver um resultado positivo, acredito que vamos dar o primeiro passo para combater a impunidade que persiste ao longo da história do país.
IHU On-Line – Autoridades como o ministro de Estado estão sendo convidados para assistirem ao julgamento. Qual a razão?
Darci Frigo – Eu participei da reunião do Programa Nacional dos Defensores de Direitos Humanos na semana passada e analisamos o caso de pessoas que estão sofrendo ameaças de morte no país todo. Durante essa reunião, que aconteceu na Secretaria de Direitos Humanos, solicitamos que a ministra Maria do Rosário, a Secretaria Geral da Presidência da República e a Ouvidoria Agrária Nacional estejam presentes no júri para servirem de testemunha no sentido de reforçar a importância de que haja justiça para os responsáveis por estes assassinatos, para que o júri não aconteça de forma invisível e para que ele tenha a visibilidade necessária.
Nós precisamos garantir os direitos humanos de todas as pessoas, especialmente daquelas que vivem em regiões remotas do nosso país, aquelas que lutam por terras, pela proteção das florestas.
IHU On-Line – Existe possibilidade de se chegar aos mandantes do crime?
Darci Frigo – Nesse julgamento, uma pergunta ficará em aberto se o acusado não revelar quais foram as razões que o levaram a assassinar Eduardo Anghinoni. Ele pode negar o crime, mas há uma prova técnica reconhecida pela perícia: a arma que foi utilizada para assassinar Eduardo estava com o pistoleiro no momento em que a polícia o prendeu.
Caso ele negue o caso, nós vamos requerer ao Ministério Público que amplie as investigações, já que no processo há indícios de participação dessa organização criminosa que atuou na região e que pode levar aos mandantes. O júri do caso Sebastião Camargo, que acontecerá nos próximos meses, também poderá trazer novos elementos para poder caracterizar essas organizações criminosas que envolvem grandes fazendeiros da região.
Uma das testemunhas da morte do Eduardo já recebeu ameaças. Uma pessoa telefonou e disse que, se ela aparecer no júri, sofrerá danos a sua integridade física. Essa é uma testemunha importante porque sabe informações fundamentais.
No Brasil, não basta você condenar os executores; é preciso encontrar os mandantes. Executores são contratados a todo o momento, pois existem muitas pessoas que vivem em situações precárias, nas periferias das cidades.
IHU On-Line – Por que a maioria dos casos dos assassinatos contra lideranças no campo não vão a julgamento? O judiciário tem ideia preconcebida em relação ao MST?
Darci Frigo – O sistema de justiça como um todo sofre uma grande influência de uma visão patrimonialista, que coloca as pretensões dos grandes latifundiários como pretensões que estão acima da vida e dos outros direitos. Essa cultura de tratar a terra como um bem que está acima da vida das pessoas influencia muito no posicionamento no sistema judiciário como um todo. Os trabalhadores rurais são considerados cidadãos de segunda categoria e isso influencia muito a posição que é afirmada no seio das universidades e dos meios de comunicação.
A organização dos trabalhadores é alvo de uma ação ideológica de vários setores que estigmatizam a luta por um direito que está consagrado na constituição. Assim, os trabalhadores são apresentados para a opinião pública como pessoas contrárias à sociedade.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta a nova onda de violência contra lideranças camponesas, sobretudo na região Norte do país? Quais são as causas? Como o Estado tem reagido?
Darci Frigo – Temos uma nova janela para enfrentar esse problema no país à medida que o tema ganhou relevo tanto no âmbito da opinião pública como no governo. As causas da violência no campo são estruturais, embora existam nuances novas. A distribuição da terra no país segue sendo um problema não resolvido e isso demonstra que ainda precisamos lutar pela reforma agrária e pela regularização fundiária para os quilombolas, para os indígenas.
As novas nuances desse tema estão voltadas para o grande apetite que o capital tem demonstrado em relação aos recursos naturais. De um lado, há uma ampliação dos projetos de monocultura e, de outro, o avanço das fronteiras agrícolas aonde ainda existem florestas. Essa frente devastadora busca remover qualquer empecilho. Os assassinatos de José Cláudio e Maria, no Pará, aconteceram nesse contexto, porque eles denunciavam os madeireiros que queriam acabar com as Reservas Legais. A frente de expansão da mineração também tem sido forte no sentido de expulsar os trabalhadores.
Estamos vivendo uma nova onda de investida das forças do capital sob os últimos recursos naturais, sem uma ação do Estado para combater a impunidade e a violência. O modelo de desenvolvimento acaba fortalecendo esse problema. Vivemos uma grande contradição: ao mesmo tempo em que o governo “abre uma janela” para combater a violência no campo e defender os defensores dos direitos humanos, ele reforça projetos de crescimento econômico que têm vulnerabilizado todos aqueles que estão em regiões distantes e que acabam tendo seus direitos violados.
Fuente: Instituto Humanitas Unisinos