Brasil: os cerrados não existem

Idioma Portugués
País Brasil

Os Cerrados não existem, decretou o agronegócio, e para que ninguém meta o bedelho condenando e para que não haja contestação, tampouco citações ou referências ao bioma Cerrado serão admitidas sob forma de leis ou reservas legais

Ilustrando bem isso: os deputados federais que, com o maior desplante, atravancam, sob as mais variadas desculpas, a análise da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº. 115/95, cujo teor dispõe sobre a alteração do artigo 225 da Constituição o que incluirá os Cerrados como patrimônio nacional, pela comissão da qual fazem parte, comissão, esta, criada justamente com a incumbência de analisar a PEC - uma acusação séria, provada pelo quorum quase zero de todas as reuniões marcadas.

Os Cerrados não existem, decretou o agronegócio, e para que ninguém meta o bedelho condenando e para que não haja contestação, tampouco citações ou referências ao bioma Cerrado serão admitidas sob forma de leis ou reservas legais.

Está nessa assertiva, um dos principais impactos da ocupação dos Cerrados pelo agronegócio: o agronegócio não legisla, diretamente, são os produtores de grãos que comandam a classe, mas, através de seus ilustres representantes, no legislativo, no judiciário e no executivo, delonga ou arquiva discussões, como a da PEC, acaba com proteções a espécies, como a do Pequi, e diminui áreas de preservação, porque os nossos legisladores, os nossos juízes e nossos governantes são delegados dessa classe. Na realidade, os Cerrados se cristalizam na forma de um pé de pequi, que é protegido por lei federal e leis estaduais, como a do estado de Minas Gerais que pode ser alterada do mapa por um projeto de lei do deputado Antônio Júlio (PMDB). Neste tipo de iniciativa, alterar uma lei que protege uma espécie única, o pequizeiro, mesmo limitada, permitindo a sua derrubada, mediante aprovação do órgão estadual do meio ambiente, só porque prejudica os pivôs centrais, coabitam mesquinharia e cinismo: brigando para derrubar o pouco que resta de pequizeiros e se servindo de belas frases acessórias “visa conciliar desenvolvimento da agricultura com preservação ambiental”.

Os legisladores do Piauí, estado brasileiro marcado pela transição Cerrado e Semi-Árido, ainda não elaboraram e nem votaram leis que protejam espécies do Cerrado ameaçadas de extinção. Pouco se ouve Cerrado nas rodas de conversas piauienses. Pouco se lê Cerrado nas páginas de jornal do Piauí. Quase uma palavra morta, e morta vai ficando pouco a pouco. Para que reviva, seria o caso de criar e implantar unidades de conservação para conservação e preservação da biodiversidade.

Os Cerrados não existem, mal-diz o agronegócio, então tudo é possível, tudo é permitido. Graças ao empenho da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias), num intervalo de trinta anos, o Brasil quadruplicou a produção de grãos; elevou a produtividade média das lavouras de 1.280 quilos para 2.905 quilos por hectare; ele multiplicou em seis vezes os volumes de carne bovina, suína e avícola; e incrementou de 7,5 bilhões para 22 bilhões de litros a oferta interna de leite. Estas superproduções, década após década, aliviaram a fome e tiraram da miséria de quantos em termos de Brasil? Quantos quilos de carne abasteceram o mercado interno? Quantos litros de leite foram entregues em supermercados?

Quando Sílvio Crestana, diretor-presidente da Embrapa, salienta que a sua empresa inventou manejos sustentáveis, criou variedades tropicais e é protagonista da revolução agrícola no Centro-Oeste, sem que isso trouxesse divisas para o país, pois o que traz divisas são as exportações, ele põe o dedo na ferida sem o saber e esta ferida é, justamente, o fato de que a produção de grãos do Brasil ganha o rumo do mercado externo, que este mercado está fechado no uso de determinadas tecnologias - discordando do Sr. Sílvio Crestana: a Embrapa não inova tecnologicamente e sim aprimora uma tecnologia já existente – e que as divisas das exportações se concentram em poucos grupos econômicos, não se distribuindo a renda de forma equânime para as populações – concretamente, a exportação de produtos primários, como a soja, retira renda das populações da zona rural que, aos poucos, vêem as terras, antes plantadas com mandioca, milho, feijão e arroz, para seus sustentos, com mais e mais plantações de monocultivos.

Um morador de perto da cidade de Uruçuí, município do Piauí e da Bunge, desistiu de plantar seu terreno, vendendo-o e migrando para a sede da cidade. Desistiu e pronto, sem solenidades, porque as plantações de soja deflagraram, em pouco mais de quatro anos, mudanças climáticas, menos chuvas, a principal delas, que invalidaram quaisquer projetos e quaisquer trabalhos que ele concebeu.

Os Cerrados não existem, apregoa o agronegócio; não podem existir. As cidades se expandem à proporção que produtores de grãos chegam do sul e centro-oeste e à proporção que pequenos proprietários locais saem de suas terras. Os primeiros estão na vanguarda do processo de modernização da agricultura de exportação; os segundos são mão-de-obra excedente que trabalham por baixos salários e em precárias condições. A saúde e a educação são itens que tiram o sono de um ou de outro: as cidades que se converteram ou foram convertidas em bastiões do agronegócio não melhoraram em nada sua infra-estrutura básica; os produtores de grãos pagam por saúde e educação privadas e os cidadãos comuns, não tem outro jeito, “usufruem” da saúde e educação públicas.

Os Cerrados não existem, troa desbragadamente o agronegócio. À sua vista, em plena luz do dia, o vazio, o nada, depois de uma noite inteira de trabalho vertiginoso, onde tratores puxando correntões laceram o que era biodiverso e os tratoristas sentem que a cada árvore surrupiada do seu chão cumpriram com o dever de patriota. Está escrito que 20% de uma propriedade há de ser para reserva legal e que a vegetação das margens dos rios devem ser intocável. À beira de estradas no sul do Maranhão e no sul do Piauí a luz do sol incide mais forte porque, de forma alguma, foi observado o que preza a lei. Entre Pastos Bons e São Domingos do Maranhão, cerca de setenta quilômetros, de um lado e do outro da pista, a espessura do vazio aperta.

Aproximando-se de Antônio Almeida, município do Piauí, é o nada ao quadrado. E para quê? Vender a madeira para carvoarias ou para os fornos da Bunge e infestar de eucaliptos, que tardam cinco anos para crescer demandando tanta água que “nada” cresce nas redondezas; nem passarinho pousa em eucalipto. “Os eucaliptos, em áreas de chapada, produzem 10 vezes mais biomassa que a vegetação do cerrado e transpira seis mm por dia. A soja é outra que não economiza água: ela transpira 8,4 mm por dia”. O professor Carlos Mazetto costurou esses dados, dentro da realidade, do Alto Jequitinhonha, norte de Minas Gerais. Quem diria que a discussão dos problemas do Cerrado mineiro se deslocaria caso se relacionasse com a discussão de problemas de outros Cerrados ou de outros biomas? No Alto Jequitinhonha, foram plantados 2.000 hectares de eucalipto; no sul do Piauí, o projeto de “reflorestamento” da Graúna, lenha para os fornos da Bunge, plantou 1.800 eucaliptos por hectare, em 7.000 hectares. Pela especificidade do Cerrado do sul do Piauí, não é muito difícil adivinhar que a vida útil desses eucaliptos será bastante limitada.

Fuente: ADITAL

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