Brasil: não falta milho
A importação do milho argentino soa mais como uma tentativa de se contaminar a produção local e criar um novo fato consumado para a entrada de transgênicos, como aconteceu com a soja, do que uma tentativa de sanar a falta de produto
Alguns mercados importadores da carne brasileira podem rejeitar o frango alimentado com milho transgênico vindo da Argentina, diz matéria da Folha de S. Paulo do dia 14. Mas, continua a reportagem, para resolver esse entrave, algumas empresas devem utilizar o milho nacional (não-transgênico) na produção do frango para exportação, e o importado da Argentina (transgênico) para o frango que será destinado ao consumo interno (!).
Recapitulando parte dessa história: no dia 22 de março a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) aprovou o pedido de importação de milho argentino feito pela AVIPE -- Associação Avícola de Pernambuco. Em seu parecer a Comissão também autorizou a importação do milho resistente a herbicidas NK 603, que não constava do pedido original. O mesmo parecer "técnico" ainda aprovou "Eventuais solicitações da mesma natureza, que envolvam os mesmos eventos [de transformação genética] (...) sem a necessidade de nova avaliação por parte da CTNBio". Isto é, numa só tacada a CTNBio liberou mais do que lhe foi requisitado e de quebra autorizou por antecipação pedidos que sequer foram feitos.
Frente à decisão, os Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente recorreram ao CNBS -- Conselho Nacional de Biossegurança (formado por 11 ministros), que, em sua primeira reunião, proibiu a importação do milho NK 603 e barrou as compras automáticas do grão transgênico mesmo se destinado apenas à produção de ração animal, afirmando que as análises deverão ser feitas caso-a-caso. No mais, a entrada do milho da Argentina continuou válida.
O parecer da CTNBio não tratou especificamente da proteína cry3Bb1, que está presente no milho MON 863 da Monsanto -- que, segundo estudo secreto da própria Monsanto (conforme noticiado também pela Folha de S. Paulo em 23/05/05) ocasionou anormalidades em órgãos internos e no sangue de ratos. O cultivo do MON 863, destaca-se, é permitido na Argentina, abrindo caminho para sua entrada no País misturado nos carregamentos de milho. Além dele, outras variedades não autorizadas para o Brasil são cultivadas na Argentina.
Com base nesse estudo e em casos onde foi detectada a contaminação de alimentos por milho transgênico não autorizado para consumo humano em outros países, organizações da sociedade civil* encaminharam esta semana carta ao CNBS cobrando a revogação integral do parecer da CTNBio.
As entidades procuram com esse pedido evitar que se repitam no País episódios como o ocorrido em 2000 nos Estados Unidos com o milho transgênico StarLink. Proibido para consumo humano segundo recomendação da agência reguladora americana devido seu potencial alergênico, o referido milho "apareceu" em muitos alimentos da Kraft Foods nos Estados Unidos, desencadeando um custoso processo de retirada desses produtos do mercado. Outro fato mais recente e igualmente grave alerta para as dificuldades concretas relativas à fiscalização e ao controle de transgênicos. A Syngenta, outra gigante do ramo, produziu e vendeu a agricultores americanos, durante quatro anos, uma variedade de milho transgênico que não tinha sido aprovada para o consumo humano. Segundo a revista científica Nature, a Syngenta afirmou que houve uma confusão com uma variedade aprovada. Ainda de acordo com a Nature, estão a levantar-se vozes questionando a forma como as empresas de biotecnologia controlam suas atividades. Recentemente o milho vendido por engano foi encontrado em carregamentos destinados ao Japão.
Questionado essa semana durante reunião da Câmara Setorial de Milho, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, sobre o fato de os produtores do Sul não rotularem os animais alimentados com soja transgênica, o Coordenador de Biossegurança do Ministério da Agricultura Marcus Vinícius Coelho disse acreditar que isso se dá porque, ao contrário do que está acontecendo com o milho no Nordeste, não há pressão para a rotulagem no Sul.
Rotular alimentos ou derivados de transgênicos no Pais é lei, que deve ser cumprida independente de existir pressão ou não. O técnico da Agricultura será questionado formalmente para explicar sua declaração e a interpretação que faz da lei de rotulagem.
Dado esse quadro de descontrole, a importação do milho argentino soa mais como uma tentativa de se contaminar a produção local e criar um novo fato consumado para a entrada de transgênicos, como aconteceu com a soja, do que uma tentativa de sanar a falta de produto. Aliás, os dados atuais da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab / Min. da Agricultura) mostram que não falta milho e que o governo dispõe de um estoque de mais de 1,7 milhão de toneladas do cereal.
* Assinaram o pedido: AAO (Associação de Agricultura Orgânica), AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa), ASA (Articulação do Semi-Árido Brasileiro), Centro Ecológico Ipê, CUT (Central Única dos Trabalhadores), Esplar (Centro de Pesquisa e Assessoria), FASE Solidariedade e Educação, Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais, Fundação Cebrac, HOLOS Desenvolvimento e Meio Ambiente, IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), ISA (Instituto Socioambiental), MMC (Movimento de Mulheres Camponesas), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) e Terra de Direitos.
Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos
E-mail: rb.gro.atpsa@socinegsnartedervil
Boletim Número 257 - 17 de junho de 2005