Brasil: movimentos sociais protestam e ocupam Brasília
Militantes de diversos movimentos sociais pretendem ocupar a capital brasileira, amanhã (dia 30/06), para exigir do presidente Lula o veto ao Estatuto da Igualdade Racial.
Fruto de luta das organizações vinculadas à causa negra, o Estatuto chega para sanção presidencial com o conteúdo esvaziado, frustrando expectativas e provocando forte reação de lideranças históricas, que consideram o texto resultante do acordo um grave retrocesso no combate à discriminação racial.
O Estatuto da Igualdade Racial entrou no Senado Federal com propostas estruturantes, como a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e dispositivos concretos, como o sistema de cotas. No processo de negociação com lideranças político-partidárias, porém, muitas das ações afirmativas foram retiradas, provocando uma onda de protestos pelo País e desencadeando a mobilização nacional contra a última versão da lei.
TEXTO “PÁLIDO” – Além de não contemplar algumas das reivindicações mais importantes dos movimentos sociais vinculados à causa negra, o texto negociado também empalidece o aspecto político, ao suprimir trechos que, para o coordenador geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e membro do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), Marcos Rezende, apontavam para o reconhecimento do racismo – passo decisivo para seu devido enfrentamento.
“O fato de não existir raça não anula a crença em sua existência. Foi a crença na superioridade de uma etnia sobre outra que legitimou atrocidades contra os negros, ao longo dos séculos. E essa crença chama-se racismo. Negá-la é tentar apagar o que não se pode apagar, principalmente porque não é coisa do passado. O racismo é uma herança viva, que continua a promover o genocídio contra o nosso povo”, pontua o líder comunitário.
É principalmente por temer o futuro da luta contra o racismo que as lideranças das organizações do Movimento Negro querem interditar a versão da lei que está para ser sancionada. No entendimento do ex-senador Abdias do Nascimento, ícone do combate à discriminação racial no Brasil, o Estatuto, ao contrário do que alguns acreditam, não servirá de base para a continuidade do processo. Pelo contrário. Irá dificultá-lo, constituindo-se mesmo em “disfarce” para a manutenção desse tipo de opressão.
Reação idêntica teve Reginaldo Bispo, coordenador nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), para quem “a aprovação do malfadado Estatuto, por si só, é um retrocesso em relação aos avanços do nosso povo nos últimos quarenta anos”, pontuando que o texto foi pouco e mal discutido pelas organizações do Movimento Negro brasileiro. “A maioria das pessoas negras, em especial a militância, não conhece nenhum dos textos, que foram vários, que circularam até agora”, alerta.
O coordenador nacional do MNU explica que o projeto do acordo feito no Senado Federal tem origem no texto aprovado na Câmara dos Deputados em novembro de 2009, o qual já havia sido bastante modificado. “Foram quatro ou cinco alterações, e quando o texto foi para a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, tornou a ser modificado pelo relator, que é o presidente da comissão, ou seja, o senador ruralista, de direita, do DEM, Demóstenes Torres”.
O “corte-recorte”, segundo Bispo, desfigurou o Estatuto, suprimindo pontos considerados cruciais, como as cotas para negros nas universidades, nos partidos e no serviço públicos, e a defesa e o direito à liberdade de prática das religiões de matriz africana. Ele denuncia, ainda, a ausência de posicionamento sobre a proteção da juventude negra, “que sofre verdadeiro genocídio por parte das polícias militares”, e a não caracterização do escravismo e do racismo como crimes de lesa-humanidade.
CONVOCATÓRIA – Na convocatória para o ato em Brasília, as lideranças denunciam, em uníssono a ameaça aos “direitos étnicos constituídos nos acordos internacionais de combate ao racismo e todas as formas de discriminação, xenofobia e intolerâncias correlatas”, e alertam que, caso sancionado, o Estatuto significará “a repetição do acordo oferecido pelo Estado brasileiro a Ganga Zumba [...], que propunha a trégua e a paz em nome da destruição do Quilombo de Palmares”.
E entre os direitos duplamente ameaçados estão os dos quilombolas, cuja garantia de titulação de terras foi retirada do Estatuto, estando em vias de ser atingida também pela “Ação Direta de Inconstitucionalidade”, impetrada pelo DEM, por influência da União Democrática Ruralista (UDR). Trata-se da ADI 3239, que visa modificar o decreto 4887/2003, referente à regularização dos territórios dos descendentes de escravos negros refugiados, e encontra-se no Supremo Tribunal Federal (STF), para aprovação.
O coordenador da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas, Damião Braga, explica que este processo não está descolado do posicionamento pelo veto de Lula ao Estatuto, “pois todos os processos constituídos como foco de nossa resistência foram impetrados pelo DEM. O que estamos questionando é se o Governo Lula estará de acordo com as imposições do poder dos escravocratas e ruralistas a serviço do agronegócio em nosso País”.
Foi também o DEM que ajuizou a “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental” (ADPF) de número 186, que investe contra as cotas para negros nas universidades públicas – igualmente riscadas do texto. “Querem negar que a cor da pele condiciona o acesso a determinadas posições, ignorando dados como os do IBGE, que demonstra que universitários negros em Salvador, por exemplo, não conseguem remuneração equivalente à dos brancos com a mesma formação”, argumenta Rezende.
“Temos o entendimento de que todos os direitos que o DEM tenta desesperadamente nos retirar são aqueles que efetivamente darão poder ao povo negro, ou seja, terras, cotas e direito indenizatório”, analisa o combativo Damião Braga, que é também vice-presidente da Associação Quilombola do Estado do Rio de Janeiro (AQUILERJ) e membro da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Quilombolas (CONAQ).
JUSTIÇA – Os militantes ressaltam os avanços alcançados durante o governo Lula, com a efetivação de políticas “importantes de emancipação e justiça social, como o Programa Luz para Todos”, que chegou às comunidades quilombolas, e os programas habitacionais, “que estão chegando ao campo e à cidade e, sobretudo, na cidade, atendendo à população negra”. Mas querem que o chefe do Poder Executivo do Brasil se posicione em relação ao que consideram um “retrocesso” no âmbito de tais políticas.
Para tanto, estão solicitando uma audiência com o presidente da República, já tendo sido reservado o auditório Nereu Ramos (anexo da Câmara dos Deputados, em Brasília). A articulação pela retirada de pauta do Estatuto no Senado Federal já mobilizou mais de duzentas organizações do movimento social brasileiro, e a expectativa é de que pelo menos quatrocentas pessoas participem do ato no Distrito Federal, estando confirmada a presença de militantes dos movimentos Sindical, dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e pela Reforma Urbana (MNRU).
COORDENAÇÃO – A ação articulada e contundente de defesa dos interesses das populações marginalizadas é iniciativa da Assembléia Negra e Popular e da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas, sob coordenação do Movimento Negro Unificado (MNU), do Coletivo de Entidades Negras (CEN), do Círculo Palmarino, do Fórum Nacional de Juventude Negra (FOJUNE) e da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Quilombolas (CONAQ).
E confronta posições como as da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), responsável pelo acordo, e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que o apóia. Na convocatória, as lideranças resgatam trecho de um dos discursos de Carlos Spis, da CUT (“...queremos consolidar as mudanças dos últimos anos, ampliar as conquistas, avançar nas mudanças que ainda faltam e impedir qualquer retrocesso”), para questionar: “Essa fala referenda a luta negra também?”.
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