Brasil: como surgiu a "Lei Monsanto"
O Congresso Nacional aprovou dia 2 de março um projeto de lei que serve aos interesses das multinacionais da biotecnologia, e em especial da Monsanto, dona da soja transgênica Roundup Ready. Por isso a lei a ser sancionada pelo presidente Lula, muito justamente pode ser chamada de “Lei Monsanto”
A Lei Monsanto, que aqui na Câmara tramitou sob o pseudônimo de Lei da biossegurança, é o resultado da pressão de uma empresa multinacional sobre o Governo atual. A Monsanto humilhou este Governo, obrigando-o a agir sob uma agenda determinada pela mesma, atropelando o Congresso, os planos do Governo, ministros, e até a justiça brasileira. A multinacional Monsanto inclui no seu currículo a produção do Napalm, ou “agente laranja”, que os norte-americanos jogaram sobre as florestas do Vietnã, após invadirem o país nos anos 60, matando milhares na ocasião e fazendo nascer crianças defeituosas até hoje.
A Monsanto fez valer a sua vontade obrigando o Governo Lula a criar monstros da legislação brasileira, como é o caso das Medidas Provisórias ilegais e imorais que revogavam inclusive decisões judiciais que impediam a comercialização da soja transgênica. Esta empresa impôs à população um projeto que só serve aos interesses do setor. Obrigou o Governo a fazer uma lei, a pretensa Lei de biossegurança, que faz com que um grupinho de duas dezenas de cientistas decidam por três ministérios! A partir de agora este colegiado de cientistas, instalados na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), decidirão acima dos ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura. Diversos artigos da lei estabelecem que estes ministérios só poderão atuar no cumprimento das suas obrigações, para proteger a população, caso a CTNbio permita! Aprovar esta lei foi uma decisão jamais pensada e que fere de morte o papel do Governo e o valor das instituições públicas brasileiras.
É importante resgatar a estratégia da Monsanto, utilizada pela multinacional em vários países, e que no Brasil funcionou além das expectativas dos executivos da empresa - possivelmente por esta razão acompanharam a votação na Câmara, comemorando cada resultado com pulos de alegria, vibrações poucas vezes vistas nas galerias da Casa. A estratégia começou assim: não existindo legislação, criava-se o caos.
Estranhamente, no Rio Grande Sul os agricultores tiveram acesso facilitado a sementes de soja transgênica proibida. Por quase 8 anos a soja é plantada, um crime é cometido, mas ninguém é punido, nenhum contrabandista é localizado, nenhuma empresa é indiciada.
O segundo passo da empresa foi anunciar o fato consumado: “o plantio de soja transgênica é uma realidade!” E o Governo foi obrigado a lançar mão de três Medidas Provisórias para conter os ânimos do setor, devidamente protegidos pela articulada bancada ruralista que teve as suas fileiras engrossadas por muitos petistas.
Era a estratégia criminosa dos que resolveram desafiar as autoridades no Brasil, as instituições, o Judiciário. E o Governo, por covardia, se submeteu.
Acontece que o Governo do “partido dos trabalhadores” em nenhum momento pensou na saúde da população que teria o dever de defender; ou na nossa biodiversidade. Não pensou também nos agricultores que padecem com este modelo agrícola perverso que faz deles reféns, escravos do mercado. Um modelo superado e falido que busca na transgenia um novo fôlego para manter funcionando a mecânica de dependência no consumo de agroquímicos. A Monsanto tinha pressa pois seus negócios milionários, e sobretudo estratégicos de controle da produção de sementes no planeta, precisava dar este passo em um dos maiores celeiros de produção de alimentos do mundo.
Alguns dentro do Governo reagiram percebendo a gravidade do que estava acontecendo. “Alguns” para ser generoso. Porque, para a minha mais profunda decepção, vi a ministra Marina e alguns dos seus colaboradores ainda reagirem mas sem muitas perspectivas, pois o quadro estava desenhado pela fraqueza política do governo e a desinformação surpreendente da maioria da alta cúpula do Planalto, dos ministérios e dos líderes no Congresso. A “reação” veio com o Presidente Lula, que cometeu um dos atos mais graves deste episódio. Negociou com a Ministra:
aprovavam-se as Medidas Provisórias e o Governo se comprometia a enviar para a Câmara projeto que regulamentasse a atividade, batizada de Lei de Biossegurança. E assim foi feito. A Lei foi enviada à Câmara. Mas aí, um primeiro sinal: não houve empenho do Governo em aprovar a proposta original que tinha sido negociada com a ministra. Em contrapartida deu o aval para as mudanças indicadas pela bancada ruralista. Foi ela quem comandou o processo no Congresso Nacional, para o desgosto da população brasileira e, sobretudo, da ministra que não teve nem mesmo como reagir. Depois de tudo só lhe caberia arrumar as malas e sair do Governo que não lhe respeitou, que feriu a sua dignidade e a sua história, e que tenta fazer da sua pasta, um simples jarro em um canto isolado da sala.
Para obter a vitória a Monsanto conseguiu um aliado inesperado mas fundamental: os deficientes físicos que acreditam nas pesquisas com células-tronco para solucionar seus problemas. Então, a liberação de pesquisas de células-tronco, que não tem nada a ver com transgênicos, estrategicamente foi incorporada ao projeto por sugestão da multinacional. Funcionou: o tema foi um dos principais argumentos emocionais e científicos para aprovação da proposta. Ao final, já não se discutia transgênicos ou os efeitos da soja, mas células-tronco. Também aí funcionou a estratégia da Monsanto.
Considerando a dimensão dos negócios envolvendo o mercado brasileiro de soja, o segundo maior produtor do mundo, calculado sempre em bilhões de dólares, a Monsanto investiu pesado no lobby que lhe garantiria o monopólio sobre o produto. Às vésperas de cada votação os corredores do Congresso eram ocupados pelas “transgenetes”: garotas contratadas em agências de modelo para distribuir cartazes, folders, brindes, com os parlamentares. Na votação final do projeto, ardilosamente, essas modelos estavam em defesa não mais de transgênicos, mas de células-tronco.
A Monsanto não parou nisso. Ela se juntou à outras empresas e financiou o surgimento de uma dezena de associações de cientistas pró-transgênicos. Estas associações encaminharam aos deputados cartazes defendendo a “liberdade e autonomia para a ciência”, ou a independência da CTNBio. Bancados pelas multinacionais do setor, cientistas ganharam bem para desempenhar o papel “de defensores da vida” - ganharam bem pelo serviço e devem continuar bem empregados nestas empresas, ou em empresas públicas lhes servem.
A vitória da Monsanto é a humilhação de um Governo. O Governo Lula e maior parte do Partido dos Trabalhadores juntaram-se aos ruralistas, à extrema direita política, e aprovou uma lei que é danosa aos interesses nacionais. Exatamente o PT, que se dizia aliado das classes trabalhadoras, do camponês, dos sem-terra, comete esta traição. Ele opta por defender as multinacionais, o agronegócio, a chamada “revolução verde”, o latifúndio, a poluição biotecnológica, enfim, o que há de mais atrasado no campo.
Em plenário, finalmente o Governo escancarou sua aliança com os ruralistas. A orientação do Governo e da bancada era pela aprovação do projeto nos termos do Substitutivo do Senado, resultado de um acordo com os ruralistas e com a Monsanto. O projeto que saíra da Câmara, acordado entre Governo e entidades e sociedade civil, foi para o lixo. Ficou valendo a nova proposta. Isto porque o Governo jamais tinha bancado a proposta da sociedade, como deu a entender em certa ocasião. E como a própria ministra Marina Silva manifestou de público. Mentiram para Marina, e, pelo visto, ela acreditou. E de mentira em mentira o projeto foi tramitando na Casa. Nós, que somos da base aliada, nos juntamos ao sentimento da sociedade civil, muito bem expresso pela ASPTA: fomos traídos pelo Governo Lula. O fato é que em nenhum momento o Governo esteve ao nosso lado como deu a entender. Pior, ele nunca esteve ao lado do povo que o elegeu e acreditava nele para defender seus interesses.
No dia da votação do projeto, o presidente da Câmara recebeu a visita de dois ministros, o da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, e o da Agricultura, Roberto Rodrigues. Só ministros pró-transgenicos estiveram aqui. Não se registrou a presença do ministro do Desenvolvimento Agrário, da Saúde ou do Meio Ambiente, que seriam nossos aliados; do Ibama ou da Anvisa,... Todas as autoridades que deveriam defender a saúde, o meio ambiente, a agricultura familiar, foram ausentes neste momento histórico que deve marcar para sempre o Governo no que diz respeito a sua política para o campo, o meio ambiente e para os consumidores. Estes e outros em que acreditávamos falharam o tanto quanto aqueles que agiram em defesa dos interesses das multinacionais. E não há justificativa que seja aceita, nem mesmo a ameaça que paira sobre a cabeça de todos: a suposta reforma administrativa.
A Lei Monsanto aprovada no Congresso é um dos instrumentos mais perversos já criados por esta Casa. Seus efeitos sobre a agricultura, saúde e meio ambiente só devem se manifestar dentro de cinco, dez anos, talvez. Mas aí será tarde demais.
Infelizmente, no afã de agradar às multinacionais e os parceiros ruralistas, o Governo não teve o bom senso de pensar nesta nação, no seu povo, nas crianças, jovens e adultos. Pensou apenas no aspecto econômico, e em como servir a um setor.
A Lei Monsanto, já se sabe, é inconstitucional. Ela retira completamente as competências do Ministério da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente para avaliarem a liberação comercial de OGMs. E permite a liberação comercial independentemente da análise destes ministérios. Uma vez que o Ministério da Saude e a Anvisa não serão consultados, também contraria o art. 200 Constituição, que atribui competência ao Sistema Único de Saúde - SUS para controlar produtos de interesse da saúde e executar as ações de vigilância sanitária.
Por isso, caso o Governo não use de bom senso e vete esta lei, pretendemos entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), tão logo ela seja sancionada. Não podemos aceitar que uma lei feita por uma multinacional deixe o Brasil como cobaia dessa multinacional, permitindo que um grupinho de cientistas na CTNBio decidam por milhares de técnicos instalados nos ministérios. Ainda mais que a CTNBio, ao invés de cuidar de biossegurança, seja hoje a maior propagandista dos serviços e produtos das empresas de biotecnologia. Apoiar a Lei Monsanto, que dá tamanhos poderes à CTNBio, é uma irresponsabilidade do Governo Lula que a história não esquecerá.
Edson Duarte (PV-BA), é deputado federal, vice-líder do Partido na Câmara dos Deputados. E-mail: rb.vog.aramac@etraudnosde.ped.