Brasil avança na desregulamentação dos agrotóxicos
"Que produção é essa que pode ser ameaçada de maneira tão dramática ao ponto de se autorizar um envenenamento desse tipo? Não é a produção de alimentos, que em sua maior parte advém da agricultura familiar, mas sim a produção de matéria-prima vegetal para a indústria, grande parte da qual destinada à exportação. Produção essa concentrada nas mãos de grandes fazendeiros."
No Boletim 648 informamos que o Congresso Nacional havia aprovado o Projeto de Lei de Conversão ( PLV 25/2013) da Medida Provisória 619/2013. Conforme explicamos, o Art. 53 do projeto dá à Instância Central e Superior do SUASA (Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária) – no caso, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) – o poder de anuir temporariamente, à revelia dos órgãos de saúde (Anvisa) e meio ambiente (Ibama), com a importação, produção, distribuição, comercialização e uso de agrotóxicos não registrados no país em caso de declaração, pelo próprio MAPA, de emergência fitossanitária ou zoossanitária.
Uma campanha de envio de mensagens foi organizada pedindo à Presidenta Dilma Rousseff o veto ao Art. 53 do PLV 25/2013, e um grupo de deputados do PT protocolou no gabinete da presidenta carta com 62 assinaturas com o mesmo pedido. Também o Consea se manifestou pedindo o veto, assim como fizeram, na presença de Dilma, os participantes da Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, há duas semanas, em Brasília.
A Lei 12.873/13, resultante do PLV aprovado, foi promulgada em 24 de outubro. Dilma vetou quatro artigos inteiros e mais um parágrafo de outro artigo, mas deixou intacto o Art. 53. Poucos dias depois, em 28 de outubro, foi publicado o Decreto 8.166/13, que regulamenta o Art. 53.
O Decreto estabelece poucos critérios e nenhum parâmetro objetivo para a determinação, pelo MAPA, de uma situação de emergência fito ou zoosanitária (Art. 1º). O estado de emergência terá duração de um ano, mas poderá ser prorrogado, por igual período, indefinidas vezes – ou seja, o “temporário” pode facilmente se tornar “permanente” (Art. 4º).
Muito poucos limites efetivos aos poderes do MAPA foram estabelecidos no Decreto. Entre eles está o impedimento de que a autorização temporária para agrotóxicos não autorizados seja concedida a produtos que já tiveram seu uso proibido no país, ou que sofreram restrições de uso em acordos ou convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário (Art. 6º, § 8º).
O outro limite é relacionado ao período de duração da autorização temporária: ao contrário do estado de emergência fito ou zoossanitária, que pode ser prorrogado indefinidamente, a autorização a produtos não registrados no país deverá ser de até um ano, podendo ser prorrogado uma única vez, por igual período (Art. 6º, § 11).
Há ainda um detalhe sórdido na manifesta boa vontade do governo para com os promotores do envenenamento do país: o decreto explicita que a comunicação que o MAPA deverá expedir àCâmara de Comércio Exterior - CAMEX sobre a autorização concedida “poderá ser acompanhada de solicitação para que os bens objeto da anuência sejam incluídos na Lista Nacional de Exceções à Tarifa Externa Comum - LETEC.” (Art. 8º, Parágrafo único).
Há grandes questões sobre as quais refletir a partir deste episódio.
Uma delas é a visão que está por trás da disposição do governo em permitir que, numa suposta situação de emergência fitossanitária, produtores rurais possam contaminar solos, águas e pessoas com produtos altamente perigosos e não autorizados no país.
O caso até nos faz lembrar a histórica “grande fome” ocorrida na Irlanda na metade do Século IXX, quando uma doença fúngica devastou as produções de batatas do país. Mas contrário do que pode parecer, quando falamos aqui em “emergência fitossanitária” não estamos falando de riscos para o suprimento alimentar no país. E nem, na verdade, de riscos para um grande número de empregos, nem nada que se refira de fato ao conjunto amplo da sociedade.
Que produção é essa que pode ser ameaçada de maneira tão dramática ao ponto de se autorizar um envenenamento desse tipo? Não é a produção de alimentos, que em sua maior parte advém da agricultura familiar, mas sim a produção de matéria-prima vegetal para a indústria, grande parte da qual destinada à exportação. Produção essa concentrada nas mãos de grandes fazendeiros.
É mais ou menos como se o governo autorizasse a utilização em massa de produtos tóxicos, colocando em risco a saúde da população e o meio ambiente, para evitar prejuízos a alguns fabricantes de automóveis. Alguém cogitaria essa possibilidade como aceitável?
Outra questão a ser colocada é a respeito das causas do aparecimento de novas e terríveis pragas a atacarem essas monoculturas. Por exemplo, representantes do próprio MAPA já reconhecem que a causa provável da infestação da lagartaHelicoverpa armigera nas lavouras brasileiras de soja, milho e algodão é o plantio em grande escala do milho transgênico Bt, que reduziu a população de outra praga (Spodoptera), um inimigo natural da Helicoverpa. A infestação de Helicoverpamotivou recorrentes tentativas do MAPA de importar de maneira excepcional agrotóxicos não registrados no Brasil.
O mais dramático, entretanto, é que a coisa pode não parar por aí. A ofensiva do agronegócio e sua voraz bancada ruralista mira agora numa ampla desregulamentação do processo de registro de agrotóxicos no país.
Inspirados na CTNBio, que até hoje nunca recusou um pedido de liberação de transgênicos a despeito de inúmeras evidências científicas apontando riscos relacionados a esses produtos, ruralistas e empresas querem a criação da CTNAgro, para que o oba-oba se estenda também aos agrotóxicos. É o que relata matéria publicada no jornal Valor Econômico em 31/11.
Segundo o Valor, “Para acelerar a aprovação de novos defensivos agrícolas [agrotóxicos], governo e iniciativa privada discutem uma reformulação completa do rito de análise, autorização e uso desse tipo de produto no país. Empresas e associações do setor realizam reuniões, desde julho, para apresentar uma proposta conjunta ao governo.
Desde o início deste ano, a Casa Civil entrou nas discussões do setor – entre as quais a pulverização aérea e a importação de defensivos não aprovados no Brasil.(...)
Uma das principais medidas pedidas pelos produtores é retirar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a responsabilidade pelas avaliações de defensivos.
Ainda conforme apurado pelo jornal, “A intenção do setor privado, que deve ser acatada pelo governo, é criar a Comissão Técnica Nacional de Agrotóxicos (CTNAgro), subordinada à Casa Civil e com 13 membros. Assim, a Anvisa e o Ministério do Meio Ambiente apenas definiriam parâmetros para os produtos e não mais analisariam projeto por projeto.”
Um workshop a ser realizado em Brasília em 09 de dezembro pela Sociedade Brasileira de Defesa Agropecuária terá como tema “Adjuvantes agrícolas no Brasil: situação atual e proposta de revisão do marco regulatório”. Adjuvantes são produtos químicos que, junto com os ingredientes ativos, entram na composição dos agrotóxicos. Os proponentes do evento querem “uma solução para as dificuldades que enfrentamos, considerando nosso arcabouço legal e outros gargalos existentes”.
Ceder a essas pressões será uma enorme contradição para um governo que acaba de lançar um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que inclui até mesmo um programa nacional de redução do uso de agrotóxicos. Oxalá tenha mais força o caminho da agroecologia.
Fuente: AS-PTA