Brasil: Vía Campesina: modelo agrícola e industrial é uma das causas da seca
Cantada em prosa e verso pelos defensores do agronegócio, monocultura da soja contribui para o aumento dos desequilíbrios climáticos no Rio Grande do Sul, adverte entidade. Exportado para outras regiões, modelo de produção ameaça o Cerrado e a Floresta Amazônica
Porto Alegre - Agricultores ligados à Via Campesina estão acampados em rodovias, em oito áreas do Rio Grande do Sul, exigindo medidas emergenciais dos governos para amenizar os estragos provocados pela seca. Os acampamentos estão localizados em rodovias próximas aos municípios de Pelotas, Livramento, Cruz Alta, Santa Cruz, Sarandi, Santo Augusto, Erechim e Frederico Westphalen, reunindo cerca de mil agricultores em cada uma das localidades, conforme informações divulgadas pela assessoria de imprensa da Via Campesina. Na avaliação da organização, as medidas até agora apresentadas pelo governo do Rio Grande do Sul são insuficientes para dar conta dos pesados estragos provocados pela estiagem que castiga o Estado há meses. O movimento espera também que o grupo interministerial criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva adote medidas concretas para minimizar as perdas sofridas pelos agricultores.
A Via Campesina reivindica créditos emergenciais para a revitalização da produção e para a manutenção das famílias no campo, alongamento do prazo para o pagamento das dívidas e a realização de um laudo de perdas generalizado. Ao lembrar que os pequenos agricultores são responsáveis por mais de 60% da comida que chega na mesa do trabalhador, a entidade alerta que, com a forte seca deste ano, a safra dessas famílias no Rio Grande do Sul será totalmente perdida. Além das medidas emergenciais, o movimento está defendendo também um debate amplo sobre o modelo de desenvolvimento agrícola e industrial. Os dirigentes da Via Campesina acreditam que fenômenos como a prolongada seca no RS são conseqüências do desrespeito ao meio ambiente, patrocinado pelo atual modelo agrícola e industrial, que vem destruindo a biodiversidade e provocando uma desordem no clima global.
O impacto da monocultura da soja
Cantada em prosa e verso pelos defensores do agronegócio, a monocultura da soja pode estar contribuindo decisivamente para os desequilíbrios climáticos no Estado. Intensificadas a partir da década de 80, as lavouras de soja provocaram aumento do desmatamento no RS, contaminação e eliminação de nascentes de rios. Segundo avaliação da Articulação Soja - organização criada em 2003 pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente, Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul do país (Fetraf-Sul) e outras entidades -, o maior problema ambiental da produção de soja hoje no Brasil decorre da ampliação dos espaços contínuos de monocultivos, que já superam 50 mil hectares, e de suas conseqüências: contaminação de fontes de água e supressão de nascentes, redução da biodiversidade, surgimento de novas pragas e alterações em micro-climas regionais.
Um dos pioneiros nesta prática, o Rio Grande do Sul exportou-a para outras regiões do país, uma ampliação que hoje chega até à Floresta Amazônica. No Piauí, por exemplo, o avanço da monocultura da soja já deixou um rastro de destruição ambiental. Dos 252 mil quilômetros quadrados de área do Estado, 37% são de cerrado. Deste total, 50% já foram desmatados pelas lavouras de soja. No Maranhão, a situação é semelhante com várias regiões desmatadas, águas contaminadas por inseticidas e exploração de trabalho escravo e infantil, segundo relatos feitos pela Articulação Soja durante a quinta edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. No Mato Grosso, o desmatamento atingiu, em 2003, mais do que o dobro daquele verificado no ano anterior. Na Amazônia, o desmatamento da floresta para a plantação de lavouras de soja e de outras culturas já atinge as cabeceiras do Parque Xingu, com impacto junto à população indígena.
Cerrado e Mata Atlântica ameaçados
Um recente estudo divulgado pela ONG Conservação Internacional apontou 34 regiões, que abrigam grande biodiversidade, ameaçadas em todo o planeta. No Brasil, a Mata Atlântica e o Cerrado são áreas diretamente ameaçadas pelo avanço da monocultura da soja e da agricultura mecanizada. O estudo revela que, desde o descobrimento do Brasil, cerca de 92% da vegetação da Mata Atlântica já foi destruída. No caso do Cerrado, região que começou a ser ocupada de modo mais intensivo nas últimas décadas, a destruição está sendo ainda mais rápida, restando hoje apenas 22% da cobertura original. Segundo o pesquisador Mario Barroso, da Conservação Internacional, a monocultura da soja, as plantações de algodão e milho e a agricultura mecanizada estão entre os principais fatores de destruição do Cerrado. As áreas mais ameaçadas, segundo o mesmo estudo, estão no sul do Maranhão e do Piauí e no oeste da Bahia.
Nestas áreas é grande o número de agricultores oriundos do Rio Grande do Sul. Um recente documentário feito pela RBS TV, de Porto Alegre, relatou, em tom épico, o avanço desses novos colonizadores. Intitulado “A conquista do oeste”, o documentário mostra como os agricultores do Estado estão desbravando novos territórios do país, tendo a soja como ponta de lança deste avanço. Mas, conforme os números dos estudos citados acima indicam, o espírito desbravador anda de mãos dadas com o espírito destruidor do meio ambiente. Ironicamente, os produtores de soja no RS são hoje uma das principais vítimas da falta de chuva. Algumas vozes tímidas no Estado começam a sugerir que, talvez, as prolongadas estiagens verificadas nos últimos anos tenham algo ver com a opção de modelo agrícola adotada. Quem visita a região de monocultura de soja no Estado e vê o grau de desmatamento que ela provocou poderá constatar o tamanho deste problema.
Flexibilização ambiental
Envolvidas em uma disputa para saber quem apóia mais as vítimas da seca, as autoridades estaduais e federais silenciam quando a conversa chega às possíveis causas da prolongada falta de chuva. O debate sobre a crescente degradação ambiental no Estado não faz parte da agenda de medidas contra a seca. E esse quadro pode se agravar ainda mais no Rio Grande do Sul. O governo estadual vai diminuir os poderes da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) com o objetivo de acelerar a liberação de empresas que pretendam se instalar ou ampliar suas unidades no RS. O titular da Fepam, Mauro Sparta, pretende repassar para as prefeituras a responsabilidade pelo licenciamento ambiental de projetos considerados menores. Além disso, quer “desburocratizar” o processo de concessão de licenças, atendendo a uma velha exigência dos setores empresariais urbanos e rurais que reclamam do excesso de rigor das avaliações de impacto ambiental.
Assim, o RS, que já teve um papel pioneiro na liberação do plantio e comercialização de soja transgênica (com sementes contrabandeadas da Argentina), sem estudos prévios de impacto ambiental, pode agora se tornar também um laboratório de flexibilização ambiental para favorecer novos empreendimentos no Estado. Alheia a tudo isso, a natureza reage e segue castigando milhares de pessoas no campo e nas cidades. E, enquanto o governador Germano Rigotto (PMDB) retira poderes do principal órgão ambiental do Estado para favorecer novos investimentos empresariais, a primeira-dama Claudia Rigotto lança a campanha SOS Seca, para que a população possa doar dinheiro e alimentos para as vítimas da estiagem. Entre o empreendedorismo e a caridade, o Estado que já foi vanguarda da luta ambiental no Brasil, hoje olha para o céu e reza por água.