Brasil: No Contestado se vive a agroecologia
Não queimar, não desmatar, não colocar veneno na plantação, cuidar das fontes de água, respeitar a sucessão natural das plantas, deixar os restos das culturas no solo para fazer cobertura morta. Algumas práticas dos sistemas de agroflorestas.
O Assentamento Contestado, no município da Lapa, a 80 quilômetros de Curitiba, está completando 19 anos de luta. A comunidade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é referência nacional por meio da Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA), que em convênio com o Instituto Federal do Paraná (IFPR) forma graduandos em agroecologia, pela prática da bioenergia e pelos sistemas de agroflorestas (SAFs).
Na semana em que a comunidade se prepara para receber visitantes para uma festa em comemoração da fundação do assentamento, o Porém.net esteve no Contestado para conhecer o projeto de agrofloresta que tem respeitado a biodiversidade, gerado renda às famílias e resistindo à lógica da agricultura degradante ao meio ambiente.
São conquistas forjadas com a ousadia de agricultores familiares que, em 1999, ocuparam a área de 3.200 hectares, extensão de terra que já pertenceu a uma única pessoa; o Barão de Serro Azul. Posteriormente, a área passou para as mãos da indústria de cerâmica Incepa, que tinha uma grande dívida com a União. Em 1999 o MST descobriu essa dívida e passou a reivindicar a área para fins da reforma agrária.
A ocupação foi feita por 40 famílias. A conquista da terra aconteceu em 2000 e desde o início a proposta foi a construção de um assentamento voltado a produção orgânica na área que comportava plantações de soja, milho e eucalipto. “Quando chegamos aqui diziam que não iríamos conseguir plantar nada, pois mais de 70% do solo é areia”, lembra o agricultor Antonio Capitani, um dos coordenadores do setor de produção.
Hoje são cerca de 150 famílias que moram no Contestado. O assentamento divide-se em 1.200 mil hectares de reserva destinada à proteção ambiental, 700 hectares de reflorestamento e 1.500 hectares de área produtiva. O território é dividido em 108 lotes e sua organização é por meio de núcleos que são divididos geograficamente, reunindo entre 10 e 15 famílias cada. “Em cada lote das famílias assentadas temos árvores frutíferas, o cultivo de grãos, hortaliças e verduras”, explica Nei Orzekovski, que foi o nosso guia para conhecermos a produção de algumas famílias do Contestado.
Ao percorrer as linhas das plantações, com combinações e diversidade de espécies, fomos percebendo a lógica da agrofloresta, que vai além de questões técnicas e envolve a perspectiva de visão de mundo e de geração de renda de toda a comunidade do MST.
Os SAFs adaptam a dinâmica da natureza para o cultivo planejado de alimentos, combinando o plantio de árvores com plantas de médio e pequeno porte. Desta forma os cultivos se alternam e há sempre alguma espécie produzindo. “O nome já diz, é a agricultura na floresta, ou seja, o foco é a diversidade de produtos, isso faz com que tenhamos renda o ano todo”, comenta Orzekoviski, que além de agricultor é professor de filosofia da rede estadual de ensino.
Processo de formação:
Apesar de atualmente ser referência em agroecologia, o debate sobre essa opção de agricultura não foi fácil dentro do assentamento. Segundo Orzekoviski, houve um processo de formação e de autocrítica dentro do movimento como forma de implantar uma reforma agrária que não reproduzisse o modelo da agricultura convencional. “Essa formação não foi fácil, houve um processo intenso, desde a seleção das famílias que fariam parte do assentamento”, lembra.
Hoje mais de 80 famílias do assentamento possuem hortas orgânicas certificadas pela Rede Ecovida. Uma delas é a de Júlia Marigold e Odair Saldanha. O casal produz cerca de 15 variedades de alimentos, todos com a certificação que atesta a origem agroecológica, isenta de aplicação e de resíduos de agrotóxicos. O carro-chefe da produção é o morango, um dos produtos que na agricultura convencional mais se utiliza o veneno.
A família utiliza o canteiro de palha ao lado do canteiro com legumes para evitar a erosão e proteger o solo, uma técnica que não agride a natureza. A plantação dos morangos é intercalada com alface e tomate. Júlia explica que os cerca de 7 mil pés de morango são cultivados em canteiros elevados, cobertos com plástico e irrigados por gotejamento.
Outro campeão do consumo de agrotóxicos na agricultura convencional é o tomate, motivo ao qual pedimos para Nei Oszekowski nos levar até um produtor que cultivasse tomates livres do veneno. Fomos até a propriedade de Celso José Chagas, que em média produz cinco quilos de tomate por pé. “É praticamente o mesmo trabalho, o lance é acertar a mão, conseguir o insumo certo e ter conhecimento do que está fazendo”, diz Chagas, questionado sobre a rentabilidade da produção orgânica.
Cooperativa Terra Livre:
Toda essa produção é absorvida pela Cooperativa Terra Livre, que engloba assentados, quilombolas, agricultores familiares da Lapa e de municípios como Irati, Teixeira Soares, São Mateus do Sul, Campo Largo e Contenda. Hoje são mais de 250 associados. Os cooperados têm a venda de sua produção garantida pela cooperativa, que repassa os produtos para prefeituras por meio de programas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Em média são 20 toneladas de alimentos por semana. Os produtos são destinados para a agroindústria do assentamento ou para venda de alimentos “in natura” em feiras livres de Curitiba e no mercado municipal. Na agroindústria, as frutas são transformadas em polpa ou sorvetes naturais, também com toda a produção comercializada pela cooperativa. A cooperativa Terra Rica mantém um barracão para manutenção dos equipamentos e veículos, que fornece para os 75 lotes do assentamento que produzem alimentos orgânicos.
Em dezembro de 2017, a cooperativa ganhou um edital de um chamamento público para o fornecimento de R$ 2,5 milhões em alimentos ao longo de 2018 para mais de 100 escolas públicas de Curitiba e região. Mais uma grande tarefa para o assentamento que nasceu com o desafio de levar adiante a proposta de uma agricultura diferente, que alia alimentação saudável, com respeito a biodiversidade, cultura e educação.
Saiba mais:
O Paraná é o estado com maior número de propriedades rurais orgânicas certificadas, com mais de duas mil unidades. Grande parte dos alimentos orgânicos produzidos no estado são comercializados pela Cooperativa Central da Reforma Agrária do Paraná (CCA-PR), em Curitiba, que centraliza 17 cooperativas regionais e a produção de mais de 20 mil famílias nos 311 assentamentos paranaenses da reforma agrária. Os alimentos chegam até os consumidores de diversas formas. Em 2017, a CCA-PR lançou um site que facilita a compra dos produtos na capital paranaense. Na página estão disponíveis os pontos de entregas.
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- Fotos por Leandro Taques.
Fonte: Porém