Brasil: Chuva de veneno ameaça parques nacionais
"Os agrotóxicos chegam com a chuva e se concentram com o clima frio. Eles afetam o solo e as nascentes. No topo das montanhas, a contaminação é maior do que nas áreas mais baixas".
Uma serra que traz o pranto no nome chora veneno. Trazidos pela chuva, agrotóxicos contaminam os campos de altitude da Serra da Mantiqueira no Parque Nacional do Itatiaia, um dos lugares de natureza mais rara e espetacular do Brasil. Cientistas da UFRJ descobriram contaminação por endosulfan, um pesticida altamente tóxico e proibido no país desde 2014, mas capaz de permanecer por décadas no ambiente (veja aqui)
A Mantiqueira é a “serra que chora”. Alusão à lenda tupi sobre o pranto de uma índia de coração partido e à chuva copiosa que alimenta nascentes fundamentais para plantações e cidades de Rio, São Paulo e Minas Gerais.
O trabalho do grupo de Rodrigo Meire, do Laboratório de Radioisótopos Eduardo Penna Franca, do Instituto de Biofísica da UFRJ, revelou a contaminação dos campos de altitude do Itatiaia e também no Parque Nacional da Serra das Órgãos.
Além do endosulfan, os pesquisadores descobriram outros dois tipos de pesticidas, ambos com amplo uso no país: clorpirifós e cipermetrina.
Semivoláteis, os venenos evaporam do solo e chegam às nuvens. Levados pelo vento, viajam para longe. Análises da circulação atmosférica feitas pela UFRJ indicaram que os agrotóxicos que ameaçam paraísos de biodiversidade vieram tanto do estado quanto de plantações do Centro-Sul do Brasil. Na era dos homens, o Antropoceno, parques nacionais e quaisquer outros mecanismos de proteção legal são inócuos para a poluição que viaja nas nuvens.
Há fontes locais e remotas. A poluição não respeita distância e fronteira. Com isso, temos mais uma evidência de que os riscos dos agrotóxicos são ainda maiores do que se costuma imaginar, afirma Meire.
A descoberta em Itatiaia deixou os pesquisadores particularmente impressionados devido ao isolamento e à vulnerabilidade da região.
Os campos de altitude são conhecidos como ilhas do céu. No topo das montanhas, a altitude produz mundos isolados. A temperatura é mais baixa. E as chuvas, mais intensas. O ar, rarefeito. Nesses campos, o solo é raso, as rochas dominam e sobre elas cresce uma vegetação de arbustos e plantas menores, em que as flores de cores vivas e formas exuberantes são marca característica.
Fomos investigar nos topos das montanhas justamente porque essas áreas são sentinelas do ambiente. Tudo acontece primeiro lá. Os agrotóxicos chegam com a chuva e se concentram com o clima frio. Eles afetam o solo e as nascentes. No topo das montanhas, a contaminação é maior do que nas áreas mais baixas, explica Meire.
ESPÉCIES AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO:
O monitoramento feito pela equipe da UFRJ começou há quatro anos e já levou a uma tese de mestrado, realizada por Yago de Souza Guida, e à publicação de um estudo na revista científica “Chemosfere”.
Os campos de altitude e seus extremos de frio e umidade abrigam fauna e flora ricas. Só no Itatiaia há cerca de 500 espécies de plantas.
Cerca de 15% delas só existem lá, e destas, 15% estão ameaçadas de extinção — diz o biólogo Izar Aximoff, do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio, um dos maiores especialistas no assunto.
Aximoff diz que o aumento das chuvas observado nos últimos anos, provavelmente associado às mudanças climáticas, pode acentuar ainda mais o problema ao trazer mais agrotóxicos:
É uma tragédia a presença de agrotóxicos num ambiente tão preservado.
Muitas das plantas do Itatiaia dependem de insetos para se reproduzir. E esses animais são justamente o alvo principal dos agrotóxicos, salienta a professora do Laboratório de Ecologia de Insetos do Instituto de Biologia da UFRJ Margarete Valverde Macedo.
Os campos de altitude têm espécies que só existem lá. Muitas são desconhecidas para a ciência. Se desaparecerem, o desequilíbrio será imenso, explica ela.
Meire lembra que já se sabia que os agrotóxicos podem se dispersar pelo vento. Mas o alcance do problema deixou os pesquisadores impressionados.
O caso é muito emblemático. Essas substâncias afetam o sistema nervoso, o sistema endócrino dos animais, do ser humano inclusive, diz Rodrigo Meire.
O objetivo agora é investigar o impacto da contaminação nos campos de altitude.
Não sabemos as consequências, a real dimensão do problema. Sabemos que há contaminação inclusive em nascentes. Queremos descobrir o quão afetados podem ter sido diferentes tipos de animais, como insetos, mamíferos e anfíbios, acrescenta Meire.
Dono da maior biodiversidade do planeta, o Brasil é também o maior consumidor de agrotóxicos. Muito desse uso é desnecessário, diz o pesquisador Pedro Yamamoto, do Departamento de Entomologia e Acarologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), em Piracicaba, São Paulo.
A solução está no manejo das plantações. E na substituição de pesticidas por outros produtos que já existem, porém custam mais caro. Os clorpirifós são extremamente tóxicos e já deveriam ter sido banidos há anos, diz Yamamoto.
Ele frisa que muitos produtores agrícolas não percebem que, ao matar indiscriminadamente com o uso intensivo de agrotóxicos, acabam por destruir outros insetos que são predadores naturais das pragas que queriam combater.
Há muito o que melhorar. Existem tecnologia e conhecimento. Agora, tem que haver disposição. Ninguém imagina que o pesticida que pulveriza em São Paulo ou no Mato Grosso vai parar no alto das montanhas do Rio e de Minas, afirma.
Especialista na Mata Atlântica, Fabio Scarano, professor da UFRJ e diretor-executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), se alarma ao pensar nas consequências da contaminação em Itatiaia e outros campos de altitude:
São ambientes muito especiais. A vida se adaptou ali a viver no limite. Tudo é interligado. Plantas e animais dependem uns dos outros. E é muito fácil romper esse equilíbrio. Os campos já são ameaçados por mudanças climáticas. Agrotóxicos podem tornar tudo muito pior.
Uma das preocupações de Scarano e outros cientistas são as nascentes de rios, como o Campo Belo, que nasce no vale do mesmo nome, a 2.450 metros de altitude, aos pés dos cumes das Agulhas Negras (2.791 metros) e das Prateleiras (2.548 metros). Ele percorre 40 km até desaguar no Paraíba do Sul. Mas sua nascente depende de plantas que mantêm a umidade do solo. E estas não vivem sem os insetos que as polinizam. Tudo funciona numa rede complexa de água, solo, plantas e animais.
Essa região é uma caixa d’água para os estados do Rio e de São Paulo. Não podemos deixar que agrotóxicos afetem esse equilíbrio — salienta Scarano.
Fonte: O Globo