Brasil - Reforma agrária: vidas dedicadas ao cultivo de alimentos sem veneno

Idioma Portugués
País Brasil

"No ano 2000 as terras foram desapropriadas pela União e as 108 famílias então acampadas receberam quatro alqueires cada uma para produzir e viver da terra e viver para na terra produzir. A área de Sandra e Paulo é um retrato de como a reforma agrária muda a vida das pessoas e redireciona o uso da terra fértil improdutiva para a produção de alimentos".

O motivo da visita à propriedade de uma família no Assentamento Contestado, nesta sexta-feira, 27 de janeiro, era uma plantação de girassol. Entre uma conversa e outra, no percurso que começou nas plantações de milho até as de arroz, os relatos das histórias de luta e de vida do casal Sandra Maier e Paulo Brizola, e de suas filhas Ana (17) e Dandara (10), demonstram que a reforma agrária proporciona um mundo de possibilidades no cultivo de alimentos, que não envolve envenenar a terra, os bichos, as plantas e as pessoas.

Sandra contou que ela e o marido eram acampados na região quando, no ano de 1999 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) liderou a formação de um acampamento das famílias sem terra do Contestado nas praças do Centro Cívico. Foram seis meses lá, fato que viabilizou o cultivo de uma horta e a venda de pão caseiro para moradores da região. “Acordamos numa madrugada de sábado com os cachorros dos policiais nos tirando da cama. Fizeram a gente deitar no chão e fomos despejados”, contou Sandra sobre o episódio ocorrido há 18 anos, com a clareza como se tivesse acontecido mês passado. Ela diz que na véspera, numa reunião no Incra, já tinha sido feito um acordo para que as famílias saíssem do Centro Cívico na terça seguinte, mas o governo Lerner não esperou.

No ano 2000 as terras foram desapropriadas pela União e as 108 famílias então acampadas receberam quatro alqueires cada uma para produzir e viver da terra e viver para na terra produzir. A área de Sandra e Paulo é um retrato de como a reforma agrária muda a vida das pessoas e redireciona o uso da terra fértil improdutiva para a produção de alimentos. Onde antes só havia soja (a área era arrendada pelo município para o agronegócio) hoje tem fruta, verdura, milho, feijão, tomate, arroz, cebola, alho, pepino, couve.

“Os únicos alimentos que compramos no mercado são o trigo e o açúcar, pois aqui não tem ainda ninguém que produza”, diz a agricultora. O que não é produzido em sua casa, é trocado por outros produtos de outras famílias. E o que não pode ser consumido na hora, é armazenado em forma de conservas para o ano todo.

O adubo dos alimentos é feito com outras plantas, como folha de bananeira, de eucalipto, de nabo, pasto. A colheita é manual. Algumas plantações mais extensas são feitas em parcerias com outras famílias do assentamento e a produção é dividida. O trabalho é feito com a ajuda de todos os membros da família. E nas horas vagas.

Paulo é o responsável pela cooperativa Terra Livre, que beneficia produtos do assentamento para os programas de fornecimento de alimento para escolas e outras instituições públicas. Sandra é pedagoga e leciona em período integral na Escola de Campo Contestado, sede do assentamento e localizada perto dali. As meninas estudam lá. Ana vai iniciar o terceiro ano do ensino médio e Dandara o 5º ano do fundamental. Ana nasceu acampada, quer se dedicar profissionalmente “a algum tipo de arte”, descreveu a mãe, para ajudar no movimento (do MST). Já Dandara nasceu quando a família já colhia os frutos do trabalho.

Ao redor da casa há uma grande quantidade de árvores frutíferas, com uma boa caminhada até chegar à área de cultivo de grãos. Embaixo das árvores, algumas frutíferas, são cultivadas as verduras e hortaliças. E isso é a agrofloresta. Na colheita manual dos produtos, se aparece algum buraco de bicho, o fruto não é levado para consumo e volta para a terra como adubo na próxima plantação.

Em casa eles também utilizam o sistema chamado “biofossa”, na aparência uma grande tampa de concreto a poucos metros da residência. São separadas as saídas de água de pia e de água de banheiro. Dentro da fossa, as bactérias fazem a sua parte. O ciclo da limpeza de resíduos termina numa fileira de bananeiras. As raízes se encarregam da parte final. Após todo esse processo, a água não contamina o solo.

A lavoura de girassol é uma experiência nova. Foi semeada há dois meses, com as flores já imensas, altas, algumas arqueando para o fim do ciclo, quando as sementes aparecem e podem ser retiradas para secagem. “A intenção é nesse começo originar mais sementes e estimular as outras famílias a plantarem girassol e, com isso, produzir o óleo”, explicou Sandra.

Nem todas as famílias do assentamento, que se multiplicaram para 150 com casamentos de filhos, mantém esse estilo de vida de cuidar e preservar os alimentos para que não se contaminem com resíduos que envenenam a comida. São aproximadamente 500 pessoas assentadas na região. E a comida sem veneno poderia chegar mais longe se houvesse estímulo ao transporte e comercialização. Para além da cooperativa que abastece escolas, toda a produção dessa família é para consumo próprio ou para escambo com os vizinhos.

O que falta de incentivo para levar esses alimentos à mesa de mais brasileiros, sobra em boa vontade para passar o conhecimento adiante. Seja com os alunos na escola do assentamento, seja no atendimento a pessoas como nós, visitantes do Terra Sem Males, que atuamos para passar essa mensagem de luta adiante. O Assentamento Contestado está de portas abertas para quem quiser ver como a produção de comida sem veneno é possível. E é uma realidade feita por poucos e para poucos, essas famílias que passaram pelo sacrifício de morar anos num barraco de lona, fugindo do desemprego, buscando solidarização de terras para plantar, terras que no Brasil são dominadas por grandes proprietários.

- Fotos por Joka Madruga.

Fonte: Terra sem Males

Temas: Agricultura campesina y prácticas tradicionales, Tierra, territorio y bienes comunes

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