Uso de sementes crioulas na resistência camponesa em ambiente agroecológico
"Os Bancos de Sementes Crioulas se constitui como uma das principais formas agroecológicas de resistência adotada pelos movimentos sociais camponeses e agricultores, em oposição ao avanço das sementes controladas pelas corporações, sejam sementes híbridas ou transgênicas", esclarece Roberto Naime, colunista, Doutor em Geologia Ambiental e docente na Universidade Feevale, em artigo publicado por EcoDebate, 05-01-2016.
6 de janeiro de 2016
Eis o artigo.
SARAVELLE (2014) manifesta que a chamada “revolução verde” promoveu o uso de insumos e sementes modificadas, produzidos e comercializados por corporações internacionais, resultando na perda da autonomia alimentar, cultural e da agrobiodiversidade dos camponeses e agricultores. A agroecologia busca compreender os fenômenos relacionados à agricultura, focando na Soberania Alimentar, em especial através das sementes crioulas.
SARAVELLE (2014) visando avaliar a importância destas sementes para os camponeses avaliou a são mantidas 14 variedades de milho e 28 de feijão. A principal estratégia de conservação é “in situ on farm”. A produtividade média foi de 20 sacos/ha a mais do que a média estadual no mesmo período. Portanto, as sementes crioulas são uma estratégia de resistência camponesa na reprodução da vida e agrobiodiversidade, gerando renda, autonomia de escolha do que e como plantar.
A expansão do modelo tecnicista de produção e reprodução da vida nas últimas décadas têm gerado uma série deimpactos socioambientais no campo, materializados na implantação de pacote tecnológico conhecido como “Revolução Verde”, que patrocina uma perversa combinação de insumos, fertilizantes, agrotóxicos e sementes selecionadas e modificadas geneticamente, conforme SARAVELLE (2014). Todos estes insumos são produzidos e comercializados por corporações multinacionais, rigorosamente padronizadas e massificadas em todas as regiões do planeta, independente de suas condições climáticas e edáficas.
Além disto, este pacote foi causador da degradação sistemática da fertilidade natural dos solos e da agrobiodiversidade, entendida como um termo amplo que inclui todos os componentes da biodiversidade que têm relevância para a agricultura e alimentação, bem como todos os componentes da biodiversidade que constituem os agroecossistemas e as variedades e a variabilidade de animais, plantas e de microrganismos, em níveis genéticos tanto de espécies como de ecossistemas.
O sucesso de qualquer espécie depende de sua estratégia de reprodução, ou seja, como garantir alimentos, abrigo e parcerias. Cada comunidade, ao longo dos tempos, desenvolve seu modo de lidar com a natureza e os recursos disponíveis ao seu redor, interagindo com o espaço que ocupa através de uma diversidade de culturas e ritos, cerimônias e conhecimentos, que acabam por produzir diferentes territorialidades (PORTO-GONÇALVES, 2006) e também cultivares.
Assim surge a agricultura ou “cultura do campo”. Cada grupo constitui seu território e garante sua segurança alimentar através de suas “agriculturas”, de seu conhecimento construído a partir da íntima relação com o agroecossistema como qual interage.
Mas a partir da “Revolução Verde”, há um significativo incremento das monoculturas e a imposição de um modelo agroexportador altamente tecnificado, num movimento de completa negação da agricultura até então realizada, inclusive negando seu propósito de existir, que é garantir a alimentação de quem produz. A partir de então, a agricultura passa cada vez mais a ter uma lógica mercantil, sendo o alimento transformado em mercadoria.
Com o monopólio das sementes, e do novo modo de produção do conhecimento a ele associado, a produção tende a se dissociar da reprodução e da segurança alimentar (ASSESOAR, 2009) e passa a depender de algumas poucas corporações que se investem de uma posição privilegiada nas relações sociais e de poder que se configuram (PORTO-GONÇALVES, 2006).
Em oposição a este cenário tecnocrático de entendimento da questão da segurança alimentar e da proposta deste modelo de desenvolvimento para a agricultura, surge a agroecologia enquanto um campo do conhecimento baseado na perspectiva holística, de compreensão dos fenômenos relacionados à produção de alimentos, especialmente o problema do monopólio da venda das sementes pelas multinacionais e a perda da agrobiodiversidade (DE BIASE, 2010).
Neste contexto, os Bancos de Sementes Crioulas, estratégia surgida no Brasil na década de 1970 para a preservação “ex situ” das variedades crioulas (CORDEIRO et al., 1993), constitui-se como uma das principais formas agroecológicas de resistência adotada pelos movimentos sociais camponeses e agricultores, em oposição ao avanço das sementes controladas pelas corporações, sejam sementes híbridas ou transgênicas. O método de conservação “in situ on farm” é outra possibilidade de preservação de germoplasma onde a espécie é cultivada periodicamente (EMBRAPA, 2010), sofrendo continuamente a ação da seleção natural e artificial, numa dinâmica constante de adaptação.
SARAVELLE (2014) explicitam o estudo de caso da experiência da União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu (UNAIC), no Rio Grande do Sul, e o alcance da soberania alimentar em seu contexto.
Canguçu é um município com cerca de 56.000 habitantes, numa extensão territorial de, aproximadamente, 3.500 km2 (IBGE, 2008), onde estão localizados 9.444 estabelecimentos agropecuários, de acordo com o Censo Agropecuário 2006 do IBGE. Este é o município brasileiro com o maior número de estabelecimentos agropecuários.
Por este motivo, Canguçu é considerada a capital nacional da agricultura familiar. Cerca de 32.000 habitantes estão situados na zona rural (IBGE, 2006). A União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu (UNAIC) foi fundada em 18 de março de 1988, no município de Canguçu, na região sul do estado do Rio Grande do Sul e reunia originalmente 50 associações comunitárias, que permanecem ainda hoje associadas (SANTOS et al., 2006, p.83).
Em 2005, com a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) no estado, a UNAIC já mais estruturada, voltou a realizar o fornecimento institucional, principalmente para a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB).
O passo seguinte foi a criação, no mesmo ano, do Banco Comunitário de Sementes. Este banco tinha como principal objetivo resgatar algumas variedades de sementes crioulas da região e retomar o hábito da armazenagem e troca entre os agricultores. O banco nasceu com objetivos comerciais de ser mais uma alternativa de renda pros agricultores e sociais, e para preservar espécies de importância cultural para comunidades locais.
A pesquisa de campo, realizada de forma informal e espontânea (VERDEJO, 2006), também revela uma quantidade muito grande de variedades de sementes crioulas de grãos mantidas pela entidade. São preservadas 19 variedades de milho e 30 de feijão, preferencialmente “in situ on farm”, ou seja são cultivadas anualmente e mantidas pelos próprios agricultores, ao invés da manutenção “ex situ”, onde são armazenadas em câmaras refrigeradas.
Além da possibilidade de geração de renda, as sementes crioulas também representam a liberdade de escolha de qual variedade plantar para o consumo familiar e integrado à propriedade rural. Agricultores relatam que após o beneficiamento dos grãos de milho, a porção que seria descartada por não atender o padrão necessário é utilizada na alimentação de seus porcos, não havendo desperdício de matéria orgânica.
Desta forma, não há perdas, pois as sementes plantadas inicialmente são próprias, e o destino que sua produção se direciona é controlado pelos agricultores como sujeitos das ações. Outro ponto bastante ressaltado, é a adaptaçãofenotípica das variedades às condições ambientais regionais.
Por conta desta característica, os custos de produção por área cultivada são bem menores se comparados às culturas que utilizam as sementes corporativas tanto híbridas, como transgênicas. A produtividade média era de 71 sacos/ha sem o auxílio de irrigação ou adubação após o plantio. A média de produtividade no estado do Rio Grande do Sul, no mesmo período, segundo dados do Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul (2010), foi de 51,5 sacos/ha, se considerando sacos de 50 kg.
Se observam assim, valores de produtividade maiores das sementes crioulas produzidas em Canguçu que na média produzem 70 sacos/ha. Não é por acaso que Canguçu figura entre os maiores produtores de milho do estado, e as sementes crioulas são as grandes responsáveis por estes números.
Desde 2002 é realizada a Feira Estadual de Sementes Crioulas e Tecnologias Populares no município, com o intuito de promover a troca de sementes, não apenas da região, mas também do estado inteiro, além de divulgar a importância das sementes crioulas para a agricultura camponesa e a importância e necessidade do enfrentamento aos transgênicos.
O termo “Tecnologias Populares” foi agregado para que a Feira também abarcasse outros temas relacionados à Agroecologia, seguindo propõe ALTIERI (2001) e suas tecnologias apropriadas geradoras de autonomia. Como pode ser notado, as Feiras Estaduais de Sementes Crioulas e Tecnologias Populares são um importante espaço de trocas de conhecimento, material genético, experiências e fortalecimento político.
As sementes crioulas são livres, pois não exigem pagamento de royalties para o seu plantio, além de serem guardadas de uma safra para outra reduzindo os custos de produção. A soberania alimentar é definida pela Via Campesina Internacional como o “direito das pessoas aos alimentos saudáveis e culturalmente apropriados, produzidos através de métodos sustentáveis e saudáveis, e seu direito a definir seus próprios alimentos e sistemas de agricultura” sendo materializado na experiência da UNAIC em seu trabalho com as sementes crioulas, conformeSARAVELLE (2014).
Ocorre saudar e divulgar esta iniciativa, que é tão significativa para a simbologia e as práticas agrícolas em busca de formulação de estratégias satisfatórias de qualidade de vida, propiciada por alimentação saudável.
Referências:
ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre, RS. Editora Universidade/UFRGS, 2001.
ASSESOAR. Quem controla a semente controla o mundo in Cadernos Assesoar nº 07, Francisco Beltrão, PR, 2009. ATLAS SOCIOECONÔMICO DO RIO GRANDE DO SUL (2010). Disponível em: Acesso em: 28 out. 2010.
BRASIL. Convenção sobre Diversidade Biológica (1992). Disponível em: Acesso em: 28 out. 2010.
CORDEIRO, A et al. Gestão de bancos de sementes comunitários, Rio de Janeiro, RJ.
EMBRAPA. Conservação on farm da agrobiodiversidade, estudos etnobiológicos e segurança alimentar do povo indígena Krahô. Brasília, DF, 2010. Cadernos de Agroecologia – ISSN 2236-7934 – Vol 9, No. 4, Nov 2014 9 IBGE. Censo Agropecuário 2006. Disponível aqui (pdf). Acesso em: 28 out. 2010.
PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização, Rio de Janeiro, RJ. Ed. Civilização Brasileira, 2006.
SANTOS, A.F.; EICHOLZ, D.E.; NEVES, E. Agricultura familiar semente da esperança. Canguçu, RS. Menestrel editora, 2006.
VERDEJO, M. E. Diagnóstico Rural Participativo – Guia prático DRP. Brasília: SAF/MDA, 2006.
SARAVALLE, Caio Yamazaki. Sementes Crioulas: estratégias de resistência camponesa na UNAIC (União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu-RS), Canguçu, Rio Grande do Sul. Cadernos de Agroecologia – ISSN 2236-7934 – Vol 9, No. 4, Nov 2014
Fonte: IHU