Sobreviventes relembram dia do massacre no Pará
“Todo dia, todo dia, todo dia”. É assim que Maria Raimunda Agapito, 62 anos, se refere às lembranças do 17 de abril de 1996 – data em que ocorreu o Massacre de Eldorado dos Carajás. “Quando eu me lembro, de noite, fecho os olhos, parece que eu estou vendo. Nunca saiu da minha cabeça. Todo o tempo”, relatou a sobrevivente.
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Especial "Feridas Abertas" / Brasil de Fato
Nesta semana, o assassinato de trabalhadores sem-terra, ocorrido na Curva do S, trecho da rodovia PA-275, no sul do Pará, completa 20 anos.
A ação da Polícia Militar (PM) para liberar a estrada, em Eldorado dos Carajás, ocupada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) deixou 21 mortos e 69 feridos. O Brasil de Fato esteve na região para conversar com sobreviventes e mutilados, além de familiares dos mortos, e mostra, nesta série especial de reportagens, as marcas ainda presentes do massacre.
Raimunda fazia parte do grupo de mais de 1,5 mil pessoas, entre mulheres, homens e crianças, organizadas pelo MST, que marchavam rumo a Belém para reivindicar a desapropriação da Fazenda Macaxeira, em Eldorado dos Carajás, ocupada desde novembro de 1995. Eles pediam também políticas de assistência para o Assentamento Palmares, na cidade de Parauapebas, no sul do Pará e de onde partiu a caminhada. Após sete dias de percurso, cansadas e sem comida, as famílias decidiram ocupar a rodovia para negociar alimento e transporte com o governo do estado, na época comandado por Almir Gabriel (PSDB).
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“As negociações eram de que 50 ônibus viriam encontrar a nossa marcha, que seriam providenciados pelo governo do estado. Os carros não vieram. Foi-se percebendo que não havia intenção do governo de transformar a marcha em uma caravana até Belém”, apontou Jorge Néri, dirigente estadual do movimento. Ele lembra que, em vez de apoiar os sem-terra, estava sendo planejada uma operação policial exemplar para desestruturar a luta pela terra na região. “O estado e as oligarquias se articularam para aniquilar fisicamente lideranças do MST”, destacou, lembrando que muitas das mortes ocorreram com tiros à queima-roupa, conforme laudo necroscópico.
Impunidade
Passados 20 anos, os dois comandantes das tropas estão presos. São eles, coronel Mário Colares Pantoja e major José Maria Oliveira, que receberam penas de 280 e 158 anos, respectivamente. Os policiais de patentes inferiores também foram a julgamento, mas foram todos absolvidos. De acordo com o promotor Marco Aurélio Nascimento, que atuou no caso, a manipulação da cena do crime pela polícia com a retirada dos corpos, a ausência de identificação no fardamento dos agentes, o sumiço da cautela de armas (que identifica qual armamento foi usado pelos policiais) inviabilizaram a individualização da pena e, portanto, a condenação deles.
Para o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista Afonso, que foi assistente de acusação no julgamento, o Massacre de Eldorado dos Carajás “foi um caso típico de impunidade”. “O então governador do estado, Almir Gabriel; o então Secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara; e o então comandante da PM, Fabiano Lopes, foram isentados do processo de investigação, não foram indiciados e, consequentemente, não foram denunciados. Restou a tentativa de responsabilizar os 155 policiais que participaram da ação. Ou seja, essa cadeia de comando desde o início foi quebrada”, analisou.
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A memória dos sobreviventes
Liberar a rodovia, mesmo que fosse necessário o uso da força. Esta foi a ordem, segundo o Ministério Público, dada pelo secretário de Segurança Pública do Pará na época, Paulo Sette Câmara, ao comando da PM naquele dia 17. Mais de 150 policiais, sendo 85 de Marabá e o restante de Parauapebas, cada tropa de um lado da estrada, encurralando os trabalhadores. O resultado foi 19 trabalhadores assassinados no local e 69 feridos. Do lado da polícia, nenhuma morte e alguns feridos leves. “Apenas um policial teve um ferimento mais grave, foi uma pedrada que recebeu no olho”, esclareceu o promotor Marco Aurélio Nascimento, que atuou no caso. Dois trabalhadores morreram em decorrência dos ferimentos após o massacre.
“Os policiais desceram um atrás do outro, se enfileiraram, uns com escudo, outros com arma mesmo. Os sem-terra gritavam: 'Não quero guerra, quero terra'. O tiroteio foi rápido”, relembrou o lavrador Josimar Pereira Freitas, 53 anos, atingido por uma bala na perna. Ele conta que muitos correram para a mata ao lado da rodovia e outros foram perseguidos por policiais. “A gente estava no mato e dava para ouvir [a polícia chamando pelas lideranças]. 'Ferrari, Toto, vocês não são bons? Apareçam, seus covardes’. Os policiais, especialmente os de Parauapebas, reconheciam todos nós”, contou Eurival Carvalho, 49 anos, conhecido como Toto.
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Para Marlene Moreira Paixão, 35 anos, foram pelo menos seis horas dentro da mata com o tio que estava baleado. “Ele pediu para eu rasgar a roupa dele. Eu rasguei a camisa e amarramos a perna dele para parar de sangrar. Ele estava o tempo todo consciente”, relatou. Com o passar das horas, após avaliarem que já estariam em segurança, ela decidiu retornar à estrada e caminhar por cerca de quatro quilômetros (km) até a chegar a Eldorado dos Carajás e buscar ajuda. “Deixei meu tio no mato e fui na casa de outra tia. Ela veio com a ambulância e nós fomos para Marabá”, contou.
As horas que se seguiram à chegada dos policiais também foram de horror para Inácio Pereira, 76 anos. Por estar desacordado, ele foi dado como morto e colocado em uma caminhonete com as demais vítimas, apenas no hospital o erro foi desfeito. Outros sobreviventes recordam com frequência a história de Inácio, mas ele prefere não lembrar daquele dia. “Coisa ruim a gente não conta, porque é como viver de novo”, disse. A perda do filho na ocasião torna o fato ainda mais difícil para ele, que, apesar de tudo, se orgulha da terra conquistada. “A vida na roça é boa. Tendo a terra da gente, porque na terra dos outros, a gente só é humilhado”, declarou.
Carnificina
A tese inicial de confronto do governo estadual e reproduzida por grandes veículos de imprensa foi desmontada pelo laudo necroscópico dos corpos e pela análise das imagens feita por um canal de tevê local. “As pessoas foram mortas com tiros à queima-roupa, nas costas, na nuca”, apontou o promotor do caso. Segundo Nascimento, um dos sem-terra foi morto com arma branca, tendo um terço da cabeça decepada. “Foi uma verdadeira carnificina. A quantidade de tiros é uma coisa assombrosa. No dia seguinte, nós fomos ao local e tinha cápsulas espalhadas, foram centenas de tiros”, acrescentou.
O médico-legista Nelson Massini, indicado para o caso pela Comissão de Direitos da Câmara Federal, apontou que pelo menos 13 vítimas foram assassinadas sumariamente. Uma das principais provas da ação deliberada da polícia foi o laudo produzido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a pedido da Promotoria, assinado pelo perito Ricardo Molina. Ele analisou as imagens feitas pela TV Liberal que mostram os primeiros momentos do massacre. Ele esclareceu que a cena em que os sem-terra lançam pedras e paus em direção à polícia, na verdade, era uma tentativa de resgaste de um trabalhador que já havia sido atingido.
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“Eles não estavam atacando a polícia. Eles queriam se aproximar porque viram que o Amâncio [dos Santos Silva] estava caído atrás. E ali já começou um tiroteio, vários sem-terra foram atingidos ali”, explicou. No momento seguinte, o vídeo analisado por Molina, apesar de estar com um forte clarão branco, mostrava, após melhoramento da imagem, pessoas mortas com tiro nas costas. “O que seria, então, a prova definitiva que houve uma chacina e não necessariamente um confronto, porque você tinha já uma pessoa caída ali perto do barracão com um tiro nas costas. Era uma prova contundente de que havia execuções e não confronto”, acrescentou.
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Primeira de uma série de reportagens especiais produzidas pelo Brasil de Fato.
Enviados especiais ao Pará: Camila Maciel (texto) e Marcelo Cruz (fotos)
Marabá (PA)
13 de Abril de 2016