Reestruturação econômica do agronegócio

Idioma Portugués
País Brasil

Conheça capítulo de livro inédito que será lançado em breve pelo economista Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

CAPÍTULO 5

REESTRUTURAÇÃO DA ECONOMIA DO AGRONEGÓCIO ANOS 2000

1 – Antecedentes
A abordagem histórica do capítulo 4 analisa um período de transição, intermediário, entre duas graves crises cambiais – 1982 e 1999. A promeira crise deflagra um conjunto de mudanças econômicas externas, que somadas às mudanças institucionais autônoma da Constituição de 1988, interrompem, sem reverter, a estratégia integrada da expansão dos complexos agro-industriais, mercado de terras e sistema de crédito rural, bases da construção do modelo de capital financeiro na agricultura, analisado nos capítulos iniciais (1,2 e 3).

Por sua vez, 1999 é marco de outra grave crise cambial, que de certa forma interromperá o período de transição, – dos meados dos anos 80 até final dos anos 90, para demarcar a construção de um novo projeto de acumulação do capital no setor agrícola, consertado por dentro da política econômica e financeira do Estado. Esse projeto, que se autodenomina de agronegócio, requer uma espécie de varredura conceitual prévia e bem assim uma clara demarcação histórica, para poder ser devidamente analisado. Vou iniciar pela tarefa de esclarecimento conceitual.

2 – Conceituação

“Agribusiness” é uma noção descritiva das operações de produção e distribuição de suprimentos agrícolas e processamento industrial, realizadas antes, durante e depois da produção agropecuária, cuja soma econômica constituiria uma espécie do novo setor de atividade econômica. Os americanos Davis e Goldberg usaram esta noção em 1957, mas ela já era utilizada, independentemente e de longa data por outros autores – de maneira aproximada. As noções de complexos agroindustriais, complexo rural, cadeia produtiva e “filière” são análogas. Estas noções são empregadas em textos de Administração, Marketing, Sociologia, Economia e Ciência Política como informações técnicas, inseridas em algum enfoque teórico dessas disciplinas científicas, porque a noção técnica contem fatos e informações, mas não constitui propriamente um conceito seminal teoricamente explicativo de relações econômicas e sociais determinadas70.

Como mera descrição de fenômeno, o produto medido por transações monetárias, sem dupla contagem, que se gera neste setor de agronegócios, está aquém do conceito teórico. É pura descrição de fenômeno empírico, cujo recorte taxonômico somente terá sentido na acepção de “theoria”, se ao recorte assim denominado, atribuímos algum significado, alguma relação real estável entre fenômenos, que de alguma maneira caracterize um sentido de determinação à constituição ou funcionamento deste setor de atividade.

Falar em agronegócio no sentido convencional, de negócios nos campos e nos ramos de produção a montante e a justante da agricultura, como se costumava dizer no período de primazia de noção de complexos agroindustriais, é apenas uma informação técnica à busca de um esforço ulterior. Este precisa desvendar, desnudar e desencobrir71 o sentido essencial das relações econômicas e sociais que se dão no interior deste setor (do agronegócio), para justificar o corte taxonômico proposto. Sem este segundo passo, a expressão é apenas uma informação técnica, carente de pretensão heurística, ou seja, sem hipótese à descoberta científica e, portanto ainda precária para análise técnico-científica.

Evidentemente não é essa concepção descritiva quenos propusemos enfocar ao ratar da economia brasileira do agronegócio neste capítulo. Isto nos obriga desde logo a estabelecer os limites conceituais e históricos a que nos reportamos.

Como observamos nos capítulos iniciais deste livro, há uma passagem histórica específica no Brasil,da economia agrícola convencional do setor primário da economia, para uma agricultura integrada tecnicamente com a indústria (ver conceito de integração técnica a p. ); e em seguida propusemos o conceito de integração de capitais na agricultura (p ….), que dará ensejo à formulação teŕica do “Capital Financeiro na Agricultura”, título primitivo de livro que publiquei em 1985. Não usei na época a noção de “agribusiness” porque não precisaria fazê-lo. A discussão dos complexos agroindustriais ou cadeias agroindustriais como posteriormente se enfatizou, é suficientemente embasada para localizar um dos setores empíricos então invocados – os complexos agroindustriais. Mas no caso brasileiro, o mercado de terras e o sistema de crédito rural, ambos sob patrocínio fundamental do Estado, são peças essenciais para possibilitar a estratégia de capital financeiro na agricultura. Portanto, há uma historicidade original concreta, de construção dessa estratégia (regime militar); e um arranjo teórico específico, de inspiração marxiana e keynesiana, à teoria de capital financeiro na agricultura.

O recurso à história e às teorias sobre o desenvolvimento do capitalismo na histórica concreta de um País, como ora se propõe, tem o propósito de desvendar a natureza da estrutura do sistema econômico e de seus movimentos históricos concretos. Neste sentido, penso que, se não tivermos a pretensão científica de propor conceitos explicativos ao movimento do real, historicamente observado, correremos o risco de investigar uma casuística infinita de fenômenos empíricos, sob a denominação genérica de agronegócio ou de qualquer outro objeto, sem captar as dimensões essenciais dessa estrutura e do seu movimento. Essa pretensão teórica necessária, precisa se fazer acompanhar de sólida demonstração de sua adequação explicativa à classe de fenômenos que se propõe desvendar, sob pena de esvanecer-se no ar do teoricismo. Este é vício acadêmico invertido, mas com implicações à descoberta científica similares ao empiricismo, porque ambos produzem escasso conhecimento significativo sobre os próprios fenômenos enfocados.

A história econômica brasileira do período militar revelou um processo concreto de articulação do grande capital agroindustrial, do sistema de crédito público à agricultura e à agroindustrial e da propriedade fundiária, para estruturar uma estratégia econômica e política de modernização conservadora da agricultura. Esse processo, do ponto de vista da acumulação do capital, tem o caráter de um pacto da economia política, em sua acepção clássica, e é fundamentado na organização dos interesses hegemônicos de classes sociais no interior do aparelho do Estado. Mas será que a teoria do capital que tentou captar e explicar estes fenômenos para um dado período histórico – 1965-1985 – teria algum potencia explicativo além desse período? Vamos verificar isto, e sob condições históricas concretas, propor essa abordagem teórica, apicada à economia brasileira do agronegócio no século XXI.

Decorridas quase duas décadas de crise econômico e crise de estado ( ver cap. 4), a estratégia de acumulação de capital no espaço do agronegócio retorna com força nos anos 2000, ao mesmo tempo obscurecida pelo abandono das formulações teórica vinculadas aos clássicos do pensamento econômico; mas agora referida a noções puramente descritivas de fenômenos empíricos.

Observe-se que na formulação original – do capital financeiro na agricultura – a acumulação de capital, sob múltiplas formas de capital, é integrada ao capital aplicado em terras. E nessa integração de capitais, a captura da renda da terra é essencial (ver cap. 3). Da mesma maneira, a montagem institucionalizada de um sistema de crédito para a agricultura (SNCR) é também essencial ao processo de construção de complexos agroindustriais e da função dos capitais ai operantes, com clara estratégia de perseguição da taxa média de lucro do capital operante em múltiplos setores e atividades.

Como historicamente a estratégia de capital financeiro na agricultura depende desses mercados organizados – de terras, de crédito e dos complexos agroindustriais e como esses mercados dependem essencialmente de regulação (ou desregulação conforme o caso) e provisão estatal, o capital financeiro na agricultura irá se configurar como virtual pacto de economia política entre cadeias agroindustriais, grande propriedade fundiária e o Estado, tendo em vista viabilizar uma parceria estratégica. Tudo isto é estranho `noção convencional de agronegócio, que não é nem tem a pretensão de teoria do capital.

Mas sem teoria adequada à classe de fenômenos que se pretende explicar, não se avança no conhecimento. Dai que, para entender o que se passa no Brasil em termos de expansão das atividades do setor primário a partir dos anos 2000, recorro a teoria do capital financeiro na agricultura. Esta é a matriz teórica explicativa do processo real de acumulação de capital neste setor, empiricamente designado – o do agronegócio, mas alarado no contexto das relaçoes de uma economia política concreta; e nuca restrita aos limites de sua convencional empiria.

Em sítese, o “aproach” teórico apropriado para captar uma dada estratégia de captura do excedente econômico ou de acumulação de capital no campo empírico dos agronegócios é o da economia política clássica de Marx, adaptada ao estilo keynesiano para o caso brasileiro, em sentido estritamente econômico, sob denominação de capital financeiro na agricultura brasileira.

Por outro lado, a economia política clássica bem como a crítica à economia política, do 'Capital” de Marx, são teorias econômicas do movimento das classes sociais hegemônicas. Este enfoque foi abandonado pela economia convencional, desde os neoclássicos do final do Século XIX, passando praticamente por quase todas as escolas de pensamento do Século XX, com exceção do próprio marxismo e das teorias do desenvolvimento de corte estrutural. Essa vertente crítica é recuperada nessa nossa abordagem, como se verá mais adiante (cap. 6), naquilo que concerne à problemática em foco.

Finalmente, creio que ideia-força da acumulação de capital em múltiplos setores – agricultura, cadeias agroindustriais, mercado de terras e sistema de crédito, sob patrocínio do Estado, retornará ao centro do debate das políticas públicas no Brasil dos anos 20000, agora como estratégia econômica principal do comercio exterior; mas também como pacto da economia política, no sentido clássico das classes sociais associadas politicamente, para captura do excedente econômico e particularmente da renda fundiária agrícola e mineral. Este enfoque de economia política, tendo sempre por referência teórica a retomada do capital financeiro na agricultura, será revisitado, para caracterizar e interpretar a economia do agronegócio, historicamente recomposta na década 2000. Esta é a abordagem que se segue nas várias secções deste capítulo.

3 – Condições Externas e Internas para o Relançamento da Economia do Agronegócio depois de 1999

Novamente, em final de 1988 a crise de liquidez internacional afeta a economia brasileira, provocando enorme fuga de capital e forçando a mudança do regime cambial. Dede então a política do ajuste externo se altera. Recorre-se forçosamente aos empréstimos do Fundo Monetário internacional (FMI) em três sucessivas operações de socorro – 1999, 2001 e 2003.

A política de comercio exterior é alterada ao longo do segundo governo FHC e passa a perseguir a estratégia que abandonara em 1994: gerar saldos de comércio exterior a qualquer custo, tendo em vista suprir o déficit da Conta Corrente. Este, por seu turno, se exacerba, pela pressão das saídas de rendas de capital, antes mesmo que se fizessem sentir os efeitos da reversão na política de comércio externo (ver a comparação do déficit na Conta Corrente com os saldos comerciais entre 2000 e 2010 na tabela 5.2). Ademais, ocorre fuga e não ingresso liquido de capitais no período imediatamente anterior e posterior à crise cambial (1996 até 2000). A Balança de Pagamentos72 apresenta déficit continuado, de sorte a promover acentuada perda de Reservas Internacionais.

Outra vez, como ocorrera na primeira crise da dívida de 1982, os setores primário-exportadores são escalados para gerar esse saldo comercial. Nesse contexto, a agricultura capitalista, autodenominada de agronegócio, volta às prioridades da agenda política macroeconômica externa e da política agrícola interna. Isto ocorre depois de forte desmontagem dos instrumentos de fomento agrícola no período precedente (anos 90), incluindo crédito rural, os preços de garantia, o investimento em pesquisa,e o investimento em infra-estrutra comercial – a exemplo dos serviços agropecuários, dos portos, da malha viária, etc. Isto tudo, aliado à relativa desvantagem do País no comércio internacional durante o período do Real sobrevalorizado, adiou o relançamento da economia do agronegócio para o início do século XXI.

Observe-se que agronegócio na acepção brasileira do termo é uma associação do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária73. Essa associação realiza uma estratégia econômica de capital financeiro, perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocínio de políticas de Estado.

O segundo governo Fernando Henrique Cardoso iniciou o relançamento do agronegócio, senão como politica estruturada, com algumas iniciativas que ao final convergiram: 9i) um programa prioritário de investimento em infraestrutura territorial, com “eixos de desenvolvimento”74, visando à criação de economias esternas que incorporassem novos territórios, meios de transportes e corredores comerciais ao agronegócio; (ii) um explícito direcionamento do sistema público de pesquisa agropecuária (Embrapa), a operar em perfeita sincronia com empresas multinacionais do agronegócio; (iii) uma regulação frouxa do mercado e terras, de sorte a deixar fora do controle público as “terras devolutas”, mais aquelas que declaradamente não cumprem a função social, além de boa parte das autodeclaradas produtivas (ver análise da seçao 4); (iv) a mudança na política cambial, que ao eliminar naquela conjuntura a sobrevalorização do real, tornaria a economia do agronegócio competitiva junto ao comércio internacional e funcional para a estratégia do ajustamento macroeconômico perseguida; (v) reativa-se a provisão do crédito rural nos Panos Safra, iniciado com o programa MODERFROTA, e retomado com vigor no período 2003/2010 (ver análise e dados da seção 5).

Este esforço de relançamento, forçado pelas circunstâncias cambiais de 1999, encontrará um comércio mundial muito receptivo na década de 2000 para meia duzia de commodities em rápida expansão75 nos ramos de 'feedgrais' (soja e milho), açúcar-alcool, carnes (bovina e de aves) e celulose de madeira, que juntamente com os produtos minerais crescerão fortemente e passarão a dominar a pauta das exportações brasileiras no período 2000-2010 (Ver Gráfico 1)

Por outro lado, é preciso contextualizar o escopo macroeconômico sob o qual se deu o relançamento da estratégia do agronegócio no 2º governo FHC. Sua sequência histórica é completamente continuada e reforçada no 1º governo Lula, com resultados macroeconômicos aparentemente imbatíveis. Mas já no 2º governo Lula ocorrerá recrudescimento do desequilíbrio externo. Este desequilíbrio fora o motivo original da forçada opção por exportações primárias como espécie de solução conjuntural/estrutural para o comércio exterior, que aparentemente livraria o País do déficit em Conta Corrente.

O sucesso aparente da solução exportadora significará na primeira década do século uma quadruplicação do seu valor em dólares – o valor médio anual das exportações de50,0 bilhões de dólares no período 1995/99 cresce para 200,0 bilhões no final da década de 2000; mas o grande campeão dessa evolução é a categoria dos produtos básicos, que pula de 25% a pauta para 45% em 2010. Se somarmos aos produtos básicos “semimanufaturados”, que na verdade correspondem a uma pauta exportadora das cadeias agroindustriais e minerais, veremos que esse conjunto de exportações primárias - “básicos” + “semi-elaboradas” evoluirá de 44% no período 1995/99 para 54,3 no triênio 2008/2010, enquanto que de forma recíproca as exportações manufaturadas involuirão em termos proporcionais no mesmo período, caindo de 56% para 43,4% da pauta. Uma visão gráfica para o período mais longo – 1964-2010 – (ver gráfico 1) mostra com clareza que o fenômeno da “primarização” do comércio exterior é efetivamente desta década dos anos 2000, em contraponto à fase áurea de crescimento da economia no período militar – 1964/1984, quando há avanço proporcional da exportação de manufaturados.

Mas o sucesso mais imediato da opção primário-exportadora caberá ao Governo Lula no período 2003/2007, quando vigorosos saldos comerciais, oriundos dessas exportações, superaram o déficit de serviços da “Conta-Corrente”, tornando-a superavitária76. A partir de 2008, contudo, recrudescerá o déficit na Conta-Corrente, tornando frágil o argumento da via primária como solução estrutural para o desequilibro externo.

Tabela 5.1 – Evolução da Composição das Transações Externas Correntes na Década de 2000 – (Bilhões de dólares)

“Na verdade o que as “Transações Correntes” revelam, acrescido da informação da forte elevação das exportações “Básicas”; e da forte perda relativa dos “Manufacturados” é indicação aparente de certa tendência a especialização no comercio exterior, de certa forma vinculada a compensar o déficit estrutural dos “Serviços”. Estes servições, por sua vez, refletem a remuneração do capital estrangeiro aqui aportado, sob diversos títulos, cuja resultante em termos de exportações liquidas é fortemente negativo. O setor primário é escalado para suprir esta brecha, e o faz de maneira exitosa nas conjunturas da crise cambial. Mas não é razoável imaginar esta equação conjuntural como solução estrutural ao desequilíbrio externo.

Dois fenômenos irão minar no tempo a estratégia primário-exportadora como solução ao desequilíbrio externo: 1) a perda de competitividade das exportações manufaturadas, de maneira geral; 2) o crescimento exacerbado do déficit da Conta Servições, atribuível ao maior peso do capital estrangeiro na economia brasileira, sem contrapartidas de exportações liquidas. A resultante desses fenômenos, agravada por outros fatores conjunturais, é o recrudescimento do déficit em Conta Corrente, a partir de 2008, com tendência à ampliação subsequente.

Finalmente, deve-se atentar para o fato de que há na presente conjuntura certa confusão de situações críticas da economia mundial, que dificultam compreender a natureza crítica de nossa inserção externa. A via primária das exportações não resolve o desequilíbrio externo, mas é conjunturalmente uma fonte precária à solvência do Balanço de Pagamentos. Mas é absolutamente inviável como solução estrutural ao desequilíbrio externo, até mesmo porque a persistência do “déficit” no quadriênio 2008-2011 evidencia um custo de remuneração ao capital estrangeiro que não pode ser compensado por saldos comerciais, gerados pelas “vantagens comparativas” das exportações primárias.
4 – Mudanças Cíclicas no “Mercado de Terras”: Expansão de “Commodities”, Valorização e Desregulação Fundiária

O movimento de expansão da exportação na década passada, com destaque à exportação de produtos primários, que demonstramos na seção precedente, suporta um processo intenso de valorização das terras agropecuárias e ira propiciar uma clara reversão do ciclo de desvalorização, observado nos anos 90. Vários estudos recentes de análise do mercado de terras no Brasil, a exemplo de Sauer e Leite (2011)77, e Gasques et alii (2007)78 (9) , demonstram, com dados de evolução dos preços das terras e arrendamentos, as mudanças significativas ocorridas no período para vários tipos da terra em quase todos os Estados brasileiros.

Na verdade, o preço da terra, como o caracterizamos no Capítulo 3, é a expressão empírica da expectativa da renda da terra capitalizada, calculada pelos agentes de mercado em cada conjuntura. O que os dados comparativos para o período 1994/97 e 2000/2006 revelam (Ver Tabela 5.2), é um movimento claro de deslocamento cíclico da renda da terra no Brasil, fruto de várias mudanças da economia e política econômica. Estas mudanças dão lugar ao projeto de expansão da economia do agronegócio nesta década, que por diversas razões estiveram ausentes no período precedente (aos 90), daí denominá-lo – período de transição.

O processo de relançamento da valorização fundiária, visto que este mesmo surto fora observado no período 1967/86, reflete o “boom” de commodities mundiais da década. Neste sentido, outros mercados nacionais de terras e arrendamentos também o refletem – a exemplo da análise empírica do preço da terra para a economia norteamericana entre 2000 e 2007, que Gasques et alii79 revela em seu já citado trabalho.

Por outro lado, como o mercado de terras transnaciona títulos de direito patrimonial ou contratos de arrendamento e não mercadorias como outras quaisquer, os preços referenciais desses títulos não são meros subprodutos dos mercados de “commodities” e nem tampouco a posse do ativo transnacionado encerra as relações econômico-sociais nesses mercados. Isto porque, se os mercados de terras no Brasil e nos EUA podem ser comparados pelos preços dos ativos transnacionados, não podem, por sua vez, pelo conjunto de instituições nacionais distintas que regulam a apropriação da renda fundiária aqui e lá.

Considerando, como já referido, que a década dos anos 2000 carrega uma forte diferença relativamente à década anterior, no que concerne à valorização fundiária, é importante observar os dados de duas fases bem distintas dos ciclos de desvalorização/valorização recentes (Tabela 5.2), interpretando-os nos seus contextos históricos devidos.

Tabela 5.2 – Variações Reais Médias do Preço da Terra em Fases Distintas do Ciclo Agropecuário: 1994-1997 e 2000/2006 (Terras de Lavoura


É preciso destacar que a formação do preço da terra e a apropriação de terras públicas ou privadas sempre se constituíram nos ciclos fortes de expansão agrícola, como o atual, em processos peculiares de associação dos grandes proprietários com as agẽncias de Estado, encarregadas da política fundiária. Esses processos irão se repetir na década de 2000, sob novas roupagens, mas fundamentalmente com o mesmo sentido. E isto irá configurar ap setor do agronegócio um campo peculiar de valorização de sua riqueza, propiciada pelo “boom” das “commodities” e alavancada, para usar uma expressão tão ao gosto do sistema financeiro, pela frouxidão da política fundiária, como pretendo demonstrar na seção seguinte.

4.1 – Políticas Incidentes sobre a Reforma Fundiária e o Preço da Terra

Considerando-se a renda fundiária como núcleo teórico de explicação do preço da terra – (ver a este respeito à abordagem do Capítulo 3, seção 3.1 - “Circulação Financeira e Mercado de Terras”), o preço das mercadorias produzidas ou potencialmente produzíveis na terra e as demais condições susceptíveis de gerar renda fundiária afetam os preços das terras e arrendamentos, propiciando ganhos ou perdas, co-determinados, ora pelo movimento conjuntural dos mercados agrícolas, ora pela política econômica. Em particular, a política fundiária do Estado desempenha esse papel regulador no espaço do mercado de terras nacional, sobre o qual incide a soberania territorial do Estado.

Isto post, ocorrendo uma mudança cíclica da demanda por “commodities”, conforme observado na seção 3, os preços da terra e dos arrendamentos deverão refletir essa mudança, propiciando incorporação das novas terras e melhor utilização daquelas já incorporadas ao mercado de terras. Em ambos os casos haverá elevação da renda fundiária macroeconômica e “ipso facto”, do preço das terras rurais em geral.

Mas a dinâmica de expansão da renda fundiária para novos e antigos territórios, não é estritamente mercantil, a menos que se considere a terra como mercadoria como outra qualquer, e sua oferta um caso particular de produção econômica, à semelhança da oferta de quaisquer mercadorias. Mas como não são teoricamente consistentes essas hipóteses, porque a terra é recursos natural não produzido pelo homem e sua propriedade privada caracteriza-se como monopólio de recurso natural, juridicamente regulado; a renda oriunda da posse ou propriedade é claramente uma arbitragem público-privada, de captura da renda social, sob regulação prévia do regime de propriedade.

É importante ter em conta, que ao longo do ciclo recente de expansão do preço da terra são reestruturados vários mecanismos de política públicas incidentes sobre a renda fundiária. A direção dessa incidência é distinta daquela que se dera no período anterior (anos 90), configurando assim, uma implícita estratégia público-privada para o mercado de terras.

Observe-se que para o mercado de terra, a década dos anos 90 terá sido estruturalmente distinta do período atual. Essa diferença, peculiarmente acentuada, reflete dois processos independentes, mas convergentes, para aquilo que diz respeito à determinação da renda fundiária: 1) a existenciado “boom” das “Commodities” nos anos 2000 e sua irrelevância no período anterior; 2) a distinta manipulação pelas políticas agrícolas, comercial e financeira dos instrumentos forjadores de “rendas extraordinárias”, literalmente eliminadas nos anos 90 e restauradas de outra forma nos anos 20000. Sobre esta segunda distinção, convêm aclarar o contraponto, acentuando a diferença em relação à década anterior (anos 90), de forte desvalorização do preço da terra:

“ A convergência dos efeitos da desmontagem da política agrícola convencional (anos 90), da abertura comercial e da estabilização monetária, enquanto regras estruturais de regulação econômica implicaram na eliminação das rendas extraordinárias, que por longo período movimentaram no chamado pacto da “modernização conservadora” o preço da terra protegido e institucionalmente valorizado no peculiar mercado de terras do Brasil. O processo recente de liberalização, desestatização e estabilização monetária trouxe reações em cadeia, convergente à desvalorização dos patrimônios fundiários”.
“O movimento social pela reforma agrária, por seu turno, alimentado pelas tensões inusitadas do desemprego, criadas pelo mesmo processo de globalização e liberalização realimentou este processo de desvalorização dos patrimônios fundiários ao pressionar e conseguir, mediante ocupação física, a desapropriação por interesse social de latifúndios improdutivos em todo o país. Na prática a ação do movimento social e sindical pela Reforma Agrária resgata o princípio jurídico da função social da propriedade, forçando a União a abandonar a inércia e omissão neste campo.80

O contraponto relativamente às condições de valorização fundiária no mercado de terras rurais é completo nos anos 2000, como bem revelam os dados confrontando-se aquilo que se observou – principalmente no período pós-real – 1994/99. Neste período se executaram praticamente todas as políticas negativas à captura das “rendas diferenciais” extraordinárias, oriundas da política agrícola e financeira.

Consultando-se dados dos “Planos Safra”81 só período 1999 a 2010, observa-se substancial elevação do crédito rural (ver especificamente seção 5); sucessivas recomposições da dívida agrária para com os Bancos; retorno paulatino da política de garantia de preços sob novas base82; taxa de cambio mais favorável no primeiro quinquênio e forte incremento das exportações, como já observado. Todas essas condições de política agrícola e comercial irão recompor as condições de geração da “renda diferencial” extra, que somadas ao “boom” do mercado de “commodities” explicam o novo ciclo do preço da terra.

Por seu turno, a política fundiária da década reflui para uma posição mais defensiva, da perspectiva dos movimentos sociais agrários, e ostensivamente pró-agronegócio, o ponto de vista do Executivo Federal.

O controle da “função social” da terra, previsto constitucionalmente, tornou-se cada vez mais frouxo, sob condições de refluxo do movimento social e ostensiva operação de terras públicas, de que nos dá conta mais recentemente a legalização desses processos mediante emissão sucessivas MPs, sendo a principal delas a MP 458/2008,83 que autoriza a entrega de 67,4 milhões de há. De terras públicas na Amazônia Legal a ocupantes e prováveis grileiros.

A não atualização dos índices de produtividade desde 1975, prevista na Lei Agrária que regulamenta os Arts. 184 a 186 da Constituição Federal (Função Social), muito embora sistematicamente prometida pelo Governo Lula, é possivelmente o sintoma mais evidente da frouxidão da política fundiária federal. Essa política passou a depender das estratégias parlamentares da Bancada ruralista no Congresso cuja articulação com várias iniciativas de captura de renda e riqueza fundiária são explícitas;

A todos esses eventos recentes somam-se agora as iniciativas de afrouxamento das regras florestais de controle das 'Áreas de Preservação Permanente' (mata ciliar e encostas de morro) e 'Reserva Legal”, ocasião em que as estratégias privadas dos ruralistas tem se revelado ostensivas, de apelo exclusivo ao direito privado e fortemente antagônico às regras de preservação ambiental dos espaços públicos.

Finalmente, uma palavra precisa ser dita sobre a gestão fundiária do território nacional. O Censo Agropecuário do IBGE 2006 identifica, compondo uma categoria de “Áreas com Outras Ocupações do Território” - uma imensa superfície territorial, provavelmente desregulada.

Cerca de 308,5 milhões de há. São assim definidos, ou seja, 36,2% do território nacional. Essa área, a margem dos conceitos de “estabelecimento rural” ou “imóvel rural”, respectivamente do IBGE e do INCRA, das “Áreas de Conservação” e das “Áreas Indígenas”, sob controle legal do IBAMA ou da FUNAI, e de outras áreas que o IBGE identifica (superfícies urbanas e zonas submersas) é, aparentemente “terra devoluta pública”, sem qualquer controle público, potencialmente zona privilegiada à grilagem de terras. Isto já era conhecido por ocasião do “Plano Nacional de reforma Agrária de 2003”84 em dimensões um pouco menores; mas agora virou informação oficial sobre o tamanho dessa grande lacuna de desregulação fundiária.

NOTAS

70 - Para uma análise das diferentes noções de agronegócio, compelxo agroindustrial, complexo rural referidas no texto e do seu emprego em distintos contextos teóricos e ideológicos ver Beatriz Heredia et alii (2010) “Sociedade e Economia do Agronegócio' – Um Estudo Exploratório”, disponível in www.campohoje.net.br

71 Para uma exposição fundamentada da teoria científica e da essência do trabalho técnico, no sentido aqui referido recorro ao pensamento de Martin Heidegger, especialmente aos ensaios 'Ciência e Pensamento de Sentido' e 'A Questão Técnica” in Martin Heidegger (2002) - “Ensaios e Conferências” op. cit.

72 A 'Balança de Pagamentos' tecnicamente acumula os saldos (positivos ou negativos) da conta Corrente e do Investimento Estrangeiro. Em caso de soma negativa desses fluxos em determinado ano, necessariamente caem as Reservas Internacionais do país em questão.

73 A formação de uma estratégia de capital financeiro na agricultura brasileira estrutura-se com a modernização técnica dos anos de 1970. Essa modernizção dissemina relações inter-industriais com a agricultura, mediadas pelo crédito rural subsidiado; este, por sua vez aprofunda também no período a valorização da propriedade fundiária com ou sem modernização técnica (ver Delgado, G. C., 1985).

74 O Plano Plurianual do governo (2000/2003), do II Governo FHC, elege os eixos territoriais de desenvolvimento como programa prioritário, naquilo que denominou “Brasil em Ação”, e que consiste num conjunto de compromissos de investimentos em obras rodoviárias e portuárias, tendo em vista a melhoria e ampliação da infra-estrutura territorial no Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Od investimentos efetivamente realizados foram de pouca monta, mas boa parte desses projetos será retomada no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC do II Gov. Lula.

75 As exportações físicas de carne bovina, carne de frango, soja, milho e açúcar crescerão aceleradamente no período 2000/2008, respectivamente às taxas médias anuais de 15,0 12.0 9.8 e 10,6% para os quatro primeiros produtos e acima de 15% para o binômio açúcar-alcool (cf. Delgado, guilherme (2008) op. cit

76 Para uma análise das transações externas da economia brasileira no período, ver Delgado, Guilherme (2009) “O Setor Primário e o Desequilíbrio Externo” - op. cit.

77 Sauer, Sérgio e Leite, Sérgio (2011) – op. cit., p. 26-28.

78 Gasques, José G. (2008). - “Preços da Terra no Brasil” - Rio Branco – Acre – ANAIS DO XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Economia Rural – SOBER – 2008.

79 Para uma análise de evolução recente dos preços de terras e arrendamentos rurais nos Estados Unidos da América ver Gasques et alii (2008) – op. cit., pp 11-14.

80 Cf. Delgado, G.C. E Flores J.F (1998) – op cit – p. 32-33.

81 Os “Planos Anuais de Safra” preparados todos os anos pelo Ministério da Agricultura em interação com o Ministério da Fazenda e anunciados no início do segundo semestre, contêm, no formato qu se mantêm há mais de 45 anos – a previsão anual do crédito a ser concedido e as respectivas condições de financiamento, os preços de garantia, as condições do seguro agrícola e demais inovações legais pertinentes ao calendário agrícola do ano safra que se está planejando.

82 A Política de Garantia de Preços mínimos (PGPM) nos governos Lula I e Lula II retomam a relevância aos instrumentos de comercialização agrícola, manejando principalmente os instrumentos de 'equalização de preços', inicialmente com baixa formação de estoques físicos. Mas já no final do II Governo, a formação dos estoques pela via das Aquisições do Governo Federal volta a ter destaque.

83 A Medida Provisória nº 458/2008 foi antecipada por várias iniciativas governamentais que gradativamente foram elevando as áreas máximas de terras públicas alienáveis, sob o critério de 'reconhecimento de posse': o art. 118 da Lei 11.196 elevou o limite para 550 hectares; a MP 422/2005 emitida em março daquele de 2008 permitiu o INCRA titular diretamente, sem licitação, propriedades na Amazônia Legal com até 15 módulos rurais ou 1500 hectares; e finalmente a MP 458/2008 – autoriza a União a licitar áreas excedentes às até então regularizáveis, ampliando o limite para 2500 hectares, dando preferência de compra aos seus ocupantes.

84 O documento “Plano Nacional de Reforma Agrária”, coordenado por Plínio de Arruda Sampaio, em 2003, identifica essa lacuna de terras não regularizadas, para o que contou com o inestimável trabalho de investigação do prof. Ariovaldo Umbelino e a colaboração indispensável dos funcionários do INCRA envolvidos na ocasião na preparação do Plano de Reforma agrária. Mas desde então essa informação circulou como um dado oficioso, de um documento semi-público que o governo Lula não adotou. O IBGE em 2006 oficializou essa informação, dando-nos conta da virtual desregulamentação de pouco mais de 1/3 do território nacional.

Fuente: MST - Brasil

Temas: Agronegocio

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