Quase 65% das áreas de preservação permanente do Semiárido foram desmatadas, mas há caminhos para recaatingar
O desmatamento das APPs causa, especialmente, o assoreamento de rios e riachos. Recaatingamento, nova forma de enxergar o valor do bioma em pé, é um dos caminhos para viabilizar o cultivo de alimentos, conservando o ecossistema.
Neste dia 5, celebra-se o Dia Mundial do Meio Ambiente. Na pauta do Semiárido, um dado merece atenção: 64,3% das Áreas de Preservação Permanente (APPs) estão ocupadas por atividades agropecuárias. A constatação é de um estudo realizado, em 2018, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em parceria com o Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan).
As APPs, em geral, estão localizadas ao longo de nascentes, de rios e riachos, topos de morro e encostas declivosas. Elas são amparadas pela lei 12.651/2012 porque uma das suas funções é proteger esses cursos hídricos. A retirada da vegetação nestas áreas causa desequilíbrio ambiental e pode levar à insegurança ou escassez hídrica. “São pontos em que é necessário ter vegetação para que a água caia, em forma de chuva, penetre no solo, evitando que este [ solo] cause assoreamento nesses corpos de água”, explica o professor da UFPE e vice- Coordenador do Observatório Nacional da Dinâmica da Água e do Carbono no Bioma Caatinga (OndaCBC), Rômulo Meneses.
O assoreamento foi o principal problema que afetou cerca de 350 famílias agricultoras, que vivem em seis comunidades às margens do rio dos Cochos, na área rural do município de Januária, no Semiárido mineiro. Na década de 70, grande parte da vegetação do Cerrado, situada às margens do rio, foi desmatada para dar lugar ao monocultivo de eucalipto e à produção de carvão.
Sem vegetação, o solo que fica no barranco cedeu e causou o assoreamento de vários trechos do rio. Há trechos em que o leito recebeu tanta areia que as pontes que ligavam uma margem a outra, ficaram enterradas. “O rio não é um rio que tem uma única nascente, são várias nascentes e elas foram todas assoreadas. Como o rio era a nossa principal estratégia de produção, a gente ficou numa situação delicada, tanto que a maioria das famílias migraram para outro lugar”, lamenta o agricultor, que mora às margens do rio, Jaci Borges.
De 350 famílias, 300 permaneceram na comunidade e se desafiaram a adotar novas práticas de produção. “Trabalhamos com o extrativismo sustentável de frutos do Cerrado e o principal é o pequi, mas tem o coquinho azedo, o maracujá do cerrado. A apicultura tem ajudado a garantir renda e preservar o meio ambiente”, complementa. A formação dos enxames depende da biodiversidade da flora, com isso, a produção de mel tem contribuído para que as famílias agricultoras entendam a importância do Cerrado em pé.
Na contramão
Em 2010, dez comunidades de fundo de pasto do Semiárido baiano adotaram o recaatingamento. Recaatingar significa trazer a Caatinga de volta, com a consciência de que o bioma de pé tem mais valor. A prática envolve algumas etapas. A formação, que trabalha com as famílias uma nova concepção sobre as riquezas do bioma. As técnicas de recuperação como a construção de planos de manejo sustentáveis. Nesta etapa é realizada a recuperação dos corpos de água, a partir das intervenções hidroambientais.
Um bom exemplo é a construção de Sistemas Agroflorestais nas matas ciliares, que permitem a infiltração da água no solo, evitando o assoreamento, o mesmo problema que afetou as famílias do rio dos Cochos. “O recaatingamento faz com que o ciclo da água na Caatinga continue, trazendo umidade, restituindo o microclima e levando segurança hídrica”, explica o coordenador Técnico do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), Luís Almeida.
No plano de segurança hídrica para o Semiárido, há cinco linhas de água. O recaatingamento contribui com a água que dá origem a todas as outras linhas, ou seja, a água do meio ambiente, que dá vida à Caatinga, que é a quinta água. A primeira, a água de consumo humano, vem da cisterna de 16 mil litros; a segunda, a água de produção, vem da cisterna de 52 mil litros; já a terceira, é de domínio da comunidade, pode vir de barreiros e, em geral, serve para matar a sede dos animais; a quarta é a água de emergência, acionada quando as demais fontes estão escassas. “Essa água é como uma ambulância e ninguém quer ter uma cidade só com ambulância para socorrer”, observa Luis. E a quinta linha é a água do meio ambiente, que já citamos aqui.
Após doze anos de experiência, as dez comunidades de fundo de pasto vivem dos benefícios da Caatinga de pé. Possuem mais qualidade, pois o recaatingamento contribui com o sequestro de carbono na atmosfera, geram renda, tirando o sustento do bioma, mas sem degradar o meio ambiente ou levar os recursos naturais à escassez.
Grandes obras
Em 2013, as vidas de 120 famílias do Assentamento de Reforma Agrária Marrecas, localizado no município de São João do Piauí, no semiárido piauiense, viram as suas vidas mudarem com o início da construção do Projeto de Irrigação Marrecas - Jenipapo. A obra desmatou 1.000 mil hectares da Caatinga local. A ideia inicial era garantir uma área irrigada de 1.000 hectares para 200 famílias. Desde 2016, as obras, custeadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estão paralisadas por falta de recursos.
Em vez dos benefícios prometidos, as famílias, hoje, convivem com o desequilíbrio ambiental. O geógrafo e morador do assentamento, Joaquim Vitor, pesquisou sobre o impacto da obra. Ele destaca que o desmatamento retirou a vegetação nativa das famílias, antes, extraída de forma controlada, para cozinhar alimentos, e para o preparo de medicamentos naturais. Animais típicos, a exemplo do Tatu peba, que costumavam ser vistos com frequência, praticamente desapareceram. As áreas desmatadas também sofreram grandes processos erosivos.
A pesquisa constatou que as obras também impactaram no clima e na ocorrência de chuvas. “Teve um aumento de temperatura muito grande nas áreas do assentamento. O índice de chuva vem caindo a cada ano”, explica João Vitor. Um trecho de 6km do rio Piauí, que é perene, corta o assentamento Marrecas. Por essa razão, as famílias dispõem de água para suprir as suas necessidades.
Ameaça
Segundo o estudo, há evidências de que se o projeto for concluído, permitirá que empresários agrícolas também cultivem nas áreas irrigadas. “É um retrocesso muito grande, pois as famílias assentadas produzem de forma agroecológica, já os empresários visam mais a produção capitalista, usando fertilizantes e agrotóxicos”, avalia. Parte da pesquisa realizou uma consulta às famílias. Questionadas se desejam que a obra seja concluída, 90% de um total de 40 famílias, responderam que “não veem o projeto como uma iniciativa que possa melhorar o assentamento”.
Ainda em São João do Piauí, outro assentamento de reforma agrária teve a sua rotina produtiva afetada pela chegada do Parque de Energia Fotovoltaica São João do Piauí. Instalado em uma área de fronteira com o Assentamento Lisboa, o Parque reduziu a área de pastagem dos animais, ao realizar o desmatamento para a instalação das torres e placas de geração de energia. A área desmatada, anteriormente, servia de pasto para a criação animal das famílias assentadas.
“Hoje em dia, capturar um enxame é muito difícil. As abelhas sumiram depois que a área foi desmatada”, se queixa a agricultora e assentada, Maria Lucimar. A produção de mel é uma das atividades que vinha contribuindo com a geração de renda para a comunidade, ao mesmo tempo em que contribui com a conservação ambiental.
Energia agro fotovoltaica
Garantir a produção agrícola, preservando o meio ambiente é viável. “Existe um caminho, que se você quiser definir em uma palavra, é agroecologia”, afirma o professor Rômulo. A agrofloresta, que é uma forma de produção alinhada com a agroecologia, é ideal para a região, pois combina o plantio de árvores com culturas agrícolas, criando um sistema rico. “A presença de árvores no Semiárido é fundamental para garantir serviços ecossistêmicos”, reforça.
Já é possível gerar energia renovável, sem desmatar o solo através dos Sistemas Agro Voltaicos. Nestes sistemas, as placas solares são instaladas em uma altura maior em relação ao solo, permitindo o cultivo agrícola na parte de baixo. “Você produz energia solar, mantendo o solo coberto, gerando renda e o melhor: beneficiando culturas com menor exposição solar. A energia gerada serve para movimentar as máquinas usadas no cultivo”, explica o professor.
Exemplo concreto
A agrofloresta foi a virada de chave na vida da família do agricultor Gean Magalhães, que vive no Sítio Xique-Xique, na comunidade quilombola de Queimada da Onça, no município de São Lourenço do Piauí. “Antes a área era uma capoeira, área bem degradada. Só tinha Malva de Vassoura, espécie de defesa, que indica que o solo já perdeu muitos nutrientes e não tem capacidade de dar vida às outras espécies”, relembra o agricultor.
Nessa época, as únicas fontes de água era um poço cacimbão, localizado há cerca de 1km das residências. Com a terra degradada e o difícil acesso à água, plantava-se apenas milho e feijão. Em 2006, a família conquistou uma cisterna de 16 mil litros e em 2012, a comunidade adquiriu um poço comunitário. As novas fontes hídricas não mudaram a realidade da comunidade. Em 2014, a família de Gean iniciou a construção do Sistema Agroflorestal Xique-Xique.
As ações foram divididas em etapas. A primeira etapa consistiu em criar barreiras de contenção do solo, que possui inclinação e recuperar a vegetação, introduzindo espécies que fixam a primeira camada do solo, a exemplo da palma e da babosa, garantindo a umidade. “O período de chuva no Semiárido é curto e a gente não pode perder. A água da chuva tem que ficar guardada na caixa d’água do solo ”, justifica Gean.
O segundo passo foi diversificar as espécies e avaliar quais as culturas mais resilientes. Após dois anos, conta Gean, a terra onde só tinha Malva, já tinha biomassa, ou seja, esterco e mais de 11 espécies de frutas, além de gliricídia, moringa, aroeira, jacarandá e caraibeira. A gliricídia tem, em sua folha, uma grande quantidade de nitrogênio na sua folha, o que acelera o processo de recomposição do solo. Ela também se decompõe rápido e no período chuvoso, aduba o solo”, explica.
“A nossa renda melhorou e renda não é só aquilo que se gasta, é o que a gente planta e consome aqui, que chega a uns R$ 2.500 por mês. A temperatura ficou mais amena, espécies de animais começaram a aparecer. Recebemos muitas visitas das escolas, que dão aula na área sobre a importância de preservar a Caatinga. É bom porque esses jovens vão assumir as áreas dos seus pais e já terão consciência ambiental”, conclui Gean.
E as políticas públicas?
Experiências como as de recaatingamento, no semiárido baiano, e do sistema agroflorestal, no Piauí, consistem em agroecossistemas resilientes ao clima, os chamados territórios sustentáveis. Com grande capacidade de estoque de sementes, água, forragem, esses territórios mitigam os efeitos de períodos de crises. Usando o seu conhecimento e dispondo de infraestrutura garantida pela parceria com as organizações da sociedade civil, as famílias exercem autonomia nestes territórios.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa lançada pela ASA, o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura Familiar (FAO) e a Fiocruz Brasília com 1.800 famílias beneficiárias do Programa Uma Terra e Duas Água (P1+2) constatou que, mesmo durante a pandemia, elas dispuseram de sementes suficientes para manter os seus cultivos. Uma evidência de que a estocagem de sementes, de forma comunitária e agroecológica, oferece capacidade de resposta às crises.
Em vez de ações emergenciais de transferência de renda que, quase sempre são insuficientes e levam as famílias a escolher entre comprar alimentos e pagar as contas, os agroecossistemas resilientes oferecem capacidade de resposta com autonomia às famílias do campo. Por isso, vale um olhar atento às estratégias, que dão vida aos territórios sustentáveis. “Quando eu tenho crises como a pandemia, estiagens severas eu preciso ter estoque e estratégia, pois famílias que possuem estoque estão em situação mais vantajosa do que as que não têm”, explica o coordenador do Projeto Daki Semiárido Vivo, Antonio Barbosa.
A Articulação Semiárido Brasileiro, ao longo dos seus 22 anos de atuação, prova que essas soluções para a convivência com Semiárido, que garantem a autonomia às famílias, podem transformar a vida na região. “É uma prática da ASA sistematizar o conhecimento gerado pela comunidade, testar, ampliar a escala e propor como políticas públicas. Agora, o poder de decisão tem que ser da comunidade. Essa é a lógica da adaptação, os recursos vêm de fora, mas o poder de decisão é das famílias”, conclui Antônio Barbosa.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos