Produtos agrícolas transgênicos: padrão internacional que se repete no Brasil
A discussão sobre os produtos agrícolas transgênicos (especialmente a soja Roundup Ready ou soja RR), levada a efeito até agora pela mídia, com algumas exceções tem deixado de lado tópicos que avaliamos serem da maior importância para o Brasil. O objetivo principal deste artigo é trazer algumas dessas questões para a discussão, reconhecidamente mais ampla, para servir à elaboração de uma política agrícola de longo prazo
A presença da soja RR em várias partes do Brasil mostra o descaso com que o problema tem sido tratado pelo governo e pela empresa detentora da patente desse cultivar, a empresa Monsanto. O comportamento desta última surpreende quando o comparamos com a política fortemente fiscalizadora que exerce junto aos agricultores, nos Estados Unidos. A estratégia, ao que parece, é a de permitir que o plantio da soja RR se alastre de tal forma a tornar praticamente impossível a fiscalização e proibição do seu cultivo daqui a algum tempo. O plantio ilegal da soja RR e a liberação da sua comercialização pelo governo brasileiro, mesmo contra decisão do Judiciário, não são, entretanto, acontecimentos isolados, como pode a muitos parecer. Há um padrão internacional que se repete por aqui. Na Indonésia, o decreto que liberou o algodão geneticamente modificado (GM) desrespeitou a Lei de Meio Ambiente, que exige estudos prévios de impacto ambiental. Na Tailândia, houve desrespeito à Lei de Quarentena de Plantas, que exige testes com a cultura antes da sua liberação no campo. O Instituto de Agricultura Comercial da Colômbia aprovou a liberação “semicomercial” (o que quer que isso signifique) do algodão Bt, em 2002, sem uma avaliação adequada de biossegurança exigida por lei. A empresa Monsanto foi implicada pelo descobrimento de sementes de milho Roundup Ready ilegais na Argentina, que decidiu destruir as mesmas e abrir investigação para apurar responsabilidades pela sua distribuição. Aquela empresa confessou, perante o Senado australiano, ter plantado variedades de algodão não aprovadas pelo governo daquele país. Uma outra estratégia de disseminação usada pelos produtores de transgênicos tem sido a de incluí-los na ajuda alimentar aos países pobres, mesmo quando estes os proíbem. A descoberta desse fato levou alguns desses países a recusar tais ajudas, sob forte crítica dos países doadores, que querem nos fazer crer na falsa dicotomia “comer transgênicos ou morrer”. É como se não houvesse outras saídas para o problema, como, por exemplo, a redução das barreiras às importações de produtos dos países pobres, principalmente pela União Européia e Estados Unidos. Ao invés disso, os países produtores de transgênicos insistem em pressionar as nações pobres a aceitarem seus produtos, sob ameaça de recorrerem à Organização Mundial de Comércio (OMC). Assim, a Argentina ameaçou a Bolívia, os Estados Unidos ameaçaram os países africanos e também outros países que, de uma forma ou de outra, impuseram restrições aos transgênicos, como a Croácia, a União Européia e mais recentemente o Brasil, ameaçado de cobrança de royalties, pela Monsanto, pelo plantio ilegal da soja transgênica. Biofarmacultura – A biofarmacultura diz respeito à produção de medicamentos, tais como contraceptivos, hormônios de crescimento e vacinas, via plantas geneticamente modificadas. Já existem mais de 400 “biofármacos” (na sua maioria mantidos em segredo como informação confidencial de negócio) e mais de 300 experimentos em campo, conduzidos em lugares não-identificados em todos os Estados Unidos. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) descobriu que a empresa ProdiGene Inc. colocou em risco a produção de milho e soja da cadeia alimentar nos Estados de Iowa e Nebraska, por manejar incorretamente seu milho “farmaciado”. As empresas Pioneer-HiBred e Dow AgroScience também foram multadas por irregularidades na condução de suas culturas “farmaciadas”. Os editores da revista Nature Biotechnology, em seu editorial Going with the flow (v.20, n.6, junho de 2002) advertiram: “As atuais estratégias para conter genes não podem funcionar com confiança no campo. É razoável esperar que os agricultores ‘limpem’ meticulosamente seus equipamentos o suficiente para remover toda semente GM?”. Ainda mais preocupantes são as palavras do Prêmio Nobel George Wald (The Sciences, setembro/outubro de 1976): “O ponto importante dessa nova tecnologia é o de mover genes de um lado para o outro, não somente entre espécies, mas entre quaisquer fronteiras que agora dividem os organismos vivos. Os resultados serão essencialmente novos organismos, autoperpetuantes e, daí, permanentes. Uma vez criados, eles não podem ser recolhidos de volta”. Dadas as evidências sobre a gravidade do problema, será que ainda há quem tenha coragem de declarar na imprensa que o Brasil nunca se preparou tanto para adotar uma tecnologia como a dos transgênicos? Resistência – Como era de se esperar, ervas daninhas estão mostrando resistência ao glifosato, herbicida usado intensa e continuadamente na produção da soja e de outras culturas RR nos Estados Unidos. Duas ervas daninhas se mostram resistentes em vários Estados: a buva do Canadá (Conyza canadensis) e a waterhemp (Amaranthus rudis), semelhante à nossa caruru. Alguns agricultores estão tentando voltar para a soja convencional como forma de tentar contornar o problema, mas não estão encontrando sementes. Evolução de resistência às proteínas inseticidas produzidas pelas plantas que contêm o gene Bt (da bactéria Bacillus thurigiensis), embora ainda não identificada, nos Estados Unidos, é também motivo de grande preocupação dos pesquisadores. Prova disso é a existência de uma verdadeira força-tarefa em torno do programa de manejo de resistência de insetos no algodão Bt, da qual participam entomologistas das universidades, de unidades do USDA e da indústria privada, assim como produtores e consultores da iniciativa privada. Uma das características do programa é a manutenção obrigatória dos chamados “refúgios” pelos produtores, que são áreas cultivadas com algodão convencional junto às áreas de algodão Bt.
Um manejo de resistência de insetos mal conduzido pode levar a resultados altamente insatisfatórios para a cultura, como ocorreu na Índia. Não estaríamos, ao adotar culturas tolerantes a herbicidas e resistentes a insetos, dentre outros, correndo o risco de desenvolver mais rapidamente resistência nas daninhas e nos insetos que mais afetam as nossas colheitas, sem, contudo, possuirmos um “plano b” de ação? A soja RR, segundo o USDA, não teve impacto significativo sobre os retornos líquidos das propriedades. A modificação genética da soja acabou reduzindo (e não aumentando) a produção por hectare comparativamente à soja convencional. Assim, na decisão de plantá-la, os agricultores norte-americanos devem levar em conta uma queda de 5% a 10% na produtividade da cultura. O impacto do milho Bt sobre o retorno líquido das propriedades especializadas em milho foi negativo, ou seja, o valor da proteção contra a broca do milho foi menor do que o prêmio da semente Bt, o que pode explicar a redução na área plantada com essa cultura GM, de 25%, em 1999, para 19% da área total, em 2001. A adoção do algodão Bt teve impacto positivo no retorno líquido das propriedades norte-americanas (37% da área total de algodão), em 2001. Resultados semelhantes foram obtidos na África do Sul. Já na Índia, os resultados do algodão Bt não foram animadores, tendo os custos com agrotóxicos caído muito menos do que o aumento ocorrido no custo da semente, por acre, quando comparado com as melhores variedades não-Bt. O mesmo pode-se dizer do Brasil, onde a maioria dos retornos econômicos resultantes de estudo de simulação com o algodão Bollgard (ver http://cepea.esalq.usp.br), da Monsanto, torna-se negativa quando se considera o mesmo diferencial de preço de semente cobrado nos Estados Unidos em relação ao algodão convencional. Os retornos econômicos de todos os produtos Bt (milho e algodão) tornam-se ainda menores do que os reportados pelos estudos revistos se forem levados em conta todos os custos de manejo da resistência de insetos via implementação e monitoramento dos refúgios hoje obrigatórios em alguns países. Demanda por transgênicos – Uma pesquisa realizada pelo Ibope, divulgada em dezembro de 2002, mostrou que 71% dos brasileiros entrevistados, se pudessem escolher, prefeririam consumir alimentos que não contivessem organismos geneticamente modificados (OGMs). Além disso, 92% são a favor da rotulagem dos produtos informando os consumidores sobre a presença de OGMs nos alimentos. O mesmo pode ser dito dos consumidores externos da nossa soja, pois, com praticamente 100% das exportações compostas de soja convencional, o Brasil está competindo com os países exportadores de soja GM há sete anos e vem aumentando suas exportações. Além disso, os consumidores da União Européia ganharam adeptos nos últimos anos de países como Japão, Nova Zelândia, Austrália, Bolívia e Zâmbia, entre outros. Mesmo nos Estados Unidos, manifestações de consumidores adquiriram força nos últimos anos a ponto de o congressista Dennis J. Kucinih propor, em 2002, cinco projetos de lei que pretendiam, entre outras coisas, a rotulação dos alimentos que contivessem OGMs, melhor supervisão e testes dos alimentos GM por parte do Food and Drug Administration (FDA), maior proteção dos agricultores e pecuaristas em relação às poderosas companhias de biotecnologia e o restabelecimento do direito tradicional de os agricultores plantarem suas próprias sementes. Outra evidência dessa mudança foi a votação, no Estado de Oregon, sobre a rotulagem de produtos geneticamente modificados, em 2002. Os US$ 5,5 milhões gastos pelas grandes corporações, em propaganda contra a rotulagem, acabaram vencendo os US$ 200 mil dos consumidores usados em propaganda a favor da rotulagem. Também os agricultores norte-americanos se mostram conscientes do que estão perdendo pelo fato de o país continuar insistindo nesses produtos. Prova disso é o movimento recente levado a efeito pelos produtores de trigo contra a liberação de trigo GM pelo governo. A rejeição aos transgênicos tem sido apontada como a força propulsora da entrada das chamadas “culturas especiais” e produtos agrícolas de maior valor agregado nos Estados do Cinturão do Milho, tendo Illinois à frente dos demais. A busca por milho para alimentação humana, soja orgânica, carne bovina ou suína, produzidas com combinação de práticas “naturais” de produção, revela uma mudança de comportamento na direção oposta à dos transgênicos. As regulações de rotulagem e rastreabilidade dos alimentos humanos e animais pela União Européia, conforme anúncio recente na imprensa, certamente aumentarão os custos para os países produtores de GMs, que podem chegar, segundo estimativas, a até US$ 4 bilhões para os Estados Unidos. Por que essas mudanças de direção tão importantes para o nosso país também estão sendo ignoradas nas discussões? Estratégia global – Conscientes de que a discussão sobre produdos agrícolas geneticamente modificados é reconhecidamente mais ampla, os poucos tópicos aqui tratados, ainda que de maneira incompleta, nos permitem concluir que há evidência suficiente na literatura mostrando o perigo que os produtos geneticamente modificados representam ao ambiente e à saúde. As grandes corporações produtoras de transgênicos, com o apoio dos governos e dos organismos mundiais, querem impor (e estão conseguindo) aos diversos países, inclusive os de origem, uma tecnologia agrícola no mínimo temerária. Sementes transgênicas surgem no mercado e são plantadas por agricultores que, embora transgressores da lei, não são punidos. O processo continua até que a disseminação seja tal que se torne até ridículo o país se declarar “livre de OGMs”. Se bem-sucedidas, essas corporações aumentarão ainda mais o controle sobre a produção alimentar mundial, o que claramente constitui uma ameaça à segurança alimentar dos países, inclusive o nosso. Assim como a falsa dicotomia “comer transgênicos ou morrer”, usada para criticar a rejeição dos países africanos aos produtos GM, também os produtores de transgênicos querem nos fazer crer que os demais países têm duas escolhas somente: “produzir transgênicos ou regredir”. Uma política contrária a esses interesses, entretanto, tem de ser clara, não deixando brechas para que a estratégia de “criar o fato consumado” possa progredir. De nada adianta proibir o cultivo dos transgênicos, como fazemos, e ao mesmo tempo permitir que eles sejam importados sem necessidade, como ocorreu recentemente com o milho transgênico da Argentina, em Pernambuco. Também não faz sentido proibir o plantio e ao mesmo tempo permitir que se comercialize a produção de transgênicos, como sucede com a soja. Assim agindo, estamos no caminho certo para, em pouco tempo, nos tornarmos apenas mais um caso de sucesso no uso dessa estratégia por parte das corporações produtoras. Fuente: Jornal da USP, Brasil |