Povos Indígenas do Cerrado: cultivando r-existências diversas
No sétimo artigo da série “Os saberes dos Povos do Cerrado e a biodiversidade”, vamos conhecer um pouco mais os povos indígenas, herdeiros de saberes ancestrais que, ao longo de milênios, manejaram e multiplicaram a biodiversidade do Cerrado. Esses caminhantes de chapadas e rios, guardiões de sementes, são cuidadores de roças diversas, caçadores, pescadores e guerreiros. Combinam técnica e exímio manejo do mundo da natureza que convivem e onde vivem, praticando o agroextrativismo de frutas nativas e plantas medicinais, bem como outros tantos elementos que conjugam na feitura de artesanatos.
Muitos dos saberes que os diversos povos e comunidades tradicionais praticam na convivência com o Cerrado – como os artesanatos de capim dourado e palha de buriti, os múltiplos usos do coco-babaçu e a agricultura de cheia e vazante dos rios – foram desenvolvidos e adaptados ao longo do tempo pelos indígenas. Os povos indígenas que habitam o Cerrado são resistentes e lutam para permanecer em seus territórios há séculos.
Em um tempo mais recente, da passagem do século XIX ao XX, e de forma mais sistemática desde os anos 1930 e 1940, os povos indígenas das diversas paisagens do Cerrado vêm seguindo suas longas rotas de trânsito e constituição territorial para sobreviver diante da violenta expansão dos cercamentos das terras férteis e águas abundantes que habitavam e ajudaram a construir. Esse é o caso das terras pretas no Mato Grosso, no Maranhão e em tantas outras áreas dessa imensa região, tida como o epicentro do agronegócio do Brasil, mas, que, na verdade, é o coração pulsante de tantas culturas indígenas. Muitas áreas, que se transformaram nos latifúndios do Centro-Sul do país e do chamado Matopiba, se interpuseram e deslocaram tantos povos indígenas, aproveitando-se da biodiversidade e da riqueza da terra que eles ajudaram a fecundar.
Transformando-se muitas vezes em povos sem terra, deixando a terra sem povos, em razão das expulsões e deslocamentos contínuos, os povos indígenas do Cerrado lutam para r-existir. Lutam pela reprodução de seus modos de vida frente às ameaças constantes de destruição das terras, das águas, das matas, dos bichos, de suas culturas e de seus lugares sagrados. Lutam para assegurar e retomar seus territórios de vida e de direito, afirmando que existem e continuarão existindo como povos.
Territorialidades e modos de vida cercados pela fronteira permanente
Na toada do maracá, o tempo de habitar e viver não tem tempo marcado para acontecer. Acontece ao longo dos séculos, de um lugar a outro, embalado na relação entre os parentes Jê e Tupi[1], no caminho à margem do rio, nas veredas vazadas em tempo de verão, levando a campos e sertões, envolvidos por serras e chapadas. Caminhos que se construíram em estradas de árvores plantadas ou deixadas a crescer, sombreando e marcando o trânsito para as roças, enquanto outras foram transformadas em toco, cuidadosamente queimadas para dar força às raízes, palmeiras, frutos e arbustos para ser alimento, moradia, ritual.
São elementos essenciais para a autonomia e soberania indígena. Impressas no ritmo dos tempos estudados e praticados na troca de povo com povo – e na briga entre povos, embora em aliança com a construção da paisagem. Ensinados e aprendidos de família a família; de geração a geração. Parentesco ativo e vocacionado nos encontros e assembleias: “Boa noite, parenta e parente (…) Resistimos e Existimos, parentas!” O chamado dos povos tem afeto e compromisso de proteção no presente com o que esteve no passado. História permanecendo no agora para ser futuro soberano e coletivo por meio de luta.
No toque e na pisada da resistência para permanecer na terra, povos indígenas que vivem e cultivam a diversidade do Cerrado mostram que os anos de existência por esse território são práticas ativas de cultivo e cuidado com a paisagem. São muitos anos de ciência do território que contribuem para que o Cerrado, ou melhor dizendo os cerrados, existam e se construam em paisagens diversas. Por isso mesmo, é difícil confinar os fazeres e os saberes dos povos indígenas e seus territórios de existência a pequenos espaços, muitas vezes, ainda nem demarcados, já que nem 40% das Terras Indígenas (TIs) autodeterminadas no Cerrado são sequer declaradas pelo poder público. Ou ainda, quando o são, encontram-se encurraladas por atividades econômicas que impedem as possibilidades diversas de existência nessas terras tradicionalmente ocupadas[2].
Em tempos de marco temporal[3] criado e negociado por setores do hidro-agro-minero-negócio, a brutalidade para limitar ou integrar os territórios de vidas indígenas a circuitos de produção e escoamento segue ocorrendo, como sempre foi no Cerrado desde o século XVIII. Como chama atenção Célia Xakriabá, os avanços econômicos são de “monoculturação” do território, do corpo e do espírito, adoecendo os povos e impedindo sua diversidade de viver, o que compromete a sobrevivência do e no Cerrado. “Somos raízes, mas, principalmente somos sementes”, diz Célia. O impedimento para que a sobrevivência consorciada ao ‘sementear’ dos povos indígenas no Cerrado seja exercitada compromete planos de vida, impedindo que este continue a ser sociobiodiverso.
Tocando e entoando a sociobiodiversidade do Cerrado, Elza Xerente denuncia o apagamento das pluralidades do existir do seu e de outros povos do Brasil Central, falando forte, ao chacoalhar o espírito: “estão matando o povo, o rio, os bichos; está tudo secando (…) estão matando a gente”. Essa morte matada se repete em episódios de genocídio contínuos[4], como os esbulhos e usurpações dos territórios indígenas no Brasil Central, que aceleraram no século XVIII com a colonização e as chamadas entradas[5] pela grande bacia hidrográfica integrada que compõe os rios Araguaia e Tocantins. Estas entradas seguiram o ciclo de interiorização da colonização pelo Brasil Central, primeiro pelo rio Araguaia, navegando pelos rios até onde possível, depois adentrando suas espraiadas várzeas a pé, utilizando as estradas de varadouro e as picadas de terra firme dos indígenas e os encontrando quando ali faziam morada num território de muitos trânsitos e, portanto, mais extensivo e não delimitado como são as Terras Indígenas atualmente. O processo de colonização fez aldeamentos e estimulou guerras entre povos rivais, impondo-se aos arranjos diplomáticos já existentes entre esses povos para se espalharem, ocuparem e se relacionarem com e nas várias paisagens do Cerrado a fim de continuar convivendo. As trocas de sementes, que envolvem troca de fazeres da lida com a terra e as águas, de utensílios e a construção de extensas redes de parentesco marcando a dominialidade vivida dessas paisagens, constituindo-as, foi e ainda é, em menor escala, marca do processo de convivência intercultural no Cerrado.
Nessa imensa região ecológica que domina o Brasil Central, também predominam o tronco linguístico Macro Jê e os muitos povos indígenas que se relacionam e se diferenciam pelo manejo desse tronco tão ligado aos conhecimentos da terra e às palavras-verbo que denotam a relação com ela. A colonização acabou trazendo possibilidades de aliança com os povos do tronco Tupi-Guarani, que é o outro grande grupo linguístico presente nos cerrados e campos do Centro Sul do país, dentre os quais podemos citar os povos Guarani e Kaiowá, Guarani Nhandeva, Kaiabi e Apiaká, e Parakanã.
O povo Xerente de Elza, autodenominado Ak’we, faz parte da grande família Jê Central, parentes próximos dos Xakriabá, povo de Célia, que habita a conexão entre o Cerrado e a Caatinga, e os Xavante, muito presentes no Nordeste do estado do Mato Grosso, onde se desenha a transição com a Amazônia.
As histórias de resistência e permanência dos povos Jê e Tupi-Guarani no Brasil Central têm uma relação muito forte com as frentes de expansão e como os “brancos” – a Coroa Portuguesa, a República e o Estado ditatorial ou democrático de direito e o capital transnacional – foram transformando esse espaço em sua zona de exploração, gerando espoliação e intensa acumulação, à medida que – e necessariamente porquê – desumanizavam esses povos, desqualificando seus modos de existir. A ‘fronteira’ agrícola expandiu ao passo que dividiu povos, terras e tentou forçosamente descontinuar paisagens onde as relações se davam, zoneando-as na expansão econômica e física com base em racismo e colonialidade.
Fronteira se expandindo e se reinventando: o persistente racismo ambiental
De outra forma, mas, sob as mesmas bases, a fronteira se reinventa e continua secando rios e matando povos, como nos conta Celia Xakriabá: “Nós precisamos é queimar o racismo, nós precisamos é queimar o fascismo porque isso, sim, é a fronteira. A fronteira não é exatamente do Cerrado para outros biomas. A fronteira é o racismo ambiental, a fronteira é o racismo que continua amputando, arrancando nossos corpos. A fronteira é aquela que diz que os povos indígenas estão se tornando mais humanos, mas, só sabe ser humano quem sabe ser bicho, quem sabe ser semente, quem sabe ser Cerrado.”
Essa fronteira, que seca a vida e afeta os povos, limita os Xerente desde que foram contactados nos anos 1940, uma década de intensa colonização do Cerrado, quando o Sistema de Proteção ao Índio (SPI) era o órgão do Estado brasileiro responsável por ‘integrar’ os indígenas. O objetivo era ‘marchar’ numa grande expedição rumo ao oeste do Brasil, levando ‘progresso’ e estrutura para as antigas sesmarias serem novos latifúndios agroexportadores, e liberando áreas para planejar a modernização agrícola aliada ao ‘povoamento’ do país. Desde essa época, a terra nunca mais foi a mesma para os Ak’we Xerente que já povoavam intensamente a margem direita do rio Tocantins.
Até os anos 1980, eles sofreram com a dizimação do povo por causa de epidemias de gripe. As terras e os rios começam a ‘secar’ mais intensamente, como aponta Elza, muito por causa do que foram fazendo ao Cerrado. Em 1972, é decretada a “Área Grande” dos Xerente, pelo Estado brasileiro, embora bastante degradada. Contudo, quando em 1988, o Norte do estado do Goiás se transforma em estado do Tocantins, muitos municípios vão se formando ao redor do território Xerente, cortando a área grande, já muito prejudicada, e pressionando seus modos de vida, especialmente pela construção de estradas para integrar os novos municípios, e suas produções, à capital, Palmas. As estradas passaram a cortar a Terra Indígena e a produzir imensos problemas para as comunidades que, em 1992, tiveram outra área demarcada e reconhecida, a Terra Indígena Funil, sem ser em contiguidade à antiga área, embora fosse próxima.
Em 1999, o rio e o território, já cortados pelo município de Tocantínia e pela estrada TO-010, começam a secar e a comprometer os modos de vida indígenas ainda mais. Neste ano, é aprovada a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Lajeado, parte do programa Avança Brasil do Governo Federal de integração de eixos e pólos de desenvolvimento regional no país. Como disse Elza, parecia que a UHE está “saindo fora e não está no território indígena” que, por isso, não seria afetado, mas, ainda que diferente das estradas que cortam o território, a UHE compromete a água que, por sua vez, compromete os peixes, o solo, as vazões. Tudo interligado e bloqueado pelo bloqueio do fluxo do rio que se soma ao aumento de atividades externas do fluxo da estrada, que teve a pressão aumentada pelo asfaltamento depois da hidrelétrica. Elza nos fala da TO-010 que corta a TI: “esses projetos todos são que nem o Lajeado, que acabou com a vida dos Xerente”, e acrescenta: “projetos estão acabando com Cerrado, acabando com a vida, os rios estão morrendo e pedindo socorro para defender. (…) Os povos indígenas sentem quando está triste e silencioso. Conversam com o rio, com a floresta, com o Cerrado.”
Inaugurada em 2005, A UHE Lajeado[6] alterou profundamente os modos de vida Xerente, multiplicando o número de aldeias para a recepção do Programa de Compensação Ambiental Xerente (PROCAMBIX), aumentando o fluxo e quantidade de moradores em municípios vizinhos e, especialmente, a invasão das terras por grileiros em resposta à especulação fundiária na região, também estimulada pela construção de estradas. Com o início do projeto da Hidrovia Tocantins-Araguaia, há a previsão da construção de um canal a apenas 12 km da TI Xerente, para o transporte de grãos e minérios, o que vai levar ainda mais secura e perturbação da vazão do rio às comunidades.
“Nós trabalha não é para mandar para fora, não. Nós quer é trabalhar para sobreviver”, destaca Elza Xerente, marcando que o povo não quer asfalto porque sabe que não tem benefício para eles. Elza diz que o que os povos indígenas querem é a terra e o rio, querem o território, para trabalhar e seguir vivendo. Elza ainda insiste que “tem que respeitar ribeirinho que não é indígena, os acampamentos” porque o “trabalho é para se alimentar, não é para transportar para outro país, não. Nós trabalha para sustentar a família. Não é para passar dos limites. Se a gente tira um pedaço aqui é para sustentar a família.” Por isso, defender o território é tão importante, porque se trata da defesa da vida indígena. Com firmeza, Elza nos reforça que os povos indígenas “nunca tiraram os direitos dos seres humanos. Não somos invasores. Somos donos do Brasil e até hoje defendemos a natureza. Nossos antepassados não nos ensinaram a tirar pedaço através do dinheiro.”
“Monoculturação” da terra e da vida: colonialidade persistente
O esforço por tornar os indígenas do Cerrado mais ‘produtivos’ e integrados, ou, simplesmente, “mais humanos”, como aponta Célia Xakriabá, faz parte do apagamento de seus modos de vida pelo processo de acumulação capitalista de suas terras. Isso remete muito ao que seja uma ideia de agricultura conservadora, do agronegócio, com base em eficiência e produtivismo, necessitando de grandes extensões para o cultivo de poucas espécies. A “monoculturação” da terra e da vida, de que nos fala Célia, precisou, assim, da fronteira e do apagamento dos modos de vida e da desqualificação da diversidade produtiva e alimentar dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul.
Classificados como caçadores e coletores e, como tal, inferiorizados como sociedades menos desenvolvidas nos estudos antropológicos colonialistas do século XIX, esses povos tiveram sua colonização assim justificada. Fazendo questão de ignorar que o hábito de habitar lugares, nem sempre de forma fixa, estava conectado a uma seleção de sementes e frutos, de caças sazonais ligadas a esses cultivos e suas coletas, que levaram ao cultivo de jardins, hortas e quintais móveis e aprimorados no território estendido que hoje conhecemos como Brasil Central, essa colonização classificou e hierarquizou a caça-coleta como atividade menor, e não agrícola. E não se trata apenas do período colonial português, mas da colonização e colonialidade persistentes em processos como a Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas e, mais tarde, a modernização conservadora da Ditadura Empresarial-Militar. Assim, abriram-se literalmente as porteiras para instalar empreendimentos monoculturais, apagando práticas de reprodução social sofisticadas, embora simples. Não há coleta e caça indefinida, sem planejamento.
A mobilidade e as migrações pelo grande território central da América do Sul implicaram em uma seleção delicada do que se comia, do como se tirava, do que se plantava e se manejava, bem como implicaram na seleção das moradas que se estabeleciam extensivamente desde esse processo e, não, o contrário. Assim, ser caçadores e coletores levou os Xerente, os Xavante, os Xakriabá, os Apinajé ou os Guarani e Kaiowá a manejar estas práticas como seus instrumentos de vida, sendo muito mais atos de fazer o território extensivamente para bem viver com ele, do que dominar, delimitar e explorar o território para mais valer dele, como faz o agronegócio.
O território se cultiva. O silêncio que se percebe quando se conversa com o Cerrado, como diz Elza Xerente, é o silêncio que mostra como sua vida está ameaçada. “A natureza tem vida que nem o ser humano e pede para nós defender. Se acabar com os frutos do Cerrado, como vamos nos alimentar? Vamos passar fome. Todo mundo tem o direito de viver. (…) Essa pulverização aérea está acabando com a vida dos povos indígenas.”
Como a vida dos Xerente, a vida dos Guarani e Kaiowá tem sido muito atacada pela expansão do agronegócio da soja, da pecuária, da cana e do milho sobre suas terras no Mato Grosso do Sul. Desde que as terras do grande e extenso povo Guarani começam a ser apropriadas ostensivamente na Guerra do Paraguai, os vários monocultivos que se espalham, tentando monoculturar suas terras, expandem-se de forma muito violenta. Começando pela companhia Matte Laranjeira até a hidrelétrica de Itaipu, o território compreendendo hoje o oeste paranaense, boa parte do Mato Grosso do Sul e áreas do Gran Chaco boliviano e paraguaio, vem sendo espoliado e apropriado. A inferiorização da agricultura indígena, levando à inferiorização dos povos, foi fundamental para que esse processo ocorresse. A fronteira abriu e dividiu, criando zonas de sacrifício, neste caso, indígena, constituindo um genocídio continuado, como tem argumentado o jurista e advogado indígena, Luiz Eloy Terena.
No estado do Mato Grosso do Sul, que é o quarto do país em comercialização de agrotóxicos por área plantada, não podemos deixar de destacar a relação deste fato com o genocídio continuado dos povos Guarani e Kaiowá, Guarani Nhandeva e Terena. O uso de agrotóxicos e a pulverização aérea sobre as Terras Indígenas matam a terra que os povos no Mato Grosso do Sul lutam para retomar e continuar habitando, cercando os rios e, ainda pior, contaminando e secando as águas nos poucos acessos existentes. Tudo isso para manter a produção para exportação de commodities como soja, pellet e pranchas de eucalipto, milho, e cana de açúcar para a produção de etanol. As estradas que cortam as áreas de retomadas e as poucas TIs demarcadas e homologadas também não são para transportar nada para ou dos indígenas, a não ser o que causa suas dores e doenças.
A jovem liderança Eryleide Kaiowá, da aldeia Guyraroká, uma área de retomada perto de uma fazenda de cana e gado, sustenta que seguem aprendendo com os mais velhos a cuidar da terra. “Hoje estou aqui nessa caminhada, jovem com uma experiência nova, com meu vô de 101 anos de idade. Não é muito fácil, mas estamos nessa caminhada. (…) E hoje nós estamos com a precariedade, de maior dificuldade ainda podermos recorrer a defender os nossos direitos, que sempre veio sendo violado, mas, a nossa luta vai continuar. Venha o que vier, nós vamos insistir, existir e resistir porque a gente tem um alvo a ser alcançado. Como jovens, nós estamos como guardiãs, junto com os ancestrais, com os mais velhos, aprendendo as questões de como cultivar a terra depois de tudo que já aconteceu com a terra. Nós temos que saber lidar com a terra doente, de que forma nós vamos fazer ela voltar a ser pura, uma terra saudável. (…) Mas, nós estamos aqui no meio de tanta coisa acontecendo, não paramos de fazer essa produção. Agora com o tempo de frio nós preparamos a terra, para quando chegar a época de plantio que seguimos de setembro, outubro em diante, onde a terra já está preparada para poder replantar novamente.”
Eryleide nos diz que os desafios são grandes, porém, afirma que, como indígenas, não vão deixar de levar adiante o que já veio de muito tempo, passando de geração em geração. Segundo a jovem mulher indígena, a terra é tudo, e “sem terra, nós não temos vida. Sem terra não temos saúde e liberdade, e sem território, nós não temos paz e a tranquilidade. Nós não temos a nossa liberdade, nós, indígenas, de viver como o modo de ser indígena. Porque muitos dos não-indígenas, eles acham que nós não somos humanos. Nós somos humanos como seja lá o que eles pensam, e lutamos pela vida do planeta, por cada criatura.”
Marco temporal: guerra jurídica em torno do tempo
A paz e a segurança é ter a terra e cuidar da terra. Esta paz está sendo perseguida nas retomadas, como é o caso da aldeia Guyraoká, onde vive Eryleide, que está na terra indígena de mesmo nome. A TI foi declarada, mas, ainda não é demarcada, e desde 2009 vive um processo de judicialização no Supremo Tribunal Federal, com julgamentos desde 2019 conectando a demarcação à discussão do marco temporal. A dita tese alega que ocupações indígenas só poderiam ser consideradas se ocorridas até outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Como essa ocupação tradicional poderia ocorrer, de fato, em um contexto de constante avanço da fronteira que desumaniza, expulsa e divide o povo entre estados e países diferentes? Ou da fronteira na forma de cerca, que separa uma propriedade grilada – tomada e registrada ilegalmente – da terra de povos deslocados por cercas de outrora, muito antes de 1988?
Esta é a história de guerra imposta aos Guarani e Kaiowá de Guyraoká, que hoje retomam a terra, que, quando declarada em 2009, deixou de fora um rio, que hoje é cercado de plantações de cana, soja e milho. Por ser assim, a água do rio, que poderia ser utilizada pelo povo, está contaminada. A única área de acesso livre à água, é impossível de ser utilizada pelos cerca de 530 moradores, vivendo em apenas 55 ha de terra, sem a demarcação dos 11 mil ha que aparecem na portaria declaratória, suspensa pelo STF, em 2009.
A batalha pela demarcação nos tribunais segue na terra, no ar e água. A utilização dos agrotóxicos por pulverização contamina o rio e o solo, aumentando os problemas nos longos processos de seca atravessando o Mato Grosso do Sul nos últimos anos, e prejudicando as roças dos Guarani e Kaiowá. Soma-se aos desafios de insistir para permanecer, as constantes invasões de empresas de segurança privada no territórios retomados por muitos desses povos indígenas, que estavam no oeste do Paraná, no Paraguai e na Bolívia, não porque eram dali – eles também são dali –, mas, porque estavam em seu território de morada ampliado para esperar a hora de poder voltar para onde sempre foi seu espaço de habitar; assim mesmo, no infinitivo da continuidade da tradição e da resistência.
No início de 2020, cerca de 180 famílias Guarani foram alvo de um ataque no limite da Reserva Indígena de Dourados, que está próxima à aldeia Guyraoká. No espaço da batalha judicial, também há uma fronteira racista para os povos indígenas: a fronteira do agronegócio avança e se consolida sobre espaços dos modos de ser indígena, como denuncia Eryleide. Tal avanço compromete a permanência, e o encontro da terra pura durante e no pós-demarcação, favorecendo a tese infundada do marco temporal de que não havia presença na área antes de 1988, quando, na verdade, o que existia era o bloqueio da existência no lugar onde se é, o Teko’ha. É como se o marco temporal fosse uma profecia autorrealizável por meio de muita violação dos direitos originários indígenas, que são direitos humanos.
Dessa forma, a soja e outras commodities exportadas, também exportam sofrimento, uso de veneno, e, principalmente, exportam violação dos direitos dos povos e pessoas indígenas. Como Célia Xakriabá sublinha, no Cerrado estão diversos povos indígenas que resistem ao avanço da fronteira, que separa e divide o desenvolvido do não desenvolvido, o humano do não humano. Com firmeza, ao falar da Jornada Sangue Indígena, Nenhuma Gota a Mais, ela lembra que “a soja exportada do Cerrado está exportando vidas.” E acrescenta: “a cada vez que os povos indígenas continuam derramando lágrimas, continuam derramando sangue, os rios vão secando. Porque aquele que não se indignar pelos processos de luta dos povos indígenas nos nossos territórios do bioma do Cerrado, já perdeu o princípio de humanidade.”
Célia recorda que em 2019 foram 130 lideranças indígenas assassinadas, “então, se a humanidade não se sente sensibilizada porque não está sujeita a morrer pelos conflitos territoriais, assim como todos nós indígenas estamos sujeitos a morrer, nós vamos morrer por outro mal em comum, que é pelo veneno que chega na nossa mesa”, destaca descrevendo os efeitos dos agrotóxicos. Célia recorda, ainda, que o Cerrado tem sofrido com 33% de aumento de desmatamento só no mês de junho de 2020. Outro fator importante por ela lembrado é que 90% da soja que é exportada do Brasil para outros países “vai arrancada do nosso Cerrado.” Assim, conclui Célia, “pensar a biodiversidade do mundo, pensar biodiversidade do Brasil, sem pensar o Cerrado e sem pensar para além da fronteira é a munição dessa necropolítica, que continua a escolher os povos indígenas, os povos do Cerrado para colocar fogo.”
Morte e vida na luta pela terra e território
“Estamos em guerra. Um líder precisa morrer para uma Terra Indígena ser reconhecida”, destacou Célia ao lembrar como o processo de demarcação do território Xakriabá ocorreu ainda em 1987. Neste ano, em 12 de fevereiro de 1987, foram assassinados três indígenas Xakriabá: Rosalino Gomes de Oliveira – que dá nome à articulação de povos e comunidades tradicionais do Norte de Minas Gerais –, José Pereira Santana e Manoel Fiúza da Silva. Os três indígenas foram assassinados no contexto das disputas territoriais e políticas no distrito de São João das Missões, que foi o nome da aldeia fundada em 1771, que concentrou os povos Ak’we nesta porção do Brasil Central. Escravizados e afastados de uma rica vida de cultivos diversos e de coleta de frutos do Cerrado desde essa época, e continuando a ser explorados ao longo do século XIX e XX, os Xakriabá começaram a se mobilizar em luta pela demarcação do território, contra as cercas das fazendas e dos municípios que limitavam sua terra.
O assassinato das lideranças Xakriabá foi o primeiro crime contra os povos indígenas a ser caracterizado como genocídio na justiça brasileira. Mas essa morte continuou como “violência lenta”, explica Célia. A terra Xakriabá foi parcialmente reconhecida, tendo apenas um terço do território autodeclarado como tradicional pelos Xakriabá sido declarado pelo Ministério da Justiça. O pior é que no processo foi deixado de fora, margeando o espaço de vida Xakriabá, o rio São Francisco. “As crianças Xakriabá crescem afogadas porque não puderam se afogar de crescer no São Francisco”, diz Célia. Assim, os Xakriabá, como os Guarani e Kaiowá, também lutam pela retomada da soberania e da autonomia de seus modos de vida, ocupando seus territórios tradicionais. O que para muitos, especialmente do setor do agronegócio, pode significar uma ampliação de uma ocupação que não é tradicional, para eles é apenas recuperação de um tempo da terra que, diferente de perdido, foi interrompido.
No Brasil Central, esses fluxos temporais e a guerra jurídica em torno do tempo é especialmente complexa e estratégica para pensar o tradicionalmente ocupado, e esta batalha fica ainda mais difícil em situações limite como a que se vivencia agora com o novo coronavírus. Esta, como todas as epidemias ao longo da história indígena pós-colonização, tem servido à dizimação dos povos e, principalmente, à usurpação de suas terras e de todo trabalho, a cultura e a tradição expressa em sociobiodiversidade nela contidas.
Com os povos da família Timbira, do grupo Jê Central, onde se incluem os Apinajé, a dinâmica é a mesma que a dos Xakriabá e dos Guarani e Kaiowá. Junto com os parentes Krahô, caminhantes das chapadas e exímios manejadores de roça e guardiões de sementes de milho, frutas, algodão e tiririca, carregados nos belos cestos-bolsa de palha de buriti, os Apinajé tiveram seu território – com suas roças extensas e diversas, atravessando as estradas de trocas e parentesco – fragmentado por entre os estados do Maranhão, do Tocantins e do Goiás, em razão da expansão das fazendas, o que tem impedido a mobilidade da vida Timbira. Os Apinajé têm que seguir ocupando cada extremo da Terra Indígena, cada ponta de cada aldeia, e formar outras, a fim de garantir o território reconhecido e o que querem que seja reconhecido, porque os invasores, os madeireiros, os grileiros são muitos.
A batalha dos indígenas contra as forças que os atravessam ocorre em todo o Brasil. As forças que invocam o marco temporal, na realidade, questionam o próprio estatuto do Indigenato, impresso no Artigo 231 da Constituição Federal. Este artigo reconhece que todo o povo indígena tem o direito de se autodeterminar como tal e que a esses povos é reconhecido – não concedido – o direito de ocupar tradicionalmente suas terras. Dito de outra forma é reconhecido aos indígenas, que se autodeterminam como tal, suas terras tradicionalmente ocupadas.
A autonomia e a agência dos povos indígenas enquanto sujeito de direitos e, especialmente, enquanto sujeitos que se definem coletivamente enquanto parte e não possuidores de sua terra é algo realmente inovador no sentido da relação povos e autonomia sobre os usos e ocupação da terra. Isso foi parte da negociação constituinte, da qual fizeram parte representantes de muitos povos indígenas para constituir, em relação com o mundo dos brancos, mas, em defesa de suas culturas e suas vidas, aquilo que se constituiu como a Terra Indígena, um exercício de interculturalidade profunda, ainda que desigual. A terra fora da tutela, no tempo da autodeterminação, é o que de fato marca essa legislação, independente de que tenha sido em 1988 a decretação desse direito. Sendo assim, não é o tempo de até 1988 que marca a existência da Terra Indígena. O que segue marcando o tempo da Terra Indígena é, sim, o tempo de ocupação nela impresso pelos seus usos, modificações e desdobramentos dos modos de ser indígena, como diz Eryleide Kaiowá.
Até 1988, muitos dos povos indígenas que lutaram para que existisse o Artigo 231 na Constituição haviam sido deslocados, esbulhados, assassinados, traumatizados e tiveram que fugir, recuar, se isolar do que eram seus espaços tradicionalmente ocupados e manejados. Depois de 1988, muitos desses e dessas indígenas, sentindo-se protegidos coletivamente, enquanto sujeitos de direito, pela própria Constituição, resolveram retornar a suas terras, retomando as mesmas enquanto territórios estendidos de um passado, terras-presentes para a garantia de seus modos de vida, ainda quando estavam distantes. A luta pela terra pura é assim, também, luta pela terra. O futuro do presente marcado pela Constituição precisava conversar e alinhavar outro futuro, o do passado, que foi interrompido por espoliações contínuas e violentas desde o início da colonização e que se viram expandir de forma acelerada sobre o Brasil Central, sobretudo a partir dos anos 1940.
As terras tradicionalmente ocupadas da Constituição precisavam ser situadas, então, em suas contínuas espoliações, nos chamados esbulhos renitentes e justamente, por isso, a autodeterminação em conexão com a terra tradicionalmente ocupada não era mero recurso de garantia de direitos humanos dialogando com a redemocratização, mas, principalmente, uma tentativa de dialogar mais profundamente com a ocupação continuada, interrompida por tantos anos de violações. A ditadura foi uma marca profunda, em velocidade e volume dessas violações no Brasil Central, mas não foi com a ditadura que as violações começaram. Por isso mesmo, a “reconciliação” da Constituição em 1988 não pode ser o “marco temporal” para reconhecer que a terra é, foi ou seria, retomada e autodeterminada como tradicionalmente ocupada apenas na radiografia da presença visível indígena neste ano.
É como se a Terra Indígena precisasse ser ampliada para ocupar a totalidade do território indígena, que foi restringido. Trata-se da retomada contra um esbulho que permaneceu, renitente. O território precisa ser ocupado para combater a pulverização aérea, não combater com arco e flecha os aviões que matam lento, mas, para impedir que o eucalipto ou outros monocultivos avancem. Ocupar e cultivar cada centímetro de terra por eles próprios para evitar a entrada de madeireiros e dos ‘grandes projetos’. Esta ocupação tradicional atualmente está tendo que impor suas próprias barreiras contra a pandemia do coronavírus e contra o pandemônio da ganância corporativa da ‘monoculturação’.
“Tem o vírus da Covid-19, mas, também, tem vírus Covid 1500”
Nos estados do Mato Grosso e do Tocantins, os dois estados do Cerrado onde é maior a infecção pela Covid-19, uma lógica cruel e genocida, e, ao mesmo tempo, territorialista por parte do Estado, tem atingido os povos indígenas. Por um lado, tem sido negado e dificultado o atendimento àquelas pessoas indígenas infectadas que estão fora de terras indígenas reconhecidas e com assistência de saúde já assegurada. Por outro lado, as terras reconhecidas e as não reconhecidas vêm sofrendo constantes invasões que comprometem e contaminam os povos indígenas, reafirmando uma dinâmica de (não) reconhecimento territorial que mata, e seguirá matando, tanto quanto o vírus.
Tal negligência fica ainda mais evidenciada na política do Governo Federal. Ao vetar 16 artigos do Projeto de Lei 1142, que busca consolidar e aprovar uma política de emergência de saúde indígena, incluindo artigo que garantia acesso à água potável em territórios onde isso inexistia, o governo reforçou o alinhamento a uma política genocida contra esses povos ao negar sua possibilidade mesma de existência.
As barreiras sanitárias e isolamento comunitário constituído pelos próprios povos é mais uma vez uma estratégia de fugir para dentro do território e cuidar da vida literalmente. Segundo Célia, é muito difícil lidar com a situação porque “além de ter que enfrentar o Covid-19, tem que se enfrentar esse covid sistemático, o Covid 1500.” Para ela, gasta-se muito mais energia, porque quando estão tentando fazer medidas protetivas, as pessoas ainda perguntam: “mas o Estado brasileiro tem plano? (…) Eu falo tem um plano genocida, é o plano da morte”.
Para Célia, “a Covid-19 mata, mas, nós somos vítimas também de uma herança de Covid de 1500. Está na moda falar na necropolítica, mas o que é a necropolítica senão a invasão de 1500, que deixou como herança a escolha dos povos indígenas como os corpos a serem exterminados. A necropolítica escolheu o bioma do Cerrado para ser exterminado, escolheu a Amazônia, escolheu a Mata Atlântica, escolheu o Pampa, e a cada vez que as pessoas não reativarem o princípio de humanidade não vai ser somente essa ciência que está sendo pesquisada no laboratório que vai curar esse momento de guerra respiratória, de guerra civilizatória, de guerra planetária, mas sim o reativar do princípio de humanidade. Porque a pandemia mata, a fome mata, o veneno mata, a mineração mata, o veto do presidente também mata, mas sobretudo a ausência do Estado mata, e acelera o genocídio indígena no Brasil.”
“Nós não vamos deixar, porque nós vamos continuar lutando com a nossa arma mais potente, que é nosso corpo, que é com a nossa ancestralidade”, reforça Célia. Quando Elza toca o maracá e conta do capim dourado, do artesanato, da agente de saúde indígena e dos jovens formados que voltam para o território Xerente para permanecer e lutar pela terra, a estreita conexão do corpo no presente com o passado e o futuro do território impressionam, em meio à tentativa de continuar os matando. Eles continuam conversando com o Cerrado e chamam atenção para que, se silenciarem essas conversas, algo muito errado estará acontecendo.
Como acrescenta Célia, “aquele que não consegue escutar o chamado, o grito de nossos povos indígenas, não consegue escutar o grito de mais ninguém. O fogo que queima o Cerrado, o fogo que queima outros biomas jamais vai conseguir queimar a força da nossa espiritualidade e, sobretudo, da nossa resistência. Já são mais de 15.000 indígenas contaminados, mais de 500 indígenas mortos e mais de 132 povos atingidos. As pessoas dizem que nós, povos indígenas, não representamos 1% da população brasileira, mas nós já somos em torno de 9,7% da letalidade do vírus. É preciso entender que para a sociedade brasileira, para a humanidade, esse extermínio pode não significar o extermínio da totalidade da humanidade, mas, para nós, povos indígenas, a cada vez que estamos perdendo nossos anciões, cada vez que eles estão ancestralizando de forma prematura, isso é morrer pelo genocídio. Nossos anciões são sementes fecundadas no chão do território para cantar com nós aqui na terra. Porque parte da sociedade considera que não existe futuro se não tiver nossas crianças, se não tiver a juventude. Mas, também não vai existir futuro se nossos anciões estão indo embora, se a nossa identidade está ameaçada.”
A tarefa de “sementear muitos corações que se encontram desmatados”
A conexão da terra com os mais velhos, com as sementes, com a cultura se tece, fiando o território. Quando se come, alimenta-se destes fios da cultura da vida e se fortalece o corpo e o espírito. Essa luta é cotidiana e precisa muito dos parceiros do entorno, dos aliados para defender, cuidar e se alimentar do grande território do Cerrado.
Para preservar e praticar essa ciência do território, os Apinajé da Aldeia Cocalinho estão construindo uma casa de sementes para proteger o patrimônio material e imaterial do Cerrado e recuperar áreas degradadas pela pecuária e o cultivo de eucalipto no entorno da Terra Indígena. Para construir a casa dessas sementes ativas, que precisam ser trocadas e plantadas, estão trabalhando em aliança com as quebradeiras de coco babaçu, com os quilombolas, com os agricultores familiares e com os grupos de agroecologia do Bico do Papagaio [7].
Elza Xerente também enfatiza como é importante as parcerias e alianças com todos os povos do Cerrado, destacando o trabalho do movimento das mulheres indígenas do Tocantins na resistência e na lida com as sementes, com o alimento saudável, e na proteção da terra. Célia lembra de como o papel das mulheres foi importante na autodemarcação do território Xakriabá, quando eram as mulheres que abriam as braçadas de roça para o povo se alimentar, também alimentando o território, marcando os limites e os lugares com as práticas de vida de seu povo.
A lógica de que a semente guardada é, na verdade, a semente no chão, plantada e manejada, é muito simbólica no processo de proteção, vigilância, retomada e autodemarcação dos territórios indígenas no Cerrado. São os frutos do Cerrado para todas e todos poderem se alimentar. As sementes de rama que Célia nos contou que só tinham sentido para sua tia guardar se fosse para compartilhar com outras mulheres, no plantio próximo, faz-nos entender melhor como um ancião é semente. Quando se perde a variedade, perde-se uma forma (um ramo) de se fazer troca e reproduzir a cultura sobre a terra, de se manter enquanto povo na herança que só é genética, porque é social. Sociobiodiversidade plantada e colhida. Por isso mesmo, não tem data marcada para acontecer na terra, como pretendem insistir, nem tampouco conseguem r-existir se não tiver terra, que é território de ação in situ, para conservar, sobreviver e se reproduzir social e culturalmente.
“O Cerrado tem diversidade de medicina para toda a humanidade. O bioma Cerrado cura. O fogo, quando vem, queima essa cura”, explica Célia. Esta medicina vem também dos frutos, dos alimentos do Cerrado que são soberania alimentar para os povos como lembraram também Elza e Eryleide. O buriti, a mangaba, o cheiro forte do pequi ligado à fortaleza dos seus troncos fazem parte do “território da boniteza, das raízes profundas, da memória que conecta os Xakriabá, com os povos Xavante e Xerente”, lembra Célia ao descrever o Cerrado. Este território é fundamental para soberania dos povos porque faz parte, como ela nos diz, da ‘saborania’ alimentar do Cerrado.
Nessa toada, concluímos com as palavras de sabedoria e chamado de luta transmitidas por Célia: “Nós temos uma tarefa de sementear muitos territórios, nós temos uma tarefa de plantar semente em muitas terras, mas, nós temos uma tarefa muito mais difícil que é de sementear muitos corações que se encontram desmatados, de curar muitos corações que perderam essa conexão, essa capacidade de enxergar a terra como parente. O Cerrado sofre nesse momento com essa monocultura que tenta trazer a terra só apenas como produto, mas a terra ela não está à venda, porque o dia que vender todo território é como vender nosso corpo, é como vender o nosso espírito”.
Marcela Vecchione é professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membro do Grupo Carta de Belém.
Antonio Verissimo da Conceição é lavrador, ativista e liderança na aldeia de Cocalinho no Bico do Papagaio, Tocantins.
Laudovina Aparecida Pereira é membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Goiás/Tocantins e jornalista com especialização em Ensino de Comunicação/Jornalismo pela UFT.
Roberto Antonio Liebgott é missionário leigo do Cimi e coordenador do Cimi Sul – que abrange os estados do RJ, SP, PR, SC e RS – e é formado em Filosofia e Direito.
[1] O Macro Jê e o Tupi são troncos linguísticos onde se inserem algumas das mais de 250 línguas indígenas que existem no Brasil. Um tronco é como se fosse o latim para o português ou para o espanhol, ou seja, de um tronco podem sair vários ramos, que são as famílias, que agrupam as línguas indígenas. No Cerrado, os povos Jê, do tronco Macro Jê, são a predominância demográfica e linguística da região.
[2] As terras tradicionalmente ocupadas são aquelas ocupadas pelos Povos Indígenas que se autodeterminam enquanto tais e que, portanto, autodeterminam quais são as suas terras. O Art. 231 da Constituição Federal reconhece estas terras como direito originário, competindo aos órgãos responsáveis apenas a característica declaratória desse reconhecimento, não sua determinação e definição.
[3] O marco temporal é um argumento jurídico levantada por deputados e senadores, em sua maior parte presentes na CPI Funai-Incra e nos relatórios referentes ao Projeto de Emenda Constitucional 215, de que as terras tradicionais mencionadas no Art. 231, seriam apenas aquelas onde houvesse a presença de povos indígenas até a data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988.
[4] Esbulho Renitente são as usurpações, deslocamentos e espoliações das terras indígenas ocorridas ao longo do processo de sobreposição e intervenção sobre as mesmas ocasionadas pelo Estado ou por entes privados, provocando assim o impedimento da realização do direito originário de tradicionalmente ocupar a terra.
[5] As entradas foram formas de colonização, aldeamentos e contatos.
[6] A UHE Lajeado é administrada pelo Consórcio EDP, liderada pela empresa de energia Investco S.A. Do consórcio, saiu o Programa de Compensação Ambiental Xerente (PROCAMBIX), que causou várias desestruturações na forma organizativa espacial no território desse povo.
[7] Região do estado do Tocantins na tríplice divisa com o Maranhão e o Pará.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil