Plantar agroecologia no coração do mundo. Ética, Ecologia e Solidariedade
A agroecologia do campo e a agroecologia de toda a vida da gente precisa de estruturas comunitárias mais sólidas. É preciso irmos na contramão da sociedade individualista neo-liberal e criarmos novas relações de pertença comunitária que sejam leves, atuais e possam ser referência para o mundo de hoje, principalmente a juventude. Nessas bases comunitárias, recriar uma Economia de reciprocidade, de serviço à vida e não à acumulação ou ao consumo
Ética, Ecologia e Solidariedade [1]
Marcelo Barros
Dedico esta reflexão
à minha afilhada e secretária Clarinha,
por seus 15 anos de vida
e por sua vocação
para cuidar da Ética ecológica e solidária.
Às vezes, tratamos de assuntos que são urgentes e de cujo teor sentimos falta. Outras vezes, devemos aclarar coisas que já vivemos, mas sentimos a necessidade de tratar para confirmar e aprofundar o caminho já percorrido. Para as pessoas que consagram a vida a serviço da justiça e luta por um novo mundo possível, a Ética é algo assim. É como entre duas pessoas que se amam. Não é necessário que um diga ao outro “eu te amo”. A pessoa já sabe pelo olhar e pelos pequenos detalhes da vida. Mas, quem não gosta de escutar, mesmo que não seja nenhuma novidade: “eu te amo”. Pode dizer todo dia que cada vez soará como a melhor novidade.
Assim, podemos conversar aqui sobre Ética ecológica e ecumênica. Há certos ambientes nos quais, quando sou chamado para falar sobre Ética me sinto mal porque penso que o pessoal me acolhe pensando: agora vamos falar de dever, obrigação, lei moral ou até de religião. Falar de Ética ecológica e solidária aqui é bom porque é como entoar uma música que todos conhecem, amam e esperam que se entoe. É como percorrer novamente um caminho que nos é conhecido e querido. Os companheiros e companheiras que fazem um encontro como este, comprometidos com a Agroecologia, já vivem a Ética ecológica e ecumênica, isto é, solidária.
Aprofundar esta questão da Ética é, então, reconhecer um caminho que já vivemos.
1. Clareando os termos
Ética vem do termo grego ethos e significa modo de agir e de ser. É importante porque nossas ações não ocorrem por acaso, arbitrariamente, de acordo com algum impulso de momento. Elas obedecem a princípios e critérios que servem para nós como uma luz no escuro ou uma indicação segura quando precisamos de orientação na estrada da vida. A Ética é mais do que a Moral. A Moral fornece a lei que decorre do critério ético. Por exemplo, a Ética diz: a vida é sagrada e merece respeito. A vida humana, mas também a vida dos animais e das plantas merece respeito. O documento ecumênico “Os pobres possuirão a Terra”, assinado por muitos bispos e pastores de diversas Igrejas cristãs, afirma: “Toda forma de vida e todos os seres vivos possuem um valor intrínseco de bondade e têm direito ao respeito” [2]. Este é o chão da Ética. Então, sim, a moral diz que não se deve matar nem agir de forma que prejudique a vida. A Ética não é uma camisa de força nem uma lei rígida para ser aplicada em qualquer situação que seja. O próprio Jesus no Evangelho dizia que a lei existe em função do ser humano e não o ser humano em função da lei.
A Ética é exatamente a sabedoria de colocar a lei a serviço da vida. É como criar uma relação de convivência e cuidado comigo mesmo, uns com os outros e com a natureza, a Terra, a Água e todo ser vivo, a partir de uma consciência de pertença e interdependência. Existe uma Ética ecológica quando superamos a relação de dono e proprietário da terra, dos animais e das plantas para a relação de que somos gerentes e zeladores da comunidade da Vida da qual pertencemos como membros. O Novo Testamento tem como palavra chave o termo koinonia que significa participação (no sentido de que somos parte uns dos outros) ou comunhão. Este termo comunhão denota etimologicamente dois sentidos: comum união e também comum munus, ou seja, “somos chamados a assumir juntos o mesmo múnus, o mesmo cargo, a responsabilidade uns pelos outros”. Esta seria a Ética ecológica e ecumênica no sentido amplo, ou seja, Ética da Solidariedade. Pedro Casaldáliga, nosso amigo e profeta, diz que a solidariedade é na relação entre grupos e no plano social com as pessoas o mesmo que o carinho e a ternura significam para duas pessoas que se amam.
Eu dizia e estou convencido de que quem pratica a Agroecologia e está neste caminho que vivemos no dia a dia, já vive o caminho desta Ética. Entretanto, se sentimos a necessidade de conversar agora sobre isso é porque percebemos grandes dificuldades e, ao mesmo tempo, queremos avançar mais para além dos entraves e com mais firmeza. Vamos então conversar agora sobre alguns destes entraves que a Ética Ecológica e Solidária encontra para ser vivida no mundo atual e o que podemos fazer diante disso.
2 – Descolonizar o imaginário e refazer a economia
Em quase todas as palestras e discussões que tivemos aqui, vimos que o modelo de Economia vigente na sociedade brasileira e na maior parte do mundo atual, o chamado Capitalismo neo-liberal, ou chamem como quiserem, tem afundado o mundo em uma desigualdade social cada dia mais escandalosa e é responsável por uma destruição ecológica que, se continuar neste caminho, vai destruir o planeta e inviabilizar a vida sobre a Terra. Todos sabemos que, etimologicamente, o termo Economia tem o mesmo prefixo de Ecologia. No sentido mais profundo, Economia significa a norma de administração da casa comum de todos para que todos possam viver dignamente. Hoje, a Economia é justamente o contrário disso. Por isso, não existe possibilidade de uma Ética Ecológica e Solidária dentro deste universo de um mercado excludente e de uma Economia competitiva.
Enquanto eu estou falando com vocês, no Xingu, centenas de índios estão ocupando a hidrelétrica de Paranatinga II, no Rio Kuluene, no Mato Grosso. Estas obras já tinham sido embargadas pela Justiça Federal, mas assim mesmo continuam. Os índios dizem que esta hidrelétrica prejudicará irremediavelmente o rio Kuluene que corre para dentro do parque do Xingu, onde vivem cinco mil pessoas de 15 etnias. A barragem impedirá a reprodução de muitas espécies de peixes que precisam das corredeiras e da extensão do rio para se reproduzir. Isso afetará de forma terrível a vida e a sobrevivência de muitas comunidades indígenas. Elas sabem que a hidrelétrica está sendo construída para garantir grandes plantações de soja e pastagens, destruindo a floresta e o cerrado. Além disso, vão inundar um território sagrado das etnias do Xingu, onde foi celebrando o primeiro Kuarup, em homenagem aos mortos ilustres, cerimônia cultivada por varias etnias [3]. São duas lógicas de vida que estão em jogo. Não é possível manter e alimentar a lógica oficial do lucro e tirar migalhas para uma Ética ecológica e solidária. Entretanto, nós sabemos que o Capitalismo não vende apenas produtos e mercadorias. Vende sonhos, vende símbolos. A propaganda da Coca-cola não diz que ela é saborosa, nem mesmo que tira sede. Diz que ela é uma forma de vida. Tomar Coca-cola é ser jovem, ser livre. Usar tal tipo de tênis torna você importante. Tal marca de calça lhe faz ter sucesso com as meninas e assim por diante. Antes de colonizar a terra e de envenenar nossos campos com agro-tóxicos, o Capitalismo coloniza nossas mentes. Domina o nosso imaginário. Escraviza nossa fantasia. Além de destruirmos sementes transgênicas, temos de impedir os transgênicos da alma, da nossa sensibilidade, do nosso afetivo. E temos, é claro, de ocupar espaço. Recriar uma sensibilidade que torne cada vez mais atraente e gostoso o nosso modo de conceber a vida, de administrar as relações e viver nossa forma de cultivar e nos alimentar.
Isto é um desafio que temos na nossa relação com a sociedade, mas também e primeiramente, para nós mesmos. Até que ponto, eu mesmo consigo unificar a minha cabeça (o que penso) e a minha sensibilidade (os meus sonhos e desejos), de forma que tenha o coração descolonizado?
Wangari Maathai, ambientalista africana do Quênia, agraciada com o prêmio Nobel da Paz em 2004, no discurso com que agradeceu o prêmio que recebeu em Oslo, insistia que a sustentabilidade da Terra, o cuidado com a natureza tem de ser vivido a partir da cultura. Ela convidava os jovens a viverem este trabalho com o mesmo espírito com o qual, quando ela era criança, ela ia a um riacho próximo da casa para buscar água e brincava em volta das folhas de araruta. Depois, tentava pegar os cordões de ovos de sapo grudados em alguma pedra ou raiz nas margens do riacho. Ela acreditava que os tais ovos fossem colares. Toda vez que tentava pegar, eles quebravam. Aí ela ligou os ovos com os girinos serpenteando nas águas límpidas do riacho e deixou de quebrá-los. Mas, quer, hoje ainda, refazer este mundo encantado para dar a seus filhos que hoje vêem o riacho seco e as águas poluídas [4].
A Agroecologia já tem 30 anos de experiência. Esta já é a 6ª Jornada Nacional e têm havido muitos encontros regionais, principalmente aqui no Sul. E o que é bonito e importante é que vivemos a Agroecologia não apenas como a retomada de uma técnica agrícola antiga e tradicional que os índios e os nossos antepassados que trabalhavam a terra já conheciam. Dos antigos e das comunidades indígenas, aprendemos que a Agroecologia é uma forma de viver, um espírito com o qual sentimos e olhamos as relações e a própria vida. Como nós não nos isolamos em uma ilha distante, temos de conviver com este sistema e até, querendo ou não, participar dele: administrar a terra e a agricultura de acordo com regras que não somos nós que fazemos, ter acesso a programas e verbas que possam favorecer a agricultura familiar e assim por diante. Certamente, é uma boa notícia saber que o Café orgânico já é líder de venda no mundo todo. Os companheiros que produzem alimentos sadios e naturais só podem ficar contentes se conseguimos que uma cadeia de grandes mercados como o Extra ou o Carrefour comprem nossos produtos. O desafio é que não queremos que nossos produtos se tornem mais uma grife da moda, um selo, uma coisa de elite. Pode-se compreender que um alimento produzido sem adubos químicos ou de forma orgânica possa custar mais do que o produzido sem nenhum cuidado com a vida. Mas, se um quilo de tomate no mercado comum consegue ser vendido a 1, 20 reais, enquanto o de tomate orgânico custa 4, 50, estamos aceitando que a agricultura ecológica seja ainda uma coisa de elite. Não conseguimos ser uma alternativa ao modelo vigente. Se estamos convencidos de que a própria Vida pede a Agro-ecologia e esta deve ser a forma comum e normal da produção, temos de lutar para que esta possa se tornar mais acessível a todos. O que está em jogo, novamente vamos deixar claro, não é apenas a questão econômica. É a Ética ecológica e ecumênica no sentido de novas relações humanas e com a natureza.
3. Tornar agroecológica a vida da gente e do mundo
Como nós temos um coração, o mundo também tem. O ser humano, homem e mulher, jovens, velhos e crianças, têm a função de ser a alma, o princípio de zelo e amor por todo o universo. Como a sociedade não só não nos preparou para isso, mas ao contrário, nos fez pensar que cada um vivia para si mesmo, é importante um trabalho permanente de conversão e de plantar nova sensibilidade todo dia. Devemos, então começar por nós mesmos, não no sentido de privilegiar o individual sobre o coletivo, ou pensar que fazendo eu comigo mesmo, estarei contribuindo suficientemente com o mundo. Não. De modo nenhum. É apenas no sentido de começar pela base. É este o sentido que Gandhi dá ao dizer: Comece por você mesmo a mudança que propõe ao mundo. Começar pela base. E aí é importante sermos criativos.
Na Europa, criaram o Banco Ético, o Mercado équo-solidário, o Balanço de Justiça e outras iniciativas que, por exemplo, na Itália, reúne os movimentos populares em uma Rede Liliput, a rede dos pequenos... Aqui, vivemos isso de outra forma, mas precisamos aprimorar essa prática da revolução no cotidiano de nossas relações afetivas, de nossa forma de viver o consumo e de lidar com o que é comunitário ou coletivo.
A agroecologia do campo e a agroecologia de toda a vida da gente precisa de estruturas comunitárias mais sólidas. É preciso irmos na contramão da sociedade individualista neo-liberal e criarmos novas relações de pertença comunitária que sejam leves, atuais e possam ser referência para o mundo de hoje, principalmente a juventude. Nessas bases comunitárias, recriar uma Economia de reciprocidade, de serviço à vida e não à acumulação ou ao consumo. Devemos também recriar estruturas políticas mais humanizadas e horizontais. As comunidades indígenas tradicionais nos diziam que chefe é quem sabe e reparte o saber e não quem tem poder sobre os outros. Como redescobrir uma disciplina comunitária e uma possibilidade de coordenação efetiva e eficaz caminhando para novas estruturas de repartição do poder popular?
Finalmente, eu quero lembrar que, antigamente, a Agroecologia era uma prática sagrada. Era ligada ao culto da natureza, vista como divina. Hoje, redescobrimos na Terra, na Água e em todo ser vivo, um sinal da presença do mistério amoroso que envolve o universo. O amor que faz do universo uma comunidade de vida. Que se denomine Deus ou não, esta energia amorosa nos chama a cada um de nós a sermos nós mesmos sementes e mudas fecundas desta amorização do planeta. Cada vez mais as pessoas que seguem algum caminho religioso sabem que a religião só vale a pena se ajudar a humanidade a viver este processo de amorização. Foi o que Lao-Tsé, Buda, Moisés, Jesus de Nazaré, Maomé e todos os homens e mulheres de espiritualidade viveram. É nosso caminho agroecológico.
[1]- Palestra proferida no Encontro Nacional de Agro-ecologia, promovido pelo MPA em Cascavel, 09/06/ 2006.
[2]- BISPOS E PASTORES SINODAIS DO BRASIL, “ Os Pobres possuirão a Terra”, Ed. CEBI, Ed. Sinodal, Ed. Paulinas, 2006, número 82, p. 45.
[3]. Cf. WASHINGTON NOVAES, O Xingu em pé de guerra, in O Popular, 5ª feira, 08/06/ 2006, p 8.
[4]- WANGARI MAATHAI, Brincando em volta das folhas de araruta, in Revista Eco 21, Dezembro 2004. ( www.eco21.com.br).