Para recuperar o tempo e o corpo perdidos
Pandemia gerou um alzheimer social: lembranças e projetos turvam-se ou são apagados. Sem a comunicação dos corpos, a desorientação temporal alastra-se do ócio ao trabalho. Uma nova revolução reivindicaria o direito à Memória Coletiva.
I.
Para nos orientarmos no espaço é preciso ter esquinas, torres, montes, estrelas.
Para nos orientarmos no tempo, precisamos de costumes e acontecimentos.
O Tempo visto de fora chama-se tempo. É aquele que medimos com os relógios, mas também as festas coletivas e mudanças de estação.
O Tempo visto de fora chama-se duração, aquela massa pegajosa presa entre as nossas costelas.
Precisamos contemplar a duração do tempo para não nos perdermos nela. Entre o tempo e a duração, como entre as conchas de um molusco, tem que haver uma pequena fenda aberta para que a vida entre. Essa pequena fenda é o que chamamos Espaço.
A pandemia fechou as conchas do molusco. O Tempo se fechou sobre a Duração, coincidindo com ela. Agora mesmo, se o Tempo se sobrepõe à Duração, então não cabe o espaço; e não cabem, consequentemente, os corpos. O tempo-duração é, por isso, um pântano sem bordas, não um rio — que vai para a morte — mas um mar espesso sem horizonte para contemplar ao longe, tampouco com arbustos ou pedras para se agarrar. Onde é possível, portanto, dizer: “isso aconteceu amanhã”, “isso ocorrerá ontem”, “isso está acontecendo sine die”. Onde é possível perder-se.
Um minuto dura mais que um dia porque o minuto deve ser contado e o dia, ao contrário, se desconta quando já passou. Um dia dura, em qualquer caso, mais que um ano.
O melhor resumo foi feito pelo meu filho Juan, em maio, ao definir a temporalidade do confinamento: “como os minutos passam tão lentos, como o tempo passa tão rápido”.
II.
Se escovo os dentes diante do espelho, não posso saber quando estou fazendo isso porque o faço todos os dias. Esse ato é um hábito e uma parte de meu organismo, não de minha agenda. Não preciso me perguntar também se hoje levo um coração dentro do tórax ou os pés no extremo das pernas, porque tenho o hábito de levá-los sempre. O ato de escovar os dentes, como o de ter pés, se dá por certo e, consequentemente, não me serve para contar o tempo. Nem me deixa nenhuma lembrança nem sua repetição me ajuda a recordar outra coisa ao meu redor, seja por associação ou concomitância.
Posso me perguntar com angústia se tomei ou não os remédios ou se fechei o gás, mas não se escovei os dentes, como tampouco me pergunto se respirei esta manhã ou — e é importante pelo que direi em seguida — se me conectei hoje à internet. Não posso saber quando estou escovando os dentes porque sempre estou escovando os dentes. Sempre estou conectado à internet. Por isso o hábito, sumergido na duração, é o contrário do costume, que implica a ideia de repetição no tempo. Às segundas e quartas vou a aula de ioga; nas sextas durmo na casa de Alfredo; aos sábados janto fora; nos domingo compro jornal e faço arroz com leite.
Às 8h, passa pensativo Kant diante da porta de minha casa. No outono, caem as folhas; na primavera, as flores do campo explodem sem ruído. Os costumes, humanos ou naturais, são repetições no tempo que nos permitem orientar-nos por meio dos movimentos que faz o passado com a memória e os movimentos que o futuro faz com a vontade. Ou seja, os costumes são para se recordar e também esperar ou temer. Lembro com nostalgia dos meus verões de infância em uma vila. Temo a visita de meus pais às quintas. Espero com impaciência o florescimento dos jacarandás ou meu encontro às sextas com Alfredo.
III.
Orientar-se no tempo significa, portanto, inscrever o corpo fora do organismo, em um espaço em que os gestos contam. Os hábitos não ocorrem no espaço. Respiro, escovo os dentes e me conecto à internet em qualquer lugar, em lugar nenhum, em uma duração intestinal sem aura nem mundo. Meu corpo só está em algum lugar quando posso relacioná-lo com outros corpos e, por isso mesmo, situá-lo em um eixo vertical do tempo.
É preciso entender bem essa questão. Temos isso que chamamos “presente” só porque enquanto trabalhamos recordamos o que estamos fazendo; aqueles que — como em certos casos trágicos de amnésia patológica — perderam a tal ponto a memória que apagam suas experiências no mesmo ato de vivê-las, na realidade não vivem nada. Vivemos, pois, da memória e o que chamamos “presente” não é mais que nosso passado mais recente: dali, por certo, vem a sensação de desassossego, inseparável da condição humana, de que nunca estamos completamente ali, quando beijamos a nossa amada ou na felicidade de ver, pela primeira vez, as flores de cerejeira ou os canais de Veneza.
Nunca estamos inteiramente aqui e graças a essa trágica ausência podemos nos orientar no tempo e, definitivamente, viver algo, pouco que seja, ainda que de maneira incompleta ou insuficiente. Não estar inteiramente aqui é nossa forma de estar aqui: um beijo esquecido não é um beijo; um beijo que é só recordação — porque meus lábios, ao unir-se aos seus, já estão no passado — é o único beijo que nós, humanos, temos acesso. E não está de todo mal.
IV.
Poderíamos pensar que, posto que esse gesto é só duração, nós escovamos os dentes no presente puro. Não é isso. Não há “presente puro”. Eles são escovados na pura duração sem tempo do organismo cego, onde a consciência não pode entrar, sequer tarde demais. Nos beijamos, em troca, tarde demais; tudo o que é importante — tudo o que acontece — ocorre tarde demais. Enquanto nos beijamos temos a sensação de que “acabamos de nos bejar”, e o gosto do beijo na boca é já um retrogosto: uma recordação muito recente da ponta da língua.
Nunca é sincronizado. E pouco serve prestar atenção. Enquanto te beijo, para estar completamente em sua boca, ansiando pelo amor inflamado, tratando de reter esse momento intenso de intimidade, posso tentar lembrar a mim mesmo: “presta atenção: está beijando a Marta”. Mas já — ai — estou perdido: imediatamente a estar recordando. Nenhum gerúndio é presente; todos os gerúndios são um “acaba de passar”: todos os gerúndios, sim, exceto “recordando”. Nunca estou beijando Marta aqui e agora; por muitos minutos que a beijei sem tomar alento, e por mais que continue e continue beijando-a, é algo que já ocorreu enquanto ocorre: uma sucessão mais ou menos longa (oxalá seja longa) de “acaba-de-beijar-a-Marta”, “acabo-de-beijar-a-Marta”, “acabo-de-beijar-a-Marta”. Nunca “começamos a”; sempre “acabamos de”.
O presente é só a ocasião ou a condição de uma lembrança mais ou menos viva ou mais ou menos tranquila. Como o normal é estar sempre “acabando de”, sentimos em seguida a dor da “incompletude”: a nostalgia desse minuto que se escorreu do princípio, a insatisfação de não haver beijado Marta o bastante. Mas essa dor é sempre melhor do que o nada do escovar os dentes.
V.
Vivemos no passado, mas também fazemos o futuro, colocando-nos sem descanso diante desse lugar onde vivemos recordando o presente. Isso refere-se à palavra “projeto”. Esperamos certas repetições e preparamos certos acontecimentos. Nosso corpo está em algum lugar porque vamos a alguma parte, com as pernas ou com a mente; porque avançamos pelo espaço em direção ao futuro. Pela fenda entre as conchas — digamos — chegamos a outro lugar e também ao dia seguinte. Se o espaço às vezes parece insuportável se deve justamente a que esse tempo petrificado que temos que forjar a marteladas para alcançar a nossa meta: para chegar até Marta tenho que atravessar o parque do Retiro; quando acabo de percorrer essa distância que me separa de Ítaca sou outro homem e é outro ano.
O presente ocorre no passado e antecipa um futuro do qual nos separamos não só por uma sucessão mais ou menos longa de horas a percorrer, mas por um prado, uma praça, toda a rua de Alcalá, que é longuíssima. Qualquer amante separado de sua amada é espontânea e dolorosamente einsteiniano: concebe o espaço-tempo como uma unidade rochosa impenetrável, composta de grãos eleáticos que nenhum desejo, por mais intenso que seja, pode atravessar de um salto. O presente é o passado mais recente, mas também é o primeiro obstáculo para chegar a sua casa ou para que chegue o verão. Nunca chego a sua casa e nunca chega o verão, é verdade, porque uma vez ali já passou. Mas graças a essas tensões insatisfatórias, geradas antes ou depois, nos orientamos no tempo e submergimos completamente na duração intestinal do hábito orgânico sem fronteiras.
VI.
Pois bem, que o tempo e a duração, a causa da pandemia, tenham se fechado como as conchas de um molusco significa que nossa vida inteira é convertida em um hábito: algo que ocorre sob a atenção de nosso corpo, em seu interior biológico, sem memória nem esperança. Já não há espaço entre o limite do tempo e o limite da duração por onde possa caber até a dor de já ter te beijado, a dor de não ter te beijado ainda. Acredito que a todos nós está passando isso de nos sentirmos temporalmente desorientados; mal sabemos quais sequelas físicas e psicológicas nos deixará. Tudo se converteu em um permanente “escovar os dentes” em um dia qualquer. Se orientar-se no tempo é viver ações já terminadas ou ainda iniciadas, nunca “acabamos de” escovar os dentes porque escovar os dentes é uma ação que não tem princípio nem fim. Não deixa nenhuma memória tampouco contém algum plano de futuro. Não começa. Não acaba.
Simplesmente não ocorre. Os últimos nove meses têm sido, sem dúvida, os mais densos e mais curtos de nossas vidas: passou de uma só vez, em um só bloco, de repente. Ao final de agosto, quando voltei a Tunis após um confinamento inesperado de seis meses em uma vila de Castilla, onde havia ido passar dez dias de férias, expressava-o assim: “Foram os dez dias mais curtos de minha vida: estão durando seis meses”. Uma vez terminada a pandemia, dentro de um ano ou dois, não recordaremos de nada, porque não haverá passado um ou dois anos: haverá passado só uma unidade de tempo. Uma “unidade de tempo” não é tempo: é duração curada como um queijo, encerrada em uma caixa de papelão e abandonada sem nem olhar para trás. Ou como escrevi em um brusco aforismo: “O tempo é uma grande carreira de cocaína em cima da mesa. Deus a cheira numa só cafungada”.
VII.
Essa coincidência das conchas de tempo e da duração é consumada também por meio das novas tecnologias, ou seja, desse confinamento tecnológico em que, de algum modo, vivíamos antes mesmo da pandemia, mas que a pandemia, impondo uma forma de necessidade funcional, completou. O confinamento nos libertou do corpo, convertendo hábitos em costumes, mas libertou nosso corpo ao mesmo tempo em que o encarcerou na duração sem tempo da rede. Boa parte de nossa desorientação temporal, associada à falta de lembranças e à falta de projetos, tem a ver com essa comunicação sem corpos que do ócio se transladou agora também ao trabalho.
Alguém dizia com genial perspicácia filosófica que uma reunião de Zoom é como uma sessão de espiritismo. As aulas online, o teletrabalho, as conferências em streaming que nos colocam com um mundo virtualmente que desaparece no ar, como a imagem do Gato Que Ri, algumas vozes dispersas, alguns trapos acústicos. O que fala não fala de Tunis; o que escuta não escuta de Zamora. Não sabemos onde estamos nem se há alguém escutando-nos do outro lado, porque não há nenhum lado; não sabemos se estamos falando a partir do passado e tudo o que dizemos já é ultrapassado e reacionário ou se falamos direto do futuro, profetizando. Essa sensação de que nossas palavras não estão ancoradas nem em um lugar e nem em uma data confere a todos os discursos uma aura fúnebre e inútil. Não se pode mudar um mundo que já não existe. O melhor que podemos fazer na rede é trocar de escova de dentes.
VIII.
Por tudo isso, o fechamento do tempo sobre a duração se constitui como a metáfora mais precisa de um capitalismo sem exterior, de cuja decadência tomamos consciência exatamente quando todas as rotas de fuga estão obstruídas. Primeiro, digamos, ele se apoderou do tempo e de sua fenda, o espaço; agora, através das tecnologias, se infiltra na duração. Entre suas conchas, os bárbaros internos — pandemia, catástrofes climáticas — giram sem saída, substituindo ou somando-se ao “terrorismo” como função da governança global e seus medidas de exeção.
IX.
Desorientados no tempo, confinados nas tecnologias da comunicação, somos submetidos a uma vida de hábitos, completamente animal, que não deixa recordações e não gera projetos, privada de costumes e de acontecimentos; e a única coisa que podemos fazer é deixar-nos levar na velocidade das redes. O problema é que os humanos nos habituamos a tudo e há muitos interesses materiais e políticos em nos manter tecnologicamente confinados para sempre; ou seja, desengajados; desinteressados do mundo.
Escrevo essas linhas preocupado por essa desorientação temporal que muitos compartilhamos (uma espécie de alzheimer social) após escutar com horror as bem-intencionadas declarações do ministro do Trabalho da Espanha, Joaquín Pérez Rey, que soube muito bem ver o caráter “disruptivo” dessa “mudança cultural”: É necessário começar a entender que a produtividade está desligada da presencialidade”, disse. E completou, consciente de que o confinamento é muito anterior à pandemia: “É preciso romper com esse elemento; em certo ponto ele já está muito desgastado e é preciso aprofundá-lo”. Pérez Rey, que faz da necessidade virtude, vê uma possibilidade “de liberar tempo”, uma fórmula de “dedicar tempo a outras atividades, inclusive com finalidades diferentes das que normalmente se utilizam o tempo”.
Dá muito medo: essa ruptura entre produtividade e presencialidade, que deixa o espaço fora da esfera do trabalho, entrega para sempre o tempo à duração, que transbordará — já está transbordando — o modelo de emprego para inundar toda a vida do trabalhador, inclusive a mais íntima, e consumar a substituição dos corpos por funções orgânicas. No mundo continuará a haver alguns corpos quebrados, algumas árvores queimadas, enquanto escovamos os dentes na internet.
X.
Assim que, quando passar a pandemia, haverá que fazer uma revolução não para mudar a Constituição, o governo ou a economia, mas para restaurar a humanidade mais elementar: para sair de casa, compartilhar espaços, dar um beijo, construir uma memória; para voltar ao tempo. Para recuperar, em definitivo, o corpo perdido.
Tradução: Rôney Rodrigues
Fonte: Outras Palavras