O desmatamento da Amazônia. E o papel do Inpe para barrá-lo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais possui série histórica da destruição de floresta desde 1988. Imagens de satélites já foram usadas para desincentivar venda de soja plantada em área desmatada.
Somente em junho de 2019, 920,4 km² de floresta amazônica foram derrubados, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Para se ter uma ideia do tamanho da destruição, o número equivale, praticamente, à área urbana da cidade de São Paulo, a mais populosa do país, com seus 968,3 km².
O desmatamento na Amazônia, em junho, subiu 88% em relação ao mesmo mês de 2018. Para o presidente Jair Bolsonaro, os números não correspondem à realidade. “Com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido”, disse em encontro com jornalistas, em Brasília, em 19 de julho de 2019.
Ele demonstrou preocupação com a repercussão negativa dos dados de desmatamento do Inpe no exterior e sugeriu que o presidente do instituto, Ricardo Galvão, poderia estar “a serviço de alguma ONG”. Galvão rebateu o presidente no dia seguinte, em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo.
Ele se disse indignado com os comentários, classificou-os como uma “conversa de botequim” e reafirmou a seriedade do levantamento. “Ele [Bolsonaro] já disse que os dados do Inpe não estavam corretos segundo a avaliação dele, como se ele tivesse qualidade ou qualificação de fazer análise de dados”, afirmou.
Os dados sobre o desmatamento em junho de 2019 foram obtidos pelo Deter (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real), do Inpe, que monitora a Amazônia mensalmente desde 2004.
A criação do Inpe
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais foi criado em 1971, durante o governo do general Emílio Médici, como desdobramento da Comissão Nacional de Atividades Espaciais, surgida dez anos antes, nas administrações dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart.
A função da comissão era planejar as políticas para o setor espacial. A iniciativa se deu em meio à corrida espacial que marcou a Guerra Fria. Em 1957, os soviéticos tinham colocado no espaço, pela primeira vez na história, um satélite: o Sputnik. Em resposta, no ano seguinte, os americanos enviaram à órbita terrestre o Explorer.
Já em 1961, foi a vez de um homem ser lançado ao espaço, o que aconteceu com o cosmonauta Yuri Gagarin, um mês antes de os Estados Unidos reagirem com o programa Apollo. A Apollo 11 chegaria à Lua em 1969. Jânio Quadros, entusiasmado com as iniciativas espaciais (ele condecorou pessoalmente Gagarin em 1961), assinou o decreto para a criação da comissão. Várias ações se seguiram à institucionalização da pesquisa espacial no país, que passou a utilizar recursos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Em 1965, o país inaugurou o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, em Natal (RN), com o lançamento do foguete de sondagem Nike-Apache, da Nasa. Cinco anos depois, cerca de 230 foguetes estrangeiros e nacionais já tinham sido lançados a partir da base. O planejamento e o desenvolvimento de foguetes passou a ser feito pelo Grupo Executivo e de Trabalhos e Estudos de Projetos Espaciais, criado em 1966.
Na mesma época, o Brasil começou a formar mestres e doutores na área, em parcerias com a Alemanha e a França. Desde a década de 1960, as iniciativas que originaram o Inpe se dedicaram a pesquisas com uso de dados e imagens de satélites. Um dos programas, por exemplo, visava mapear recursos naturais por meio de fotos aéreas.
Em 1970, uma missão detectou ferrugem (doença causada por fungos) em cafezais, em Minas Gerais. Em 1974, o Inpe, já com esse nome, começou a usar o satélite Landsat, cujas imagens são arquivadas nos Estados Unidos, para mapear o desmatamento na Amazônia.
Os dados sobre desmatamento
Foi apenas em 1988, porém, que o instituto passou a compilar numa série temporal os dados sobre a cobertura vegetal da Amazônia. “Nós temos a maior série histórica de dados de desmatamento de florestas tropicais, respeitada mundialmente”, disse ao site G1 Ricardo Galvão, presidente do instituto. A iniciativa é feita pelo Prodes (Programa de Avaliação do Desflorestamento na Amazônia Legal).
Esse programa mede as taxas de corte raso, ou seja, de remoção de vegetação em áreas superiores a 6,25 hectares (cerca de seis campos de futebol), que são usadas para a plantação de soja e milho, por exemplo. Por depender da condição climática dos períodos mais secos (entre maio e setembro de cada ano, quando há menos nuvens na região), essa medição é feita uma vez por ano. Sua divulgação acontece no mês de dezembro.
Desde 2002, o sistema é digital. Para os cálculos anuais de desmatamento, o Inpe usa cerca de 220 imagens dos satélites Landsat (conduzido por agências governamentais americanas, ele utiliza satélites a 705 km de altitude que passam pelo mesmo ponto a cada 16 dias) e CBERS (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres, parceria entre Brasil e China que fornece cerca de 700 imagens por dia, distribuídas pelo Inpe a mais de 1.500 instituições brasileiras).
A avaliação realizada pelo Prodes é usada para planejamentos a longo prazo, pois demora cerca de oito meses para ser finalizada. Para ações de curto prazo, o Inpe desenvolveu em 2004 o Deter (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real), de monitoramento mensal.
O sistema usa sensores e satélites que cobrem a região num período de dois a cinco dias, mas com resolução limitada. Ele serve como um mecanismo de alerta para fiscalizações e controle de desmatamento.
Há outros dois sistemas de mapeamento: o Degrad (Degradação Florestal na Amazônia Brasileira), que monitora áreas em processo de desmatamento onde a cobertura florestal ainda não foi totalmente removida, e o Detex (Detecção de Exploração Seletiva), usado para mapear o corte seletivo e a intensidade da exploração madeireira.
O início do desmatamento da Amazônia
Autores como o biólogo norte-americano Philip Martin Fearnside afirmam que a região esteve praticamente intacta até a década de 1970, quando foi aberta a rodovia Transamazônica, incentivando a migração para a área.
Foi justamente à beira das estradas que o desmatamento se desenvolveu. Por iniciativa do governo federal, faixas de 100 km de cada lado das estradas acabaram sendo desapropriadas para projetos de colonização e agricultura. Essa zona às margens das rodovias Belém-Brasília, BR-364 (Cuiabá-Porto Velho) e PA–150 (Pará) representou 75% do desmatamento observado entre 1978 e 1994.
Trabalho do pesquisador Diogenes Salas Alves, de 2002, mostra que, de 1991 a 1997, quase 90% do desmatamento continuou a ocorrer nessas regiões à beira das rodovias.
Ao mesmo tempo, a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) passou a aprovar projetos de financiamento de grandes fazendas, o que incentivou a destruição das florestas para a abertura de pastos e áreas agrícolas.
Segundo pesquisadores, existe também uma correlação entre o desmatamento e o desempenho da economia brasileira. O índice esteve, por exemplo, em queda entre 1987 e 1991, período de recessão econômica. Em 1995, época de recuperação econômica graças ao Plano Real, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, houve um pico. Dois anos depois, porém, o desmatamento voltou a diminuir devido à queda na inflação, que fez o interesse especulativo por terras também cair.
No início dos anos 2000, as taxas voltaram a subir, e o governo lançou programas para conter o desmatamento, como o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, de 2004, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Foram criados mais de 25 milhões de hectares de Unidades de Conservação federais e homologados 10 milhões de hectares de Terras Indígenas. O próprio Deter, do Inpe, surgiu em 2004, por conta desse movimento, o que iniciou uma tendência de redução na taxa de desmatamento. Os dados obtidos do monitoramento eram enviados para Polícia Federal, Ibama e órgãos estaduais de meio ambiente.
Entre 1998 e 2014, a Amazônia Legal perdeu 19,6% de sua mata, segundo dados do Inpe. Quatro estados (Pará, Rondônia, Mato Grosso e Maranhão) corresponderam por 87,4% do desmatamento no período.
O uso dos dados do Inpe
O trabalho do Inpe permitiu a realização de iniciativas como a criação do Cptec (Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos), que gera previsões do tempo usadas, por exemplo, pela imprensa.
Contribuiu também para ações que desincentivam o desmatamento, como a que ficou conhecida como “moratória da soja”, um acordo firmado em 2006 por ONGs ambientais, como o Greenpeace, e entidades como a Abiove (Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais) e a Anec (Associação Nacional das Empresas Exportadoras de Cereais).
Por meio desse acordo, exportadores e indústrias se comprometeram a não comprar soja plantada por fazendeiros em áreas desmatadas. Essa lista de produtores “ilegais” só foi possível de ser feita por meio da análise, feita por um grupo de trabalho criado pelas entidades envolvidas, de mapas gerados pelo Inpe. A moratória ainda está em vigor em 2019.
A questão ambiental no governo Bolsonaro
O meio ambiente é uma das áreas mais sensíveis para o governo. Bolsonaro já quis, após as eleições de 2018, extinguir o Ministério do Meio Ambiente, fundindo-o com o da Agricultura. Voltou atrás por desagradar os dois lados da disputa: os ambientalistas e os ruralistas.
A política ambiental que põe em prática sob o comando do ministro Ricardo Salles, que foi diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira, é tida como “insustentável” por ambientalistas. Em maio, oito ex-ministros do Meio Ambiente de gestões anteriores se reuniram para denunciar o que classificam como “desmonte da governança ambiental” no Brasil.
O tema também preocupa líderes de outros países. Em junho, a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que pretendia conversar com Bolsonaro sobre o tema durante o encontro do G20, no Japão. “Assim como vocês, vejo com grande preocupação a questão das ações do presidente brasileiro (em relação ao desmatamento). Percebo como dramático o que está acontecendo no Brasil”, afirmou.
O embaixador da Alemanha no Brasil, Georg Witschel, reforçou a preocupação, em julho, ao jornal Folha de S.Paulo. Para ele, a questão ambiental colocava em risco o acordo entre a União Europeia e o Mercosul. “Se temos uma mensagem ao governo do Brasil, é essa: por favor, reduzam o desmatamento ilegal. Pela importância que isso tem para a agropecuária, pela luta contra as mudanças climáticas e pelo combate ao crime organizado. Mas também porque menos desmatamento ajuda no esforço de implementação do acordo”, disse.
O presidente francês, Emmanuel Macron, também tem pressionado o Brasil. No encontro do G20, em junho de 2019, disse que não assinaria acordos comerciais com o país caso o governo brasileiro saísse do acordo climático de Paris.
Bolsonaro respondeu em 4 de julho. Nem Macron nem Merkel tinham, segundo ele, “autoridade para discutir políticas de meio ambiente para o Brasil”. Sua fala ocorreu um dia após o ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, afirmar que os índices de desmatamento eram manipulados.
“Nós temos muito mais da metade da Amazônia intocada. E os países que nos querem cobrar o comportamento que eles acham correto nunca seguiram esse comportamento. O maior preservador de ambiente do mundo é o Brasil”, declarou Heleno à BBC News Brasil.
ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto informava que a moratória da soja havia durado até 2010. Ela foi renovada naquele ano e ainda vigora em 2019. A informação foi corrigida às 18h30 de 31 de julho de 2019.
Fonte: Nexo