O Agro é Tudo: dos patógenos às comorbidades
Desde os chamados baby boom e explosão demográfica, termos que por si só indicam o terrorismo ideológico com que se procurava defender o mundo da ameaça que parecia representar os pobres marchando com bandeiras vermelhas como se viu na China em 1949, o mundo experimentou uma verdadeira transformação sociometabólica. Desde então, assistimos ao mais profundo processo de desterritorialização de camponeses e de povos originários da história da humanidade, e a superação do contingente populacional urbano do planeta frente ao rural entre 1960 e 2015, através da revolução verde e do que, mais tarde, seria chamado de agribusiness (3).
Esse novo modo de distribuição da população rural-urbana implica enormes transformações metabólicas. Com maior proporção da população se concentrando em assentamentos urbanos, onde a produção de alimentos é limitada, suas demandas passaram a ser supridas por uma profunda revolução nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia, com amplo uso de máquinas movidas a combustíveis fósseis. Assim, a produção de alimentos passa a ser feita, cada vez menos, através de uma agricultura com base na tração animal e na mão de obra intensiva, baseada na fotossíntese do Sol nosso de cada dia e, cada vez mais, baseada nos combustíveis fósseis que derivam da matéria orgânica fotossintetizada há milhões de anos, portanto, do Sol de ontem. Esse modo de produção de alimentos está longe de ser a única opção que se colocava no horizonte, como indicam respeitados estudos (REGANOLD, 2016) (4) que mostram que essa produção de biomassa poderia ser feita não subordinada a uma lógica capitalista, como a que comanda o atual modo agrário/agrícola de produção.
A energia que move o poder tecnológico do atual modo de produção agrário/agrícola está nos combustíveis fósseis que, com suas moléculas de carbono, potencializam o trabalho efetuado pelas máquinas que substituem a energia animal e humana. Chamamos a atenção que a memória histórica do uso da energia animal e humana na agricultura se mantém na própria unidade de medida da potência das máquinas, o HP, que são equivamentes de cavalo (Horse Power) (5). Elmar Altvater chamou o capitalismo de um modo fossilista de produção (Altvater, 1995) (6) . Assim, chegamos ao cerne da questão. Esses outros modos tradicionais, não-capitalistas, de produzir alimentos e energia em geral, se baseiam na fotossíntese do tempo presente e no trabalho humano mais intensivo e complexo daqueles que a manejam.
Não olvidemos que antes da expressão machine se generalizar, esses mesmos equipamentos eram designados, em inglês, como saving labour, como aquilo que poupa trabalho, o que, sob o capitalismo, não significa necessariamente mais conforto para quem trabalha. O uso de máquinas visa fazer com que cada trabalhador que as opere produza em menos tempo o equivalente ao seu salário, o que vale dizer, produza mais trabalho não pago e um maior volume de produção por hora/área trabalhada a ser capturado como mais valia enquanto produção de mercadorias. Em suma, sob o capitalismo a riqueza é vista de modo abstrato, enquanto equivalente geral, como lucro medido em dinheiro, o que está longe de ser um modo de produção/reprodução da existência universal da humanidade.
Nesse processo de substituir trabalho vivo pelo trabalho morto (máquinas, por exemplo), o desemprego está sempre no horizonte em suas diversas modalidades, seja enquanto superpopulação relativa ou, como hoje, já indicando uma condição nova, de mão de obra descartável sem perspectivas de emprego diante da revolução, em curso, nas relações sociais e de poder mediadas pela tecnologia. Assim, o uso criativo da fotossíntese nossa de cada dia e intensivo de mão de obra, que capitalisticamente seria uma desvantagem, se apresenta como uma virtude desses outros modos não-capitalistas de produzir alimentos e energia em geral. Para que se tenha uma ideia desse potencial registre-se, por exemplo, que um hectare de floresta na Amazônia tem uma produtividade média anual de 40 toneladas de biomassa por hectare que vem sendo inteligentemente manejada há, pelo menos, 10.000 anos pelos mais diversos povos indígenas e há séculos por camponeses ribeirinhos e quilombolas. Recentemente, muitos camponeses migrantes de várias regiões brasileiras vêm se inspirando nessas práticas milenárias e centenárias na construção de sistemas agroecológicos agroflorestais.
A revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) verde que se impôs desde os anos 1950/60 indica no próprio nome seu caráter ideológico, haja vista ter sido criada contra a chamada revolução vermelha que, naqueles anos pós-guerra, parecia instigar os explorados e oprimidos, famintos, à revolução social e política, como se viu na China em 1949. Assim, frente ao problema da fome e da miséria, em lugar de uma revolução social e política, uma revolução vermelha, se ofereceu uma revolução, verde, por meio da tecnologia (7).
Com a expulsão de camponeses e de povos originários, gigantes corporações agroindustriais passaram a assumir grande parte da produção, processamento e distribuição de alimentos e transformaram múltiplas culturas alimentares que a humanidade desenvolvera desde tempos imemoriais num regime alimentar corporativo (8), imposto à escala planetária com sua produção agroquímica e seus alimentos ultraprocessados e difundidos com o auxílio dos grandes meios de comunicação que vão fazer, até mesmo, com que o leite industrializado, em pó, seja mais atrativo que o leite materno.
Destaque-se o papel da ciência nutricional de enfoque reducionista, surgida em simbiose com o sistema alimentar moderno, que sugeriu ainda a substituição de formas naturais de gorduras, como banha, manteiga, óleos de coco e palma, por óleos de soja, gordura hidrogenada e margarina e, mais recentemente, a introdução da soja na dieta como fonte de proteína e cálcio. A hidrogenação é um processo industrial que permite a conversão de óleos de diferentes origens, animal ou vegetal, em um produto único e uniforme, para aumentar a sua durabilidade e, ainda que em sacrifício à saúde humana, possa permanecer mais tempo nas gôndolas dos supermercados (MINISTÉRIO da SAÚDE, 2008: 80) (9) e esperar para realizar, na sua venda, a mais valia, que é seu objetivo maior. Assim, o valor de troca de um alimento se sobrepõe ao seu valor de uso, para lançarmos mão de conceitos aristotélicos recuperados por Karl Marx (10) . Assim, desde a ponta do consumo, a indútria de alimentos ultraprocessados incide sobre a conformação de hábitos alimentares da população angariando ampla adesão popular em razão da expansão, também recente, das grandes redes de distribuição11, os super e hípermercados modernos, com seus produtos subjetivamente embalados, o que nos faz imaginar o quanto o verbo embalar realmente nos remete tanto ao movimento de embalar uma criança levando-a ao colo para dormir quanto às embalagens das mercadorias, cada vez mais atrativas ao consumo para que possamos, assim, embalados, dormir e sonhar com o “baú da felicidade”.
Em nome do progresso e do desenvolvimento, na outra ponta, a da produção, ecossistemas e agroecossistemas tradicionais vão sendo destruídos e substituídos por monoculturas genéticas de plantas, boa parte destinadas à alimentação de animais criados igualmente enquanto monocultivos genéticos, como assinala Diana Aguiar (12) :
A criação de animais em larga escala está estruturada pela padronização genética, multiplicando indivíduos – idênticos ou muito similares – de raças selecionadas em razão da performance produtiva, muitas vezes exóticas ao lugar de criação. Essas “monoculturas genéticas” removem as contenções imunológicas que em populações animais diversas desacelerariam as transmissões. Sobretudo no caso de suínos e aves, soma-se a isso o fato de que o abuso de antibióticos (13) e antivirais (para prevenir doenças) (14), gera gradativamente resistências cada vez mais fortes, além de uma população animal não só quase idêntica, mas imunodeprimida: uma receita explosiva para a disseminação de doenças. Como se não bastasse, a criação de animais em situação de alta densidade – além de quase idênticos e imunodeprimidos – representa uma verdadeira “fábrica de vírus” (AGUIAR, 2021: 09).
Estamos diante de processos que industrializam a agricultura e a criação animal e, por isso, bem podem ser chamados de fábricas de vírus e não só de grãos e carnes.
Neste sistema geneticamente homogeneizado e, em uma situação extrema mas não pouco comum, de criação em confinamento, micro-organismos diversos como bactérias, fungos e vírus, entre outros, que estavam relativamente controlados em ecossistemas e agroecossistemas biodiversos, equilibrados e complexos, se transformam em patógenos, em zoonoses e doenças humanas. Tudo indica que esse processo ocorrera em uma província da China, em 2003, com a SARS e, em 2019, em outra localidade chinesa, com o novo Coronavírus e a pandemia que ora nos assola.
Esse modo de vida, de produção e consumo, com sua ideologia agroalimentar, nos oferece respostas imediatas para problemas por ele criados. Homogeneização no lugar de sistemas complexos, degeneração física no lugar de saúde e, quando muito, para os privilegiados, bem-estar no lugar de um bem con-viver15 ou do homem novo, na expressão de Che Guevara. Nesse mundo atual marcado por uma maior produtividade, salta aos olhos a permanência da fome e da desnutrição, ao lado dos crescentes índices de doenças crônico degenerativas associadas à hábitos alimentares. No front entre mundos, vemos alimentos de qualidade sanitária duvidosa, pelo uso amplificado de agroquímicos e transgenia, industrialmente processados com excessos de aditivos químicos, gorduras, açúcares e sal, e com carências em fibras, minerais e vitaminas.
Nesse momento de pandemia, as populações mais vulneráveis e que mais vão a óbito são aquelas acometidas por comorbidades. Entre essas doenças que mais fragilizam os afetados pela Covid 19 encontramos a obesidade, o diabetes, a hipertensão e tipos de câncer relacionados a este regime alimentar que se impôs à humanidade pelas grandes
corporações.
No front onde se encontram/confrontam mundos distintos, vemos ecossistemas e agroecossistemas sendo destruídos e monoculturas genéticas de plantas e animais sendo estabelecidas, animais transitando entre mundos e, com eles, fungos, vírus e bactérias que viviam naturalmente em outros mundos de vida, se transformando em patógenos e zoonoses. Tudo isso numa ponta e, na outra, comorbidades geradas, em grande parte, pelo mesmo regime alimentar. De ponta a ponta vemos um padrão de saber (“o agro é tech”) e de poder (corporativo) em caos. A pandemia é parte desse colapso sociometabólico global.
Assim, desde o interior da porteira, como se costuma falar no mundo rural, até o prato do consumidor o agro, além de ser pop, é tech, é tudo, como de fato o é; desde os patógenos-zoonoses até as comorbidades. Sim, o “o agro é tudo”, e de ponta a ponta, sendo mais que um slogan publicitário como nos vem sendo apresentado.
A pandemia nos convoca a refletir criticamente sobre esse modo de produzir e de comer que nos é imposto e que, pouco a pouco, nos envolve enquanto espécie humana no seu círculo perverso de gerações de agrotóxicos cada vez mais potentes e necessários para combater as novas gerações de variantes de vírus, de bactérias e de fungos que resistem às gerações cada vez mais potentes de agrotóxicos. Uma nova indústria decola nesse sistema alimentar-químico-farmacêutico subordinada ao mundo financeiro e nos promete uma nova vacina cada ano, agora não mais só para combater o influenza, mas o novo Coronavírus e suas variantes.
Os limites farmacológicos para frear este círculo parecem indicados, afinal, não há vacinas para todos, pelo menos no tempo necessário para que muitas vidas sejam poupadas e para conter o surgimento de variantes, e possivelmente, de novas zoonoses pandêmicas. Num mundo globalizado, a aldeia é mesmo global e ninguém estará seguro se não estiverem seguros os africanos, os latino-americanos, os indígenas e tantas outras populações ameaçadas em tantos pontos do globo, que somos todas e todos. E, mais, se não estivermos em nossas aldeias, em nossos territórios com nossas territorialidades e modos de viver, de produzir e de nos alimentar dignamente, seja no campo, seja na cidade.
Notas
(3) A população total do planeta entre 1960 e 2015 aumentara de 3.2 bilhões de habitantes para 7.2 bilhões (+125%), a população urbana passara de 1.4 para 3.8 bilhões (+ 171%) e a população rural de 1.8 para 3.4 bilhões (+ 89%).
(4) Como o Organic agriculture in the twenty-first century, relatório publicado em 2016 sob a coordenação do professor John P. Reganold, da Washington University, Estados Unidos. REGANOLD, J., WACHTER, J. Organic agriculture in the twenty-first century. Nature Plants 2, 15221 (2016). https://doi.org/10.1038/nplants.2015.221
(5) A expressão cavalo-vapor corresponde a uma unidade de medida empregada para classificar a potência de motores de combustão interna. O termo HP (Horse Power) foi criado ainda no final do século XVIII por James Watt para comparar a produção das máquinas a vapor com a potência dos cavalos de tração.
(6) ALTVATER, Elmar. 1995. O Preço da Riqueza. Pilhagem Ambiental e a nova (des)ordem Mundial. Unesp, São Paulo.
(7) Lembremos do espectro de insegurança alimentar que rondava a Europa durante e no pós- Guerra Mundial, que lançou o tema da fome como tema urgente no mundo, e do impacto da Revolução Chinesa de 1949 com a marcha de camponeses empunhando bandeiras vermelhas em luta contra a fome no imaginário social da época.
(8) Regime alimentar é um conceito que diz respeito às regras estabelecidas por arranjos político-institucionais e ideológicos que influenciam a construção de hábitos alimentares cotidianos em todo o mundo. A esse respeito destacamos a originalidade analítica de Harriet Friedmann, professora da Universidade de Toronto, referência no tema pela elaboração da teoria da conformação de um Sistema Alimentar Mundial e seus regimes. FRIEDMANN, Harriet. From colonialism to green capitalism: social movements and the emergence of food regimes. In: BUTTEL, F. H.; MCMICHAEL, P. (ed.). New directions in the sociology of global development: research in rural sociology and development. Oxford: Elsevier, 2005. v. 11, p. 229-267.
(9) Segundo o Ministério da Saúde “esse tipo de gordura demora mais tempo para estragar e ficar rançosa. Aumenta, portanto, o tempo de conservação dos produtos, principalmente nos climas tropicais, como o do Brasil” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008: 80). MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 1. ed., 1. reimpr. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
(10) CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do Labirinto. v. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
(11) “Nas duas últimas gerações, o sistema brasileiro de abastecimento de alimentos transformou-se: antes predominantemente primário ou composto por produtos minimamente processados e comprados em pequenos comércios varejistas e atualmente produtos pré-preparados e embalados, comprados em grandes redes de supermercados” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008: 141).
(12) AGUIAR, Diana. Dossiê Crítico da Logística da Soja: Em defesa de alternativas à cadeia monocultural. Rio de Janeiro: FASE, 2021.
(13) De acordo com Silvia Ribeiro (2020), estima-se que de 70 a 80% dos antibióticos do mundo sejam utilizados na criação industrial de animais. Entrevista: Não joguem a culpa no morcego. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597799-nao-joguem-a-culpa-no-morcego-entrevista-com-silvia-ribeiro . Acesso: 29 abr. 2021.
(14) E, de quebra, promover a aceleração da engorda de animais (RIBEIRO, 2020).
(15) Os povos indígenas, em particular, vêm oferecendo outros horizontes de sentido para a vida como alternativa ao desenvolvimento e não como alternativa de desenvolvimento. Com diversos nomes diferentes (Sumaq Qamaña, Sumak Kausay, Ubuntu) falam de bem con-viver e não de bem-estar. Dentro de outra tradição, no contexto latino-americano, o revolucionário Ernesto Che Guevara propugnava pela invenção de um homem novo em lugar do homo economicus.
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