“Não é possível explicar o Brasil sem floresta”
“A Mata Atlântica assegura a qualidade e a quantidade de água para 112 milhões de pessoas, quer dizer, dois terços da população brasileira dependem da floresta para consumir água de qualidade”, informa Clayton Ferreira Lino, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Para garantir a sustentabilidade das florestas tropicais, não basta criar unidades de conservação isoladas, é preciso investir em preservação territorial, protegendo as florestas “nos contextos em que elas estão inseridas”, defende Clayton Ferreira Lino, em entrevista concedida à IHU On-Line, por telefone. “Quando se fala em proteger a Mata Atlântica hoje, tenta-se proteger os remanescentes desta floresta. Entretanto, essas áreas protegidas, às vezes, são pensadas como ilhas isoladas em meio a uma paisagem destruída. Neste contexto ambiental precário, elas não conseguem sobreviver ou conservar a biodiversidade”, argumenta.
No Brasil, a Mata Atlântica é um exemplo peculiar de floresta fragmentada, que se estende do litoral do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. Segundo Lino, parte dos remanescentes da floresta está localizada em áreas privadas e desprotegidas. Portanto, para recuperar esses ambientes, é preciso “criar corredores entre eles, desenvolver atividades que não aumentem a devastação e, se possível, integrar e conectar estes fragmentos entre si e com áreas protegidas. Precisamos pensar a floresta como um todo, ou seja, pensar em unidades de paisagem a serem conservadas, restauradas e reconectadas”, ressalta.
Clayton Ferreira Lino é formado em Arquitetura pela Universidade Mackenzie de São Paulo e especialista em Conservação de Manejo Florestal. Atualmente, preside o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor defende a preservação territorial das florestas, especialmente da Mata Atlântica, e não apenas de unidades isoladas de conservação. Pode nos explicar essa visão territorial? Quais os desafios neste sentido?
Clayton Ferreira Lino – O caso da Mata Atlântica é emblemático para explicar essa visão territorial. A floresta era uma das maiores do mundo, entretanto, na visão desenvolvimentista brasileira, ela atrapalhava o crescimento do país. O desenvolvimento brasileiro foi pensado por meio da agricultura, da pecuária, das indústrias, e, nesse contexto, a floresta era utilizada como fonte de matéria-prima. Há mais de 500 anos, os portugueses exploraram o Pau-Brasil e outros recursos florestais. Portanto, o primeiro ciclo econômico brasileiro aconteceu via um processo predatório dessa espécie. Esta visão de desenvolvimento se manteve ao longo dos anos, mudando apenas a planta a ser explorada: araucária, palmito jussara, imbuia. Como atrapalhavam a extensão agrícola e pecuária, as florestas não faziam parte de um zoneamento em que se buscava garantir a qualidade da água, da paisagem, do sombreamento de solo. A urbanização também contribuiu para a destruição da mata. O poder público nunca planejou a construção de casas e cidades onde existia uma fazenda ou terras de plantio. A opção foi “passar em cima da floresta”. Ou seja, as áreas florestais sempre foram consideradas improdutivas e eram vistas como “terra de ninguém” para ser ocupada.
Preservação integral
Quando se fala em proteger a Mata Atlântica hoje, tenta-se proteger os remanescentes desta floresta. Entretanto, essas áreas protegidas, às vezes, são pensadas como ilhas isoladas em meio a uma paisagem destruída. Neste contexto ambiental precário, elas não conseguem sobreviver ou conservar a biodiversidade. Por isso, é necessário pensar as áreas protegidas nos contextos em que as florestas estão inseridas. A Mata Atlântica está fragmentada e localizada também em áreas privadas, desprotegidas. Se quisermos conservar o restante da floresta, precisamos primeiramente articular a sociedade com os proprietários rurais, com os municípios e reconectar estes fragmentos. Ou seja, precisamos criar corredores entre eles, desenvolver atividades que não aumentem a devastação e, se possível, integrar e conectar estes fragmentos entre si e com áreas protegidas. Precisamos pensar a floresta como um todo, quer dizer, pensar em unidades de paisagem a serem conservadas, restauradas e reconectadas.
Manejo sustentável
Não é possível transformar todos os fragmentos e remanescentes de Mata Atlântica em área protegida do Estado. Então, é preciso envolver a sociedade e para tal, além de educação ambiental, conscientização e mobilização, é preciso garantir benefícios aos donos de terras que optarem pela preservação das florestas. Não há condições de colocar um fiscal em cada fragmento da Mata Atlântica. Portanto, o fiscal tem que ser o próprio proprietário, os moradores da região. Também é preciso pensar em mosaicos de áreas protegidas, porque às vezes se tem um conjunto de áreas protegidas como se cada uma fosse um território isolado. Essa ideia de mosaico propõe uma gestão integrada das áreas protegidas, independente do município ou do estado em que a floresta esteja localizada. Somente assim será possível atuar politicamente para a conservação dos territórios.
IHU On-Line – Como esses corredores ecológicos terrestres e marinhos podem manter a preservação da Mata Atlântica?
Clayton Ferreira Lino – O corredor de biodiversidade terrestre liga um fragmento a outro, ou uma área protegida a outra. A função dele é aumentar a possibilidade de a natureza desenvolver e manter suas funções para não perder espécies. O corredor hídrico está ao longo de um rio e integra-se junto à mata. Nesse sentido, o corredor tenta recompor a paisagem.
Existem também os corredores das reservas da biosfera. Essas reservas são áreas reconhecidas internacionalmente pelo Programa Homem e Biosfera, da Unesco. No Brasil, existem sete reservas da biosfera, basicamente uma para cada grande bioma brasileiro: Amazônia Central ; Cerrado; Caatinga ; Pantanal ; Cinturão Verde da cidade de São Paulo, que é parte integrante da grande reserva da biosfera da Mata Atlântica, mas que tem sua especificidade; Serra do Espinhaço ; e Mata Atlântica, que vai do Ceará ao Rio Grande do Sul, e é a maior reserva da biosfera da rede mundial da Unesco. Ela envolve hoje 16 dos 17 estados que possuem Mata Atlântica, e tem 78 milhões de hectares, sendo que 700 mil hectares estão protegidos. Esta grande reserva da biosfera tem um sistema de gestão formado por um conselho nacional, por comitês estaduais e vários outros colegiados. Esses órgãos são formados por cidadãos comuns e por representantes do governo. Portanto, trata-se de uma grande articulação para conservar a natureza, promover o desenvolvimento sustentável e o conhecimento tradicional e científico dos ecossistemas que ali vivem.
IHU On-Line – Como vê as mudanças no novo Código Florestal em relação às áreas de preservação permanente das florestas? O que atual texto revela sobre a posição ambiental brasileira?
Clayton Ferreira Lino – O atual texto do Código Florestal demonstra que alguns setores da sociedade ainda são muito retrógrados e não pensam o Brasil no século XXI. Pelo contrário, continuam pensando o país do século XIX. Para eles, a discussão atual é sobre a questão de conservação versus desenvolvimento. Esse debate já está ultrapassado: não é possível fazer conservação sem desenvolvimento, nem desenvolvimento sem conservação. No texto do Código Florestal prevalece a ideia de crescimento econômico a qualquer custo, de uma forma predatória e imediatista. Infelizmente, esse pensamento ainda é muito expressivo no Brasil, porque os setores que defendem essa política detêm o poder econômico e estão aliados ao agronegócio, um dos setores mais ricos do país. Além disso, muitos deputados não têm compromisso com a questão socioambiental
Código para a agricultura
O Código Florestal foi feito para a agricultura e não para o meio ambiente. Em 1965, o primeiro Código Florestal Brasileiro objetivava conservar a qualidade do solo, da água, do clima para a propriedade rural, para evitar riscos de perdas de safras por enchentes, desmoronamentos. Portanto, a legislação tem uma base técnica científica inquestionável. Se alguém retirar a mata ciliar da beira do rio, por exemplo, é obvio que vai gerar erosão, assoreamento e, consequentemente, aumentarão as enchentes. O relatório do deputado Aldo Rebelo trata a questão ambiental como se fosse uma equação matemática: tal área é útil ou inútil. Para ele, proteger encostas significa perder área de cultivo agrícola e pecuário; diminuir a proteção na beira dos rios significa colocar mais áreas para a produção, como se a natureza não tivesse limites.
O atual texto também tenta reduzir de 30 para 15 metros a beira dos rios. Vale lembrar que as pessoas que morreram nas enchentes em Petrópolis e Teresópolis moravam dentro deste limite de 30 metros. Então, ao reduzir essa medida, aumenta-se o risco.
IHU On-Line - Qual a importância das florestas como patrimônio natural e cultural?
Clayton Ferreira Lino – As florestas tropicais ocupam pouco mais de 7% da superfície terrestre, mas abrigam mais de 50% de todas as espécies que existem no Planeta. Elas são o grande reduto da diversidade biológica. Como parte da natureza, dependemos dela para tudo: construir nosso abrigo, alimentos, remédios. Costumo dizer para as pessoas visitarem a Mata Atlântica nas suas casas: basta abrir a geladeira para encontrar o caju da Mata Atlântica, maracujá, licor de jabuticaba, pizza de palmito – a palmeira do palmito se chama jussara e é uma planta da Mata Atlântica. Os móveis e as cadeiras são feitos de araucárias da Mata Atlântica. A floresta está no nosso dia a dia e não percebemos. Além disso, a Mata Atlântica assegura a qualidade e a quantidade da água para 112 milhões de pessoas, quer dizer, dois terços da população brasileira dependem da floresta para consumir água de qualidade. A Mata Atlântica é uma das mais belas florestas do Planeta. Regiões como Rio de Janeiro, Fernando de Noronha, sul da Bahia, Foz do Iguaçu têm Mata Atlântica. A floresta é um patrimônio extremamente rico e precisa ser valorizado como tal. Ela é essencial para as nossas vidas. Não é possível explicar o Brasil sem floresta. Costumamos dizer que este é o país do futebol, do carnaval, da praia, e esquecemos de falar que também é o país da floresta. Nossa própria identidade cultural está associada a este tipo de ecossistema.
IHU On-Line - É possível estabelecer uma agenda comum para a conservação das florestas brasileiras?
Clayton Ferreira Lino – Sim. Esta é a nossa única opção. O Brasil precisa dessa agenda comum, precisa amadurecer em termo de compromissos ambientais. Temos de parar de desperdiçar este patrimônio gigantesco. Precisamos dialogar, ter bom senso, compromisso com o futuro. No próximo ano, o país vai sediar a Rio+20 e espero que até lá possamos mostrar avanços efetivos na área florestal. O Brasil teve grandes avanços nestas últimas décadas e criou áreas protegidas. Contudo, vive agora um momento de pressão e retrocesso.
Fuente: Instituto Humanitas Unisinos