Midia e transgênicos: ¿tecnocracia ou democracia?, por Cláudio Cordovil
Se os jornalistas científicos considerassem as ciências sociais e a multidisciplinaridade como objetos de seu interesse, talvez a cobertura nacional sobre a polêmica envolvendo transgênicos não fosse tão precária
Como já dissemos aqui em outra oportunidade, sustentados pela opinião de especialistas, tal controvérsia tem menos a ver com detalhes técnicos do que com as dificuldades éticas e políticas inerentes a novas tecnologias [veja remissão abaixo para o artigo "Muita informação, pouco conhecimento"]. Quando se trata de inovações tecnológicas, aspectos de ignorância e incerteza científicas da parte dos próprios pesquisadores estão sempre presentes, ainda que os mesmos hesitem em admiti-los. Assim, causa estranheza, que, em nome do interesse público, se delegue a última palavra de tais polêmicas a cientistas.
O presidente Lula anunciou que o estudo para a liberação dos transgênicos será amparado "em um debate sereno e científico sobre o assunto". Supõe-se que "científico" aqui se refira a "subsidiado por especialistas que estão fora do campo das Ciências Humanas". Se o governo espera basear sua decisão em "sólidas evidências científicas", é necessário advertir que vai na contramão dos mais importantes estudos multidisciplinares sobre alimentos transgênicos. E talvez o Reino Unido seja nesse momento a região do mundo com maior expertise sobre o trato político da questão – passaram por uma doença da vaca louca, que preparou o terreno para os temores dos britânicos com relação a transgênicos.
"A ciência não tem condições de fornecer respostas definitivas a questões envolvendo risco tecnológico", garante Andrew Stirling, professor da Unidade de Pesquisa de Política Tecnológica e Ciência da Universidade de Sussex e um dos autores do estudo Repensando o risco, realizado a pedido da Comissão Européia. Para Stirling, a ciência é um elemento essencial, mas não suficiente, na tomada de decisões. "Todas as conclusões científicas relacionadas ao risco englobam pontos de vista externos. Distintas opiniões, mas igualmente razoáveis, sempre levam a conclusões radicalmente diferentes. A verdadeira função da ciência deve ser explorar sistematicamente o fato de que distintos pontos de vista levam a resultados diversos e não em afirmar um conjunto estreito e particular de pontos de vista disfarçados de verdade científica", sentencia Stirling.
"Embora não conheça os estudos que estão sendo conduzidos no Brasil, devo dizer que o governo britânico endossou afirmações semelhantes no passado, com base em uma má concepção da noção de risco. Qualquer que seja a qualidade da ciência praticada em laboratórios, é impossível prever os efeitos de ingestão ou plantação em larga escala de alimentos transgênicos ou organismos geneticamente modificados. Simplesmente porque não se consegue abarcar todas as variáveis de pesquisa em um laboratório", garante a bióloga e veterinária Sue Mayer, membro da Comissão de Biotecnologia, Meio Ambiente e Agricultura do governo britânico e diretora da ONG Genewatch.
Incertezas potenciais
Tudo isso aponta para um erro de foco, tanto da mídia, como dos tomadores de decisão. Para se constatar que cientistas não são os mais competentes avaliadores de riscos tecnológicos basta se recordar do efeito dos gases CFC sobre a camada de ozônio. Nenhum pesquisador foi capaz de prevê-lo. Ou ainda, para não ir muito longe, recorramos à vaca louca. Durante 10 anos o governo britânico, amparado na opinião de cientistas, garantiu que não havia nenhuma prova de que a doença fosse transmissível para o homem. Em 20 de março de 1996, o secretário de Saúde anunciou ao Parlamento britânico a existência dos dois primeiros casos da versão humana da doença.
"Os atuais enfoques negligenciam a base científica necessária para se lidar com a ignorância e falham em reconhecer que conjecturas subjacentes usadas no início do processo de avaliações de risco podem afetar significativamente o resultado", explica Andrew Stirling. "Os políticos devem tomar cuidado em não retratar uma ‘ausência de evidência’ de riscos como uma ‘evidência de ausência’ dos mesmos." Foi exatamente o que fez George Bush quando, ao acusar a União Européia de contribuir para a fome na África, afirmou que não havia evidência de riscos de transgênicos.
Mas atualmente já existem investigações que pretendem combinar percepções da sociedade sobre controvérsias ambientais com ortodoxas e convencionais avaliações científicas do risco. O novo método constrói mapas dos debates em curso na sociedade sobre assuntos polêmicos de forma a garantir a transparência na tomada de decisões públicas. Trata-se dos estudos de mapeamento multicritério, que combinam pragmáticas avaliações de risco tecnológico, tão caras aos cientistas – que convencionalmente subsidiam tomadas de decisões de políticos – e júris de cidadãos, grupos focados ou conferências de consenso, estimadas pelos cientistas sociais. "Eles representam um equilíbrio entre a precisão artificial da ferramenta analítica e as obscuras expressões da participação pública", define Andrew Stirling,
Tais iniciativas poderiam representar o fim do abismo entre o "populacho ignorante" sobre alimentos transgênicos – como querem os doutos mais ortodoxos – e os sábios cientistas. Ou se preferir, permitir trocar a tecnocracia pela democracia, na real acepção do termo. Note-se que aqui não se fala em simplesmente colocar um "representante do povo" ou do "interesse público" em um comitê consultivo desses que por aí pululam. Tal manobra soaria como mero democratismo. O que é necessário é a provisão sistemática de informação verificável sobre a diversidade de interesses e valores que caracterizam as partes envolvidas nessa discussão. Conferências de consenso, júris de cidadãos e grupos focados, mencionadas anteriormente, já estão relativamente bem consolidadas no marco da avaliação reguladora de riscos tecnológicos em certos países.
Phil MacNaghten, pesquisador do Instituto do Meio Ambiente, Filosofia e Políticas Públicas da Universidade de Lancaster, e um dos autores do estudo Mundo incerto: organismos geneticamente modificados, alimentos e atitudes públicas na Grã-Bretanha, em entrevista inédita, nos revela que "certificações oficiais de segurança, provenientes da indústria ou governo, não podem mais ser vistas como garantidoras da convicção pública; em um mundo onde as pessoas parecem cada vez mais cautelosas e céticas sobre ‘fatos’, elas dependem mais e mais da opinião de outras pessoas". Mundo incerto, publicado em 1997, previu com dois anos de antecedência a polêmica que envolveria os transgênicos no Reino Unido. Eis um trecho da entrevista:
A imprensa brasileira, especializada ou não, tem baseado fortemente a cobertura sobre transgênicos na opinião de cientistas. Está é uma abordagem adequada?
Phil MacNaghten – O estilo de reportagem brasileira parece refletir a experiência britânica observada em 1997. Reflete o sentimento de que os transgênicos sejam principalmente uma questão científica e não propriamente um problema político, social ou de consumidores. A maneira como o assunto tem sido tratado no Reino Unido, nos últimos anos, mudou na medida em que jornalistas começaram a ver a questão como que relacionada a estas dimensões mais amplas. Além disso, em centros de ciências sociais como o nosso, a questão de "educar o público" (a resposta tradicional) tem sido deslocada para a necessidade de "educar os cientistas". Os pesquisadores precisam reconhecer as dimensões sociais e políticas da biotecnologia. Eles precisam de mais oportunidades para refletir sobre implicações sociais mais abrangentes de sua pesquisa. Em relação a estas questões, os cientistas sociais têm argumentado que existe a necessidade de se reverter o ônus da prova. A falta de evidência de dano não é uma garantia suficiente de segurança pública. Advogados especializados em direito ambiental agora argumentam que aqueles que colocam seres humanos em risco, através de novas tecnologias ou substâncias químicas, devem provar que qualquer efeito adverso aparente não foi causado por suas ações. Atualmente, o que acontece é que as vítimas devem provar as causas e os efeitos, enquanto que os criminosos escapam da responsabilidade.
Além disso, precisamos de um reconhecimento mais amadurecido das incertezas envolvidas na ciência da biotecnologia. De fato, quanto mais a ciência se detém nas incertezas potenciais envolvidas na modificação genética maior o alcance das dúvidas com que se defronta. Como diretor do Instituto do Meio Ambiente, Filosofia e Políticas Públicas da Universidade de Lancaster, o professor Brian Wynne argumenta que a investigação científica aumenta a ignorância. Por exemplo, só agora estamos começando a desenvolver uma noção "do que não sabemos que desconhecemos". Esta indeterminação estrutural apenas começa a ser reconhecida na ciência oficial. É bom que se diga que tecnologias envolvendo transgênicos não são essencialmente boas ou más em si. Dependem muito das condições sociais em que estão sendo introduzidas, com que interesses, promovendo que tipo de sociedade? O ideal democrático é desenvolver novas formas em que esses processos se tornem mais genuinamente responsáveis e coerentes.
Cláudio Cordovil: jornalista científico
Fuente: Observatorio de Imprensa
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc010720031.htm