Mapeamento de experiências em comida de verdade destaca aprendizados sobre o abastecimento alimentar
Iniciativa realizada pela Ação Coletiva Comida de Verdade mapeou 310 experiências em todo o Brasil
Quando a gente pensa na alimentação, não pensa só no comer em si. O alimento tem uma relação muito grande com o nosso território. É por isso que, nesse processo de resistência, a gente vem estimulando redes de agricultores e agricultoras que trazem os seus produtos do sítio e espaços onde as pessoas podem pegar a alimentação saudável, do campo, num circuito muito pequeno e que tem menos risco de contaminação inclusive para a população da cidade”. A centralidade do alimento quanto ao território, à saúde e à geração de renda é trazida pela agricultora Roselita Vitor, integrante da coordenação do Pólo da Borborema, a partir da experiência da Rede de Quitandas da Borborema, no estado da Paraíba.
Mapeamento de experiências em comida de verdade destaca aprendizados essenciais
sobre o abastecimento alimentar no Brasil
A Rede de Quitandas da Borborema, voltada à expansão e diversificação dos canais curtos de comercialização dos produtos agroecológicos, é uma das 310 experiências em comida de verdade cadastradas na plataforma Agroecologia em Rede (AeR) a partir do mapeamento realizado pela Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal (DF). A iniciativa, conduzida por uma articulação de 13 organizações comprometidas com a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional, teve como objetivo mapear ações que surgiram ou foram ampliadas em resposta à crise alimentar ocasionada pela pandemia da Covid-19, para favorecer a produção, acesso e distribuição local de alimentos.
São iniciativas protagonizadas por organizações populares, coletivos, redes e movimentos sociais, do campo e da cidade que, durante a pandemia, têm garantido o acesso à comida de verdade. Cadeias curtas de abastecimento, redes de solidariedade, distribuição de cestas básicas, aprimoramento de aplicativos para organizar a demanda e a distribuição, fortalecimento de mercados institucionais, incidência para que o poder público assuma com urgência suas obrigações, elaboração de documentos com orientações de ações, mapeamentos, campanhas para ações solidárias nas mais diversas frentes foram algumas das iniciativas cadastradas na plataforma do AeR.
Esses tipos de reação à crise sanitária e, também, política, indicam que é possível construir ações estratégicas que se apoiam numa base organizativa já existente, mas muitas vezes pouco visibilizada, e que podem vir a se conformar como ações estruturantes de sistemas agroalimentares sustentáveis.
Territorialidade e tipos de experiências
Das experiências mapeadas, 44 se localizam na região Norte do país, enquanto 49 podem ser encontradas na região Nordeste, 43 na região Centro-Oeste, 66 no Sudeste e 108 na região Sul. Os números dão a dimensão da distribuição territorial de muitas das iniciativas de abastecimento alimentar iniciadas ou aprofundadas durante a pandemia da Covid-19 no Brasil. Ademais, as experiências exemplificam os fluxos baseados na produção local e nos circuitos curtos de abastecimento, que estabelecem relações mais justas entre os produtores e as pessoas na garantia do acesso à comida de verdade.
Do total de iniciativas cadastradas, 58,9% são relacionadas à comercialização (venda direta com entrega domiciliar, feiras, entre outros), enquanto 31% delas são ações de solidariedade junto a grupos vulneráveis impactados pela pandemia. Apenas 7,4% são frutos de políticas públicas.
“A relevância das ações de solidariedade durante todos estes meses tem relação direta não apenas com a gravidade com que a pandemia se instalou em nosso país e suas consequências, mas também com a lentidão das respostas oficiais. Nos últimos anos, as mais importantes políticas públicas de segurança e soberania alimentar foram fragilizadas, sofreram cortes drásticos de orçamento e as equipes foram desestruturadas. Além disso, esperamos por meses medidas como o auxílio emergencial e adequação de programas importantíssimos como o de alimentação escolar”, afirma Elisabetta Recine, nutricionista, docente da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Comitê Gestor da Ação Coletiva Comida de Verdade.
Motivações e estratégias
Diante de tantos desafios, o que move o surgimento dessas ações e a iniciativa das pessoas que as protagonizam? As informações levantadas pelo cadastramento destacam que 70% das experiências são motivadas pela necessidade de geração de renda, enquanto 38% pretendem contribuir para a prática da alimentação saudável e 31% visam apoiar pessoas em situações de vulnerabilidade. Estratégias para aproximação entre produtores/as e consumidores/as foram mencionadas por 14% e escoamento da produção, por 9,7%.
Para seguirem com resiliência e solidariedade potencializando a comida de verdade nos nossos pratos, as iniciativas lançaram mão de diversas estratégias. A busca por parcerias e o uso de medidas de proteção destacam-se como as principais estratégias adotadas pelas experiências. Respectivamente, 31,6% e 31% das iniciativas cadastradas aderiram a essas estratégias. Além disso, 22 outras estratégias foram apontadas no mapeamento, como o uso de tecnologia digitais, busca por novos mercados e qualificação da comunicação e trabalho.
Desafios e perspectivas
Em um país de dimensões continentais e incrível sociobiodiversidade como o Brasil, onde a comida conecta pessoas, histórias, culturas e territórios, a maneira como estão estruturados os sistemas alimentares hegemônicos é um dos fatores que intensificam as desigualdades no acesso à alimentação adequada e saudável. Com a pandemia da Covid-19, o quadro já alarmante de insegurança alimentar e nutricional se intensificou ainda mais.
Entre os principais desafios apontados pelas experiências mapeadas a partir da “Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia”, foram mencionados com maior frequência aspectos de gestão e logística (34%) e medidas de proteção contra a Covid 19 (29,8%). A organização das ações frente ao novo contexto também foi mencionada como adaptação à dinâmica (15,1%) imposta pela pandemia.
E como esperançar é a arte de resistir, a continuidade da experiência foi apontada como a principal perspectiva por 54,3% das iniciativas mapeadas, seguida de outros fatores ligados à qualificação do trabalho e à ampliação do público beneficiado e de novas parcerias. Dados como esses, coletados pelo mapeamento, são muito relevantes para análises e estudos. A capacidade de respostas e soluções apresentada pelos grupos organizados e movimentos sociais evidencia ainda mais a necessidade de fortalecimento das políticas públicas associadas à promoção do direito humano à alimentação, bem como dos conselhos de participação e políticas de incentivo à compra da agricultura familiar e à agroecologia.
Escolhas conscientes
Em um país de dimensões continentais e incrível sociobiodiversidade como o Brasil, onde a comida conecta pessoas, histórias, culturas e territórios, a maneira como estão estruturados os sistemas alimentares hegemônicos é um dos fatores que intensificam as desigualdades no acesso à alimentação adequada e saudável
Os números da Ação Coletiva demonstram a força das ações coletivas de resistência e de luta pelos modos de vida dos povos da terra, das águas, das florestas e da cidade. Falam sobre as fortes costuras tecidas por redes de solidariedade e conectadas pela comida de verdade, pela luta por segurança e soberania alimentar. São iniciativas que mostram que não só é possível transformar os sistemas agroalimentares, como essas transformações já se materializam em cada canto do país.
E como cada um(a) de nós pode contribuir para que a comida de verdade continue nutrindo corpos, famílias e sonhos? “São as decisões que a gente toma que fazem girar a roda dos sistemas alimentares. Se eu escolho alimentos agroecológicos de circuitos curtos, comprados do pequeno agricultor, eu estou incentivando esse caminho de sistema alimentar. É a consciência de que a tua escolha não é o ponto final de um processo, mas é também o início desse ciclo, uma via de mão dupla. Comer como um ato político tem a ver não só com o que você está comendo, mas com a maneira como você posiciona a comida na sua prática de convivência social”, afirma Inês Rugani, nutricionista sanitarista, docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Comitê Gestor da Ação Coletiva Comida de Verdade.
Agroecologia em Rede (AeR)
O Agroecologia em Rede (AeR) é composto por diversos mapeamentos que utilizam a plataforma para realizar pesquisas, análises e estudos sobre a agroecologia no Brasil. Por meio dos mapeamentos, é possível identificar experiências e organizações que foram sistematizadas e que trazem informações sobre as ações desenvolvidas em seus territórios.
Para saber mais sobre as experiências mapeadas pela iniciativa e com comida de verdade, é só visitar a plataforma do Agroecologia em Rede (AeR). Além destas, é possível conhecer as mais de 3.000 experiências em agroecologia sistematizadas e cadastradas por outros cinco processos mapeantes, como a Colheita dos Núcleos de Estudos em Agroecologia (NEAs) e o mapeamento dos Municípios Agroecológicos e Políticas de Futuro, entre outros.
Texto: Priscila Viana/Equipe Agroecologia em Rede
Foto de capa: Isadora Escosteguy – Iniciativa “Células de consumidores responsáveis”
Imagens e Gráficos: Patrícia Nardini
Fuente: Em Pratos Limpos