Grandes proyectos de infraestructura, conflictos y violación de derechos en la Pan-Amazonía

Idioma Portugués
País Brasil

A continuación, reproducimos el artículo de Guilherme Carvalho que analiza los procesos de expansión capitalista en la Pan-Amazonía, y cuya identificación ayudan a comprender la naturaleza del desarrollo socio-territorial en marcha en la región.

 

 

GRANDES PROJETOS DE INFRAESTRUTURA, CONFLITOS E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NA PAN-AMAZÔNIA

 

Guilherme Carvalho*

Introdução

 

Há processos que parecem se consolidar na etapa atual de expansão capitalista na Pan- Amazônia, cuja identificação nos ajuda a compreender melhor a natureza das dinâmicas socioterritoriais em andamento na região. Alguns desses elementos são facilmente percebidos, dado a forma como repercutem nos territórios e sobre as populações que neles habitam: degradação ambiental, desemprego, aumento da criminalidade e êxodo rural, por exemplo. Outros, porém, necessitam de instrumentos analíticos mais refinados para serem visibilizados posto que, refratários à luz, guardam-se protegidos por teorias fragmentadas e ideias pré- concebidas, que pouco contribuem à construção de uma análise mais apurada sobre o que está realmente ocorrendo nesta parcela da América do Sul.

 

Talvez estejamos nos debatendo com dilemas parecidos aos enfrentados pelo prisioneiro da caverna, tão brilhantemente explorados por Platão na sua obra A República: subirmos até a entrada da caverna e enfrentarmos a intensa dor nos olhos para termos uma visão mais aproximada do real ou, ao contrário, nos guardarmos na comodidade do conhecimento já obtido e tomarmos as aparências como a expressão mais próxima do mundo existente?

 

A “dor nos olhos” está relacionada à necessidade imperiosa do diálogo entre as diferentes ciências para apreendermos da melhor maneira possível o real em sua complexidade que, como nos explicou Edgar Morin (1996, p. 248), é “aquilo que é tecido em conjunto”, e que “pensar a complexidade é respeitar este tecido comum, o complexo que ele constitui, para além de suas partes”. Contudo, a “dor nos olhos” não está restrita à academia, já que os movimentos sociais também precisam abrir-se ao maior diálogo entre si para enfrentar de maneira mais conseqüente os desafios dessa complexa realidade. E ambos necessitam estabelecer canais de diálogo permanentes. O dado positivo é que parcelas crescentes da academia e de movimentos sociais engajados na construção da resistência à globalização capitalista resolveram romper os muros que os separam interna e externamente: há cada vez mais grupos de pesquisa envolvidos em trabalhos interdisciplinares e em parcerias com sindicatos, organizações indígenas e outros, bem como há mais atores sociais articulando-se em redes, fóruns e movimentos.

 

Este artigo não é a luz de que fala Platão no Mito da Caverna. Seria muita pretensão, ou mesmo devaneio total. No máximo, é a tentativa de provocar uma minúscula fresta em meio a tantas análises existentes, com qualidade reconhecida, sobre questões que consideramos importantes para a Pan-Amazônia.

 

As dinâmicas socioterritoriais na Pan-Amazônia

 

É bem verdade que no interior de cada país da Pan-Amazônia há especificidades que dão contornos particulares ao processo de expansão capitalista. A história, a geografia, as distintas formas de ocupação do território, a maior ou menor disponibilidade de recursos naturais, a composição dos segmentos que ocupam o aparelho do Estado, enfim, um leque amplo de condicionantes e/ou características influencia a forma como o capitalismo se consolida em cada nação. Todavia, se analisarmos as diferentes realidades existentes na Pan- Amazônia numa perspectiva mais ampla, naquilo em que são tecidas conjuntamente, veremos que há alguns elementos estruturantes comuns atravessando todas elas. É sobre eles que trataremos a seguir.

 

1. A fragmentação socioterritorial.

 

Quando se fala na Pan-Amazônia é muito comum que alguns pensamentos tomem de assalto as mentes da maioria das pessoas: lugar onde se situa a maior floresta tropical do planeta, quantidade expressiva de povos indígenas e concentração de riqueza natural, entre outros. Essa é, digamos, a perspectiva “positiva” sobre a região. Não obstante, os aspectos “negativos” parecem ser aqueles que acabam determinando a forma como nós, que vivemos aqui, somos vistos, bem como as medidas que precisam ser tomadas para “desenvolver” esta parcela sul-americana: região atrasada, carente de “espírito empreendedor”, desabitada, apartada dos territórios nacionais, à margem do progresso, etc. Por conseguinte, é preciso que ela seja “integrada” definitivamente ao restante dos territórios de cada país, dominada, controlada, povoada, aberta aos investimentos e aos empreendedores externos a ela, que a “civilização” lhe seja levada a fim de retirar seus habitantes da situação de atraso, que os povos indígenas sejam “incorporados” às sociedades nacionais, que seus potenciais energéticos sejam plenamente utilizados…

 

A Pan-Amazônia é estratégica porque sem ela não há qualquer possibilidade de integração econômica não somente sul-americana, mas também latino-americana. Os elaboradores e executores da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul- Americana (IIRSA) sempre reconheceram que a integração física é a primeira etapa de um projeto mais amplo, que necessitará das ditas reformas estruturais – mudanças nas legislações nacionais para facilitar a entrada de investimentos e a remessa de lucros, maior participação da iniciativa privada no provimento de serviços e na expansão da infraestrutura, flexibilização das legislações trabalhista, previdenciária e ambiental, “convergências normativas”, parcerias público-privada, etc. – para consolidar a “integração regional”. Como afirmou Silva (1997, p.13) num estudo que promoveu as bases conceituais da IIRSA, o trabalho “ao se restringir à infra-estrutura física, reconhece que ela não é condição suficiente para o desenvolvimento econômico”(1). Também de acordo com essa perspectiva, a integração econômica sul- americana é parte constitutiva do processo de globalização capitalista.

 

A bem da verdade não se trata de uma iniciativa de integração, e sim de conexão de partes dos territórios nacionais ao mercado globalizado. Portanto, diferentemente do que afirmam os defensores da IIRSA de que esta compreende a América do Sul como uma “unidade geoeconômica” (2), a mesma é essencialmente fragmentadora na medida em que somente aquelas áreas consideradas estratégicas – por sua localização geográfica, por conter recursos naturais com grande demanda no mercado internacional ou por sua relevância do ponto de vista militar, por exemplo – interessam ao grande capital em expansão.

 

Outro estudo, dessa vez elaborado pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) – empresa pública responsável pelo controle do estoque de alimentos, levantamento de custos da produção agropecuária e elaboração de estatística de preços, entre outras atividades – demonstra a compreensão hegemônica no interior do Estado brasileiro sobre o papel que os grandes projetos de infraestrutura têm para o país. Eis o que tal estudo afirmou sobre o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (CRM):

 

O projeto hidrelétrico no Rio Madeira prevê, num primeiro momento, o aproveitamento das cachoeiras Santo Antonio – distante da cidade de Porto Velho aproximadamente 7 km e de Jirau – 130 km da capital. As duas usinas terão potência instalada de aproximadamente 6.500 megawatts e serão estratégicas, caso se observe algumas pré-condições fundamentais para a integração física da América do Sul que permitirão a interligação hidroviária da bacia do Amazonas com as dos rios Orinoco, na Venezuela e do Prata, no sul do continente (BRASIL, 2006, p. 22 – grifo nosso).

 

Ou seja, a CONAB teve a coragem de expor claramente um dos objetivos que se quer alcançar a partir do CRM, que até mesmo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) deixou de assumir publicamente por conta dos constrangimentos que sofreu por parte de organizações da sociedade civil do mundo inteiro, devido às pesadas implicações socioambientais dessa estratégia que visa conectar o continente sul-americano nos sentidos Leste-Oeste e Norte-Sul.

 

O discurso oficial é de integração e unidade, mas na verdade o que vemos é fragmentação. Os nossos países estão sendo esquartejados de acordo com as conveniências e os interesses de grandes corporações econômicas. O resultado disso é que populações inteiras e as áreas onde estão localizadas são excluídas e/ou secundarizadas pelo Estado, que prioriza aquelas que podem ser conectadas mais facilmente com os mercados internacionais. Cidades importantes buscam inserir-se diretamente ao plano internacional, desenvolvendo estratégias de marketing e projetos estruturantes que lhes tornem atraentes aos investidores privados. Isto cria uma atmosfera tão perniciosa que parte de suas populações passa a considerar-se mesmo diferente dos demais habitantes do país em que vivem. As diversas formas de preconceitos se expressam, então, com força considerável. Lembremos das frases pintadas nos muros de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, exortando seus moradores a matarem indígenas e teremos uma clara noção do quanto é perigosa essa fragmentação socioterritorial promovida pela expansão acelerada do capital.

 

O planejamento estatal continua a ser executado de cima para baixo, de forma vertical. A maioria absoluta das municipalidades, principalmente as pequenas e médias cidades, carentes de pessoal técnico qualificado, dependentes dos repasses de recursos dos governos centrais e provinciais, sem força política para impor outra agenda política mais adequada às suas realidades e interesses, frágeis para se contrapor às grandes corporações econômicas e os diferentes empreendimentos que são instalados em seus territórios, tem que conviver a partir de então com os profundos impactos causados pelas novas dinâmicas econômicas, políticas e sociais a que são submetidas.

 

Mesmo determinadas políticas públicas importantes assumem novo viés para “adaptarem-se às necessidades do mercado”. É o caso, por exemplo, da regularização fundiária no Brasil. Agora, interessa às grandes empresas de mineração, madeireiras, de energia e ao agronegócio que as terras na Amazônia sejam todas devidamente regularizadas. Em princípio, parece haver sintonia com o que defendem diversos movimentos sociais e ONGs que atuam na região. Todavia, o que está por trás dessa “política pública” é tão somente garantir segurança jurídica à expansão das atividades empresariais. Isto porque o que interessa de fato é que essas terras possam ser transacionadas, ou seja, possam ser vendidas e

 

compradas no mercado. Por conta disso, o Estado (3) tem dificultado de todas as formas o reconhecimento da propriedade coletiva da terra para povos indígenas, extrativistas, remanescentes de quilombos e comunidades ribeirinhas, bem como a constituição de novas áreas de proteção ambiental, pois elas dificultam a expansão do mercado de terras. Isso sem falar nas terras adquiridas ilegalmente através da expulsão dos antigos habitantes, do assassinato de lideranças e de outras formas de pressão à margem da lei.

 

Acreditar que essa “integração” fundada tão somente no fortalecimento das instituições e dos mecanismos de mercado pode resultar na generalização do bem-estar social é, no mínimo, ingênuo. Alguém pode contestar afirmando que a pobreza nos nossos países tem diminuído justamente por conta da estratégia desenvolvimentista adotado pelos atuais governos. Porém, estes se esquecem de dizer que a ascensão social de uma parte da população e sua entrada no mercado consumidor de massa não significou, necessariamente, a diminuição do fosso que separa ricos e pobres já que a concentração de renda também tem aumentado.

 

2. Intensa disputa pelo acesso, uso e controle de territórios.

 

Seria exagero afirmar que a Pan-Amazônia está completamente atravessada por disputas envolvendo diferentes atores sociais que lutam para garantir o acesso, uso e o controle de seus territórios? Esta parece ser uma das principais características do momento histórico que vivenciamos. Há um conjunto de forças se confrontando permanentemente para garantir o controle sobre vastos territórios. E quando falamos em territórios não nos referimos tão somente às áreas de florestas ou que contêm outros recursos naturais, pois esse processo ocorre tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas. Nestas, há um conjunto de grandes projetos de infraestrutura sendo executados para aumentar sua “eficiência econômico-produtiva” (4), a fim de conectá-las ao mercado globalizado.

 

Evidentemente, quando uma rodovia é construída e/ou recuperada, um aeroporto é reformado, redes de abastecimento de água e de coleta de esgoto são instaladas ou quando a rede de energia elétrica é ampliada, muitas pessoas são beneficiadas. Ocorre, porém, que o objetivo principal do conjunto dos empreendimentos instalados na Pan-Amazônia não é favorecer a reprodução social de agricultores familiares/camponeses, indígenas ou de extrativistas. Quando isto ocorre é apenas o “efeito secundário” proporcionado pelos projetos. A finalidade precípua destes é justamente garantir o acesso, uso e controle de territórios e dos recursos neles disponíveis por parte de poderosos grupos econômicos nacionais e transnacionais.

 

O compromisso de empreendimentos como as hidrelétricas é garantir que a reprodução ampliada do capital ocorra a qualquer custo. Daí que uma das características desse tipo de projeto é o de reconfigurar profundamente as áreas onde são instalados. Na Amazônia brasileira, por exemplo, temos observado que: a monocultura para exportação (soja, eucalipto, agrocombustíveis etc.) tem ocupado as terras que antes estavam sob o domínio de agricultores familiares, há reconcentração das terras nas mãos de poucos e o seu valor dispara no mercado (5), há também recrudescimento das ações criminosas (invasão das terras indígenas, roubo de madeiras nobres, expulsão de famílias, etc.)

 

As rodovias, hidrovias, portos, aeroportos, ferrovias, hidrelétricas e sistemas de comunicação são instalados para garantir que os recursos naturais sejam acessados pelas empresas e inseridos no mercado, particularmente para atender as demandas de grandes consumidores, como é o caso da China. Associado a esse conjunto de empreendimentos são tomadas medidas para tornar legal toda essa apropriação: a legislação ambiental é flexibilizada (os prazos para o licenciamento ambiental são encurtados e restringem-se às prerrogativas dos órgãos que atuam nesse setor), em alguns casos a própria Constituição é alterada para favorecer o setor privado, as grandes propriedades são regularizadas, proliferam as chamadas parcerias público-privada a fim de garantir às empresas que possam explorar os recursos de áreas de preservação durante longos anos, movimentos sociais são criminalizados e muitas outras iniciativas do tipo são adotadas.

 

Rodovia BR-364: Conversão de florestas em plantio de soja

 

Evidentemente que essa expropriação em larga escala contra ribeirinhos, indígenas, agricultores familiares/camponeses, extrativistas e populações pobres das áreas urbanas não poderia acontecer sem conflitos. Se tempos atrás eles estavam concentrados em determinadas áreas, hoje eles estão disseminados por toda a Pan-Amazônia. Essa é outra característica importante da expansão do capital nesta parte do continente.

 

É impressionante a quantidade de conflitos atualmente existentes na Pan-Amazônia. Em todos os países que a compõem ocorrem disputas acirradas. Na Bolívia, a luta dos habitantes do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure (TIPNIS) para impedir a construção de uma rodovia; no Brasil, a mobilização contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte; e no Peru, as ações em Iñambari para impedir o erguimento de outra hidrelétrica são exemplos de conflitos e de resistências que se levantam em diferentes lugares ao atual modelo hegemônico de desenvolvimento. Os casos citados fazem parte da lista dos mais conhecidos, mas certamente há muitos outros que ainda não receberam atenção de um conjunto maior de pessoas e de entidades. Porém, não podemos esquecer também daquelas situações em que a resistência se dá de forma pessoal ou é mantida por pequenos grupos que não integram organizações comumente reconhecidas. Durante as viagens que realizamos em Rondônia, visitando as áreas atingidas pelas hidrelétricas Santo Antonio e Jirau, nos deparamos com muitas situações desse tipo. Histórias de vida e de sofrimento de quem estava sendo obrigado a deixar as terras em que sempre viveu para ir embora, deixar tudo pra trás: sonhos, bens, trabalho, amigos, familiares…

 

Não há como esquecer o que foi dito pela senhora Maria Amazonina em setembro de 2009. Hoje ela está com 74 anos, e vive numa área de assentamento denominada Novo Engenho Velho. Foi mais ou menos isso: “Moro aqui há um ano. E nesse tempo envelheci muito mais. Estou doente”. Mulher ativa antes de ser retirada da localidade que foi inundada pela hidrelétrica de Santo Antonio, trabalhava na agricultura e criava pequenos animais, além de pescar e cultivar uma horta. No momento da conversa citada acima ela vivia numa casa de alvenaria repassada pelo consórcio de empresas responsável pela hidrelétrica, fixada num pequeno terreno que não lhe permitia ter roçado, nem criar animais. Na verdade, havia algumas galinhas no terreno e uma pequena cabra que vivia amarrada num dos cantos da casa, mas insuficiente para lhe garantir renda. Sentia saudades da casa de madeira, de deitar na sua rede embaixo das árvores, de trabalhar, de se sentir ativa.

 

Já Luis Paulo Afonso, morador da comunidade Porto Seguro, localizada na margem esquerda do rio Madeira, onde fica a Cachoeira Santo Antonio, nos falou dos problemas enfrentados com as empresas por conta dos baixos valores da indenização dos lotes inundados pelo lago da barragem. Ele também mencionou as ações autoritárias do consórcio que lhes impediam de pescar no rio. Segundo ele, grandes quantidades de árvores foram derrubadas e depois jogadas nos igarapés (pequenos braços de rios) ou queimadas, sem que nenhuma autoridade tomasse qualquer providência. Ainda de acordo com Luis Paulo, as residências eram derrubadas sem que as negociações tivessem sido concluídas. Bastava que os moradores não estivessem dentro delas no momento da chegada da equipe responsável pelas demolições.

 

Por sua vez, a senhora Emilia Mendes, 84 anos, nascida no Seringal União, resistia para sair do local em que morava, em Jaci-Paraná, distrito de Porto Velho, distante cerca de 100 quilômetros da capital de Rondônia. Durante a conversa que mantivemos em agosto do ano passado ela disse que lutava apenas por uma coisa: queria morrer dentro da casa em que morou por 50 anos. Depois disso, “podem fazer o que quiserem”, afirmou. Com apoio do casal de filhos, que também tinham casas no mesmo terreno, resistia contra as empresas que queriam lhe tirar dali o mais rápido possível. Ao redor, a maioria de seus vizinhos já havia sido remanejada compulsoriamente. Restavam apenas destroços espalhados pelo chão. Estar na presença daquela senhora, ouvindo-a falar do seu passado, dos momentos bons e difíceis que viveu para cuidar dos filhos sem a presença do marido, que morreu prematuramente, nos mostrou que as repercussões da construção das hidrelétricas Santo Antonio e Jirau vão muito além dos números frios e sem vida divulgados pelos órgãos governamentais e pelas empresas envolvidas na execução das obras.

 

Assim como os casos citados acima, muitos outros foram levantados durante as viagens que fizemos a Rondônia. Também pudemos manter contatos com integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), de ONGs – como o Instituto Madeira Vivo (IMV) –, grupos pastorais, indígenas e outros segmentos engajados na resistência organizada contra o bloco de poder que se constituiu no Brasil para impor o atual modelo de desenvolvimento, em especial na Amazônia (6). É a resistência multifacetada também disseminada não somente na Amazônia brasileira.

 

3. A desconstrução de direitos

 

Enquanto diversas famílias de Jaci-Paraná estavam sendo retiradas de suas terras por conta da formação do lago da hidrelétrica Santo Antonio; juízes, parlamentares, oficiais militares, empresas e membros de governos se apossavam de vastas extensões de terras ao longo da rodovia BR-364, inclusive na comunidade referida acima, de acordo com diferentes relatos a que tivemos acesso.

 

O que vimos e ouvimos nas diferentes áreas já visitadas por nós na Pan-Amazônia, onde estão sendo executados grandes projetos de infraestrutura deixam claro que o avanço desse processo de apropriação de territórios, de espoliação e de controle por parte de grupos políticos e conglomerados econômicos nacionais e transnacionais necessita que os direitos das populações atingidas sejam desconstruídos, negados e/ou secundarizados. É uma necessidade do próprio sistema, não é algo contingencial ou um efeito indesejado.

 

No Brasil, os direitos consagrados na Constituição Federal aprovada em 1988 vêm sendo sistematicamente combatidos. O Congresso Nacional brasileiro é hegemonizado por forças conservadoras profundamente interessadas na expansão e consolidação desse modelo autoritário de desenvolvimento, estreitamente alinhado com o ideário neoliberal de mercantilização da vida, de financeirização da natureza. E o que é pior, contando com o apoio de diversos parlamentares que um dia se disseram progressistas e que integraram o denominado campo democrático e popular. Desenvolvimentistas que são tomam o crescimento econômico como a sua utopia.

 

O agronegócio, as empresas de energia e de telecomunicações, as mineradoras, os bancos, as construtoras e as empreiteiras são alguns dos grupos que dão as cartas no que diz respeito à agenda política do governo e ao seu programa macroeconômico.

 

Enquanto isso, são criadas as condições favoráveis para que os conglomerados econômicos acessem, usem e controlem vastos territórios, principalmente na Amazônia: a extensão das áreas de fronteira pode ser redefinida para garantir a instalação de empresas estrangeiras; medidas estão sendo tomadas para permitir a diminuição do tamanho das terras indígenas já demarcadas, bem como dificultar a criação de novas áreas de preservação ou reconhecer a propriedade coletiva das terras – como no caso dos remanescentes de quilombos; permitir que empresas madeireiras e mineradoras possam explorar recursos naturais existentes nas terras indígenas; legalizar as propriedades constituídas de forma criminosa; punir funcionários públicos e órgãos que se opõem ao desmantelamento da legislação ambiental; tentativa de coibir a ação do Ministério Público Federal (MPF) no ajuizamento de ações na Justiça favoráveis às comunidades tradicionais; repasse de recursos públicos para as empresas envolvidas na execução de grandes projetos de infraestrutura (com juros abaixo dos de mercado, além de facilidades fiscais e tributárias); uso das forças de repressão contra os segmentos que se opõem ao modelo imposto; criminalização de movimentos sociais, ONGs, lideranças, assessores, etc. Qualquer semelhança com o que esteja ocorrendo nos demais países pan-amazônicos não é mera coincidência.

 

A violência, como diria o professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, é parte constitutiva da expansão do capital na (Pan)Amazônia. A desconstrução e a negação de direitos é o combustível que move a poderosa engrenagem capitalista. Governos, parlamentares, juízes e forças armadas são alguns de seus operadores. Fizemos questão de deixar de lado os grandes grupos privados de telecomunicações apenas para ressaltar o papel exercido por eles para difundir e consolidar ideias preconceituosas contra quem promove a resistencia (7), promover lobby favorável aos interesses empresariais e exigir a punição de movimentos sociais, ONGs e lideranças.

 

A desconstrução de direitos se dá nas diferentes escalas: desde o plano nacional até o local. Neste, a situação se dá de forma abusiva e absurda. Imagine proibir pessoas que sempre se utilizaram do rio para pescar e se alimentar, se locomover, transportar mercadorias e para os seus rituais de repente virem-se proibidas de acessá-lo para capturar peixes, por exemplo. Pois isto tem ocorrido em Rondônia. Empresas e órgãos ambientais do governo têm proibido algumas comunidades de pescar no rio Madeira, como é o caso de Novo Engenho Velho.

 

Por falar na comunidade Novo Engenho Velho é preciso dizer que as terras de lá se mostraram impróprias para a agricultura, pois há muitas pedras no local. As famílias que para lá foram remanejadas compulsoriamente tiveram que importar terras de uma comunidade vizinha a fim de tentar garantir o plantio. Ou seja, a reprodução socioeconômica dessas famílias foi quase que inviabilizada e as autoridades e empresas não se mostram sensibilizadas para os dramas vivenciados por elas.

 

Recentemente, um jornal de Rondônia publicou uma matéria relatando o consumo de drogas nos canteiros de obras das duas hidrelétricas. Segundo a reportagem, “estima-se que 10% dos „barrageiros‟ estão sendo consumidos pelo vício (de crack)” (8). Vejamos o que diz a matéria:

 

A notícia começou a circular ainda com ares de boato no início da tarde de 28 de dezembro. Foi ganhando força ao entardecer e quando a noite caiu sobre o lamacento povoado de Jaci-Paraná, a 100 quilômetros ao Sul de Porto Velho (RO), tornou-se uma verdade assustadora mesmo para uma região tão acostumada à violência. Uma família inteira de cinco pessoas, entre elas uma mulher grávida de quatro meses e uma menina de apenas cinco anos, havia sido brutalmente assassinada. Não era um crime comum. Mãe e filha haviam sido violentadas e torturadas antes de morrer. Os homens – o pai e dois de seus primos – tiveram as pernas e os braços quebrados para que coubessem com mais facilidade nas covas rasas. Quase todos foram degolados.

 

Naqueles dias tensos às vésperas da virada do ano, os moradores de Jaci- Paraná se deram conta de que a relação que o povoado tinha com o tráfico e o consumo de drogas havia mudado de patamar. Desde o início das obras da Usina Hidrelétrica de Jirau o consumo de crack vem crescendo de forma constante nesse distrito de Porto Velho com cara de cidade e que nasceu a exatos 100 anos por conta de outra obra faraônica em plena selva: a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Distante apenas 20 quilômetros do principal canteiro de obras da usina hidrelétrica, Jaci é uma espécie de parque de diversões dos quase 20 mil homens que enfrentam as agruras de trabalhar numa região tão inóspita quanto a floresta amazônica.

 

Em seu núcleo central, composto por três ruas de 700 metros de comprimento cortadas por seis perpendiculares, contam-se exatos 62 prostíbulos, 18 salões de beleza e cinco igrejas (YAN BOECHAT, IG São Paulo, 27/02/2012)

 

Há quatro anos Jaci tinha cerca de quatro mil habitantes. Hoje são quase dezesseis mil vivendo em condições precárias, já que a infraestrutura social prometida não foi instalada. O número de policiais é reduzido e as ocorrências mais graves precisam ser levadas para Porto Velho, pois não há delegacia no distrito.

 

O número de adolescentes grávidas é impressionante, bem como a violência que aumenta sensivelmente nos finais de semana e no período em que os operários que constroem Jirau recebem seus salários e procuram Jaci-Paraná para divertirem-se. Como foi relatado acima, o tráfico de drogas explodiu na localidade, sem que medidas concretas para combater o problema estejam sendo postas em prática.

 

Quando estivemos em Jaci-Paraná no ano passado tivemos a oportunidade de ver mulheres sendo sorteadas como prêmios aos freqüentadores dos prostíbulos. Aliás, é comum vermos adolescentes oferecendo-se a quem quiser sexo e tiver dinheiro para pagar.

 

Na volta de Jaci-Paraná para Porto Velho tivemos a oportunidade de dividir um táxi com um operário que trabalhava em Jirau, o proprietário de um imóvel alugado no distrito, o membro do setor administrativo de uma empresa contratada pelo consórcio da hidrelétrica e o motorista. Durante a viagem foram relatadas histórias terríveis que ocorriam no canteiro de obras. Entre as várias relatadas duas chamaram atenção. A primeira dizia respeito às tentativas de estupro de trabalhadores homossexuais que, por conta da perseguição que sofriam, tinham que ser alocados nos refeitórios ou em outros setores fora dos canteiros. A segunda narrava o drama de um operário que tendo gasto todo o salário nos prostíbulos de Jaci implorava para que uma pessoa da administração lhe emprestasse algum dinheiro a ser pago com juros altíssimos. Em meio a uma roda de pessoas que acompanhavam a cena alguém se dispôs a dar – não emprestar – o dobro do que estava sendo solicitado, desde que o operário inserisse o pênis de um dos presentes em sua boca. De acordo com a pessoa que narrou esse fato terrível, a proposta foi retirada posteriormente e o operário não recebeu qualquer quantia.

 

Também ouvimos de integrantes de grupos pastorais e de diferentes organizações da sociedade civil denúncias de mortes ocorridas nos canteiros de obras sem que as mesmas tenham sido registradas. Contudo, jornais de Rondônia têm divulgado notícias sobre violências de diversos tipos envolvendo operários das hidrelétricas.

 

A violência, porém, é também institucionalizada. Em março de 2011 operários da usina Jirau revoltaram-se contras as péssimas condições de trabalho a que estavam submetidos pelo consórcio: horas extras não pagas, jornada de trabalho excessiva, acúmulo de funções sem a devida remuneração, repressão por parte das empresas de segurança privada, assédio moral, não cumprimento do acordo coletivo (9) e outras. Cerca de 45 ônibus, refeitórios, alojamentos, lojas de conveniência e caixas eletrônicos foram incendiados. Porto Velho ficou paralisada: o comércio fechou, ônibus deixaram de circular pela cidade e o pânico tomou conta dos moradores; clima insuflado ainda mais pelos meios de comunicação local que narravam violências supostamente cometidas pelo operariado, além de divulgarem a existência de um plano de invasão que jamais se realizou. Investigações promovidas pelos Ministérios Públicos Federal e do Trabalho constataram situações análogas ao trabalho escravo impostas nos locais onde estavam sendo executadas as obras.

 

O que dizer quando patrimônios históricos passam a ser ameaçados pela formação dos lagos das usinas? Pontes metálicas, trilhos e outros componentes da antiga Estrada de Ferro Madeira-Mamoré correm o risco de desaparecer sob as águas. Essa também não é uma forma de violência simbólica pouco suscitada nos debates acerca da construção dos grandes projetos de infraestrutura na nossa região? Situações semelhantes a esta de Rondônia também não estão ocorrendo em outras partes da Pan-Amazônia? Lugares considerados sagrados vêm sendo sistematicamente destruídos para atender as demandas do mercado externo. Em Manaus, capital do estado do Amazonas, governo, empresas e seus aliados lutam para garantir a construção de um porto que pode significar o desaparecimento de inscrições rupestres de antigos povos que habitavam a região. Na Bolívia, a construção da hidrelétrica Cachuela Esperanza também pode impactar negativamente os monumentos históricos existentes na localidade. No Peru, as ações de madeireiras e petroleiras próximas à fronteira com o Brasil colocam em xeque a sobrevivência de índios isolados.

 

No caso da hidrelétrica de Belo Monte, os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) contratados pelas empresas que formam o consórcio vencedor, desconhecem a existência de comunidades indígenas, ou negam que algumas delas sejam afetadas. Além disso, há denúncias de violações de direitos, como a exclusão dos indígenas do processo de consulta. O Ministério Público Federal tem pelo menos quinze ações na Justiça que até hoje não foram julgadas. Várias dessas ações foram ajuizadas antes da instalação do canteiro de obras. A postergação do julgamento é outra forma de não reconhecimento de direitos. É a tentativa de criar o fato consumado, do caminho sem volta, pois quem irá dizer que a hidrelétrica não pode mais ser construída depois de ter sido iniciada, e de o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ter aprovado empréstimos no valor de R$ 24,5 bilhões ao consórcio de empresas responsável pelas obras?

 

Organizações da sociedade civil brasileira formalizaram queixa junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), relatando todos os casos de violação de direitos. Qual foi a resposta do governo Dilma Roussef? Ameaçou cancelar o repasse dos recursos que o Estado brasileiro faria à dita comissão.

 

Esse conjunto de fatos expostos acima longe de parecerem isolados, ou exceções à regra geral, são, na verdade, elementos constitutivos da expansão do capital. Esse processo tem na violação de direitos o fundamento da sua própria reprodução. São as faces de uma mesma moeda: uma acompanha a outra em todos os cantos da Pan-Amazônia. Com isso, as próprias conquistas democráticas duramente alcançadas em nossos países correm risco de esvaírem-se ao ponto de existirem apenas como um corpo insepulto.

 

4. Os “invisibilizados” são os protagonistas da resistência à globalização capitalista.

 

Quem, afinal de contas, é o principal agente das transformações sociais? A pergunta em si mesma é descabida. Primeiramente porque revela uma visão reducionista da sociedade e dos conflitos sociais. Em segundo lugar porque acredita que um único sujeito pode, efetivamente, “representar os interesses gerais da sociedade”. Durante muito tempo se defendeu que os operários seriam esse “agente”. Um desafio para você que está lendo esse artigo: cite um único país onde os operários promoveram uma revolução de caráter anticapitalista. Cuba? Rússia? China? Vietnã? Nestes, os “invisibilizados” também tiveram papel relevante.

 

No Brasil, boa parte dos sindicatos operários e/ou de servidores públicos tem restringido suas bandeiras de lutas às demandas de cunho econômico-salariais, diferentemente do que ocorreu no passado quando integraram a “vanguarda” das lutas sociais por mudanças estruturais. Aliás, determinadas categorias apóiam resolutamente a execução de grandes projetos de infraestrutura na Amazônia por conta da possibilidade da geração de empregos para as mesmas. Além disso, fundos de pensão de trabalhadores encontram-se entre os maiores financiadores dos consórcios responsáveis pela execução dessas obras – como no caso das hidrelétricas. Ou seja, ganham muito dinheiro com os empreendimentos que se instalam na Amazônia brasileira. Então, por que ser contra os mesmos?

 

Estamos vivenciando uma profunda reconfiguração territorial decorrente do processo de expansão capitalista na Pan-Amazônia. Também presenciamos a reconfiguração dos sujeitos coletivos que capitaneiam a resistência na nossa região. Aqui são os indígenas, extrativistas, grupos de mulheres, agricultores familiares/camponeses, ribeirinhos e os remanescentes de quilombos, alguns dos segmentos que realizam a crítica mais contundente, não somente ao modelo de desenvolvimento, mas à própria ideia de civilização. O Bem Viver talvez seja o maior exemplo disso que estamos falando.

 

São justamente os atores sociais que de alguma forma mantêm relação diferenciada com a natureza, qualitativamente distinta das sociedades em que estão inseridos, os que promovem renhida resistência às tentativas dos conglomerados econômicos nacionais e transnacionais de garantirem o acesso, uso e controle de vastos territórios. Vemos isso na Bolívia, no Equador, no Brasil, na Venezuela, na Colômbia e no Peru (10). Evidentemente que há diferenças importantes entre os processos que se desenvolvem em cada país. Não obstante, não há como negar a relevância desses segmentos nas principais lutas sociais em andamento nesta parcela da América do Sul que é a Pan-Amazônia. Essa leitura da luta social não nos impede de reconhecer alguns problemas enfrentados por esses segmentos: encontram-se dispersos no território, há dificuldades de articulação com outros setores (seus modos de organizar-se, seus códigos de comunicação e formas de representação, suas concepções de mundo etc.) são muito diferentes das desenvolvidas pelo movimento sindical, por exemplo. O que dificulta – mas não tem impedido – o trabalho em rede.

 

São atores sociais “perigosos” para o sistema. Por quê? Porque a sua própria existência (modos de vida e modos de pensar) se constitui numa afronta a um sistema que tem a capacidade de transformar tudo e todos em mercadoria. As relações que mantêm com o meio ambiente evidenciam a possibilidade real de uma interação completamente distinta da propugnada pelos ideólogos da globalização capitalista e sua financeirização da natureza. Todavia, os indígenas se tornaram o foco principal das tentativas de cooptação por parte de Estados nacionais, empresas e ONGs interessadas na consolidação do mercado de carbono.

 

Há alguns anos esses atores sociais eram completamente invisibilizados, como se estivessem à margem da história. Nunca foram invisíveis, mas foram levados a essa condição por conta de interesses e processos diversos. Hoje encontram-se no centro do palco em conjunto com outros segmentos. O que vai resultar daí? É difícil dizer. Contudo, uma coisa parece certa: as mudanças estruturais nos nossos países não acontecerão e nem serão verdadeiramente justas e democráticas sem a efetiva participação de indígenas, ribeirinhos, mulheres, remanescentes de quilombos, extrativistas e agricultores familiares/camponeses.

 

Considerações finais

 

Os grandes projetos de infraestrutura buscam garantir o aumento da competitividade das empresas, o aumento da velocidade da reprodução do capital e da conquista do lucro. O território se reconfigura para atender os interesses políticos e econômicos dos agrupamentos que hegemonizam os Estados nacionais e de seus aliados no exterior. Mais uma vez é preciso ressaltar as diferenças existentes em cada país. Entretanto, essa parece ser a lógica dominante na América do Sul. As classes também se reconfiguram nesse processo, mas é preciso evitar compreender o mesmo a partir de uma perspectiva economicista ou mecânica de causa e efeito.

 

Hidrelétricas, portos, aeroportos, gasodutos, hidrovias, rodovias, ferrovias e sistemas de comunicação e de transporte de energia na Pan-Amazônia buscam impor uma nova temporalidade que se quer afirmar hegemônica. Segundo Santos, o que há na realidade são temporalidades hegemônicas e hegemonizadas, sendo que as primeiras são “o vetor da ação dos agentes hegemônicos da economia, da política e da cultura, da sociedade enfim. Os outros agentes sociais, hegemonizados pelos primeiros, devem se contentar de tempos mais lentos” (SANTOS, 2002, p. 16). O choque entre distintas temporalidades é, sem dúvida alguma, um dos principais componentes que alimentam os conflitos na nossa região, mesmo que pouco evidenciado em pesquisas ou pelos movimentos sociais.

 

Se entendermos que tempo e temporalidades são construções sociais (11), portanto expressam modos de vida e de pensar, de distintas formas de relações das pessoas entre si e com a natureza, teremos condições de refletir com maior profundidade sobre a essência dos conflitos que atualmente envolvem o bloco de poder articulado em diferentes escalas para garantir a reprodução ampliada do capital – a globalização capitalista e a mercantilização da vida; e os segmentos sociais que hoje se constituem como os principais obstáculos a efetivação daqueles interesses. O que queremos dizer com isso? Que os conflitos entre eles tendem a se agravar ainda mais daqui para diante, justamente porque são antagônicos. É muito difícil a conciliação entre eles. Para as classes dominantes é fundamental cooptar, comprar, reprimir, discriminar, excluir, criminalizar e/ou eliminar os segmentos que fazem oposição às suas tentativas de acessar, usar e controlar vastas extensões territoriais e os recursos neles disponíveis. Já dissemos anteriormente quem são esses atores sociais. Sua existência é por si só um questionamento à ditadura do pensamento único e suas “alternativas” pelo mercado.

 

A Pan-Amazônia é locus importante para a reprodução ampliada do capital em escala internacional. O papel desempenhado pelo Brasil nesse processo é de um Estado nacional que luta para garantir sua hegemonia na região (política, econômica, financeira, militar etc.). Porém, uma hegemonia que tende a reforçar seus laços de dependência – e de toda a região – por assentar-se na inserção subordinada ao mercado globalizado. Vejamos o que nos diz Brandão:

 

Correndo o risco de incorrer em imprecisão teórica e analítica, poder-se-ia afirmar que o Brasil, antes que uma nação, deveria ser caracterizado como uma mera e enorme plataforma territorial-econômica, que conjuga alta e fácil valorização para capitais mercantis e financeirizados, com, provavelmente, a maior máquina de exclusão, esterilização de excedente social, depredação cultural, desfiliação, degradação ambiental e predação de pessoas e espaços geográficos do planeta?

 

Antes que um sistema moderno de forças produtivas ou uma economia industrial avançada, o Brasil teria constituído um enorme complexo ou arranjo de apropriação/expropriação e promoção mercantil, que lança mão permanentemente de formas diversificadas de acumulação primitiva, ou seja, um aparelho mercantil com massas e circuito de valorização mercantis sofisticados, fundados na extensividade e no expansionismo territorial predatório? (BRANDÃO, 2010, p. 39)

 

O Brasil e os demais países da Pan-Amazônia parecem estar se tornando isso mesmo: uma gigantesca plataforma para a valorização do capital. Não é à toa que nossas economias estão cada vez mais dependentes dos impulsos e contrações do mercado chinês. Mesmo as empresas brasileiras associadas ou não a conglomerados transnacionais buscam o controle dos mercados vizinhos para satisfazer seus interesses que, por sua vez, estão profundamente imbricados com os interesses da China. O poder que Brasil e China assumiram na América do Sul é fantástico. Porém, carecemos de análises mais qualitativas sobre esse processo, já que boa parte das reflexões dizem respeito ao Brasil e pouco sobre o papel que a terra de Mao Tse Tung exerce nesse contexto:

 

Uma das causas para essa rápida ascensão do Brasil no ranking das economias mundiais (era a 12ª maior, há apenas dez anos), é a relação comercial com a China, que evoluiu de US$ 2,3 bilhões em 2011, para US$ 77 bilhões no ano passado. As exportações brasileiras para China batem recordes, ano após ano: US$ 44,3 bilhões em 2011, quase o dobro das vendas para os EUA (US$ 25,9 bilhões). Mantido esse ritmo de crescimento, superior a 40% anuais, o comércio com a China deverá atingir US$ 300 bilhões em 2015. E há os investimentos no Brasil, cada vez maiores, em indústrias de diversos setores, de vários estados. Cresceu tanto o ingresso de capitais chineses no Brasil que, além de maior parceiro comercial e maior comprador de produtos agropecuários, a China tornou-se também o maior investidor no setor produtivo brasileiro.

 

A sociedade brasileira assiste atônita a essa ofensiva comercial chinesa. As quantias crescentes tendem a ofuscar a análise qualitativa do que é comprado e do que é vendido pela China, e se diz assim porque a iniciativa é muito mais dela. Diversas lideranças industriais têm protestado, alertando sobre os riscos da desindustrialização que já estava ocorrendo no Brasil. Alguns intelectuais, em geral economistas, escrevem com freqüência sobre os possíveis impactos dessa relação desigual – o Brasil comprando manufaturados da China e ela comprando commodities, ambos em quantidade crescentes. Até agora, o resultado das trocas comerciais com a China tem sido positivo para o Brasil, tendo inclusive mais do que dobrado em 2011, em relação a 2010, a ponto de responder por quase 40% do superávit da balança comercial brasileira. No curto prazo, as compras e investimentos chineses são bem-vindos, mas será que eles resistem a uma análise de caráter estratégico? (POMAR, 2012)

 

A entrada do Brasil nos países vizinhos e o crescente controle que exerce sobre diversos setores de suas economias é também para viabilizar o atendimento do mercado chinês. Essa relação complexa precisa ser mais bem assinalada. E a China, mesmo que cresça menos no futuro próximo, tem fôlego e demanda para muitos anos, ainda mais se voltar-se com maior afinco para o seu mercado interno:

 

Maior compradora de produtos agropecuários do Brasil, tudo indica que a China seguirá importando em velocidade muito superior ao crescimento da sua economia: tem 20% da população mundial e há cada vez mais pessoas com maior poder aquisitivo; dispõe de pouca água (6% da existente no mundo), mal distribuída e com risco de contaminação; seu estoque de terras disponíveis para a agricultura está no “limite vermelho”; o esforço permanente para aumentar a produtividade agrícola tem custo muito alto, que requer subsídios cada vez maiores; e a produção de grãos tem se mantido em 550 milhões de toneladas. O detalhe aparentemente contraditório é que a China não só exporta produtos agrícolas, como tende a transformar-se rapidamente em grande pólo agroindustrial, utilizando matérias-primas próprias e importadas para a industrialização em larga escala de alimentos e outros produtos.

 

Passar de maior importadora agrícola, para maior exportadora de alimentos industrializados, papel, tecidos de algodão e outras fibras naturais, móveis de madeira etc. para a Ásia (2,5 bilhões de pessoas), será o grande “pulo do gato” do dragão chinês. Vendedora por natureza, altamente capitalizada, com 800 milhões de pessoas economicamente ativas, localização central, fronteiras terrestres e ligação ferroviária atual ou futura com 15 países, a China revolucionará a logística de transporte mundial de uma maneira fantástica, porque construirá ferrovias entre países da Ásia Central, na sua região oeste, e o Oceano Pacífico, onde possui os maiores portos do mundo e gigantesca frota mercante. Esse plano foi anunciado por autoridades do governo central chinês em 2008, na cidade de Chengdu, capital de Sichuan, durante evento reunião (12) províncias e regiões autônomas e representantes dos países vizinhos. Quando estiver concretizada essa “Rota da Seda sobre trilhos”, as trocas comerciais da Ásia com o restante do mundo atingirão volumes impensáveis hoje. (POMAR, 2012)

 

Os dados apresentados por Pomar nos mostram que as pressões oriundas do Brasil e da China sobre a Amazônia brasileira e os demais países pan-amazônicos aumentarão significativamente nos próximos anos e, em conseqüência, a violação de direitos tendem a crescer na mesma medida, pois as terras indígenas e de remanescentes de quilombolas, áreas protegidas e outras terão de entrar de algum modo no mercado. Nesse sentido, medidas legais serão aprovadas pelos congressos nacionais e quando isto não for possível as leis serão simplesmente usurpadas – tal como já está ocorrendo – com a complacência, inclusive, do judiciário e com o apoio das empresas de telecomunicações.

 

A resistência a esse processo terá de ocorrer nas diferentes escalas, do local ao internacional com base no trabalho em rede e em parceria estreita entre movimentos sociais, ONGs e instituições de pesquisa.

 

Este artigo deverá ser lido principalmente por pessoas vinculadas à academia, ONGs e/ou movimentos sociais. Então, para finalizar, citaremos a fala do Marcelo Yuka, músico brasileiro que ficou paraplégico por conta de ter sido baleado durante um assalto, na minissérie A Era das Utopias, dirigida pelo cineasta Silvio Tendler: “O que nós queremos de fato é que as idéias voltem a ser perigosas” (12).

 

Artigo publicado na Revista Latinoamericana de Derecho y Políticas Ambientales. Año 2, N°. 2, Agosto de 2012.

 

* Doutorando em Planejamento do Desenvolvimento Regional pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará – NAEA/UFPA, educador da ONG FASE Amazônia.

 

1 Tal estudo foi feito para atender a solicitação da Business Council for Sustainable Development – Latin America (BCSD-LA), Corporação Andina de Fomento (CAF), Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Bank of America e Companhia auxiliar de Empresas de Mineração (CAEMI).

 

2 “O principal aspecto do novo paradigma será uma perspectiva geoeconômica, ou seja, a busca da eficiência e outras vantagens a serem obtidas a partir da visão do continente como uma unidade econômica, em vez de doze diferentes entidades” (SILVA, 1997, p. 11 – grifo do autor).

 

3 Dizemos Estado porque é uma ação desenvolvida articuladamente pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com o apoio resoluto das empresas de telecomunicações, que se somam para aprovar medidas que atendam aos interesses do grande capital. É um bloco de poder muito forte que atua em todas as escalas: desde as municipalidades até o plano internacional.

 

4 “Uma vasta literatura tem sido produzida sobre a globalização como oportunidade de desenvolvimento, desde que a metrópole se transforme em ‘ator político’, isto é, em representantes dos interesses privados e públicos, todos com o objetivo de convertê-la em pólo de desenvolvimento globalizado. Identificamos também como integrantes desse tipo de literatura os relatórios e recomendações dos organismos internacionais. Esses documentos e estudos partem do pressuposto de que a reestruturação das economias urbanas das grandes cidades tem papel estratégico no desenvolvimento nacional, em razão dos novos nexos est ruturais entre a dinâmica urbana e o desempenho macroeconômico. Tais nexos são de três ordens: financeiros, na medida em que a debilidade do setor financeiro dificulta a mobilização da poupança privada, tornando o setor público o único agente de financiamento do desenvolvimento urbano e contribuindo assim para a escassez financeira generalizada; fiscal, na medida em que o baixo rendimento dos tributos arrecadados localmente impõe a necessidade de um sistema de transferências intergovernamentais, pressionando o déficit orçamentário do governo federal; e produtivo, na medida em que a obsolescência e a deficiência da infra-estrutura urbana reduzem a produtividade das empresas e, portanto, a produtividade agregada à economia. Tal literatura também conclui pela necessidade de políticas e programas de ajuda que promovam a unificação das forças locais em torno de um projeto de desenvolvimento urbano”. (RIBEIRO, 2000, p. 12-13)

 

5 A construção de hidrelétricas também busca transformar os grandes rios amazônicos em hidrovias. Esse é um dos motivos da valorização das terras localizadas às margens desses rios.

 

6 “O que a experiência de resistência contra os grandes projetos de infraestrutura tem nos ensinado? Em primeiro lugar, que lutamos atualmente não contra um ou outro segmento cujos interesses se realizam através desse modelo desenvolvimentista, mas sim contra um bloco de forças políticas e econômicas nacionais e internacionais, que envolve ainda o Judiciário e a mídia – esta executando ampla campanha para garantir o apoio da população aos empreendimentos. Esse bloco se complexificou e se ampliou com a adesão de setores dos movimentos sociais e de ONG. Isto significa que o então denominado campo democrático e popular, responsável por algumas das principais conquistas políticas e sociais no Brasil fragmentou-se profundamente, não existe mais. Em segundo, que esse bloco encontra-se organicamente articulado desde o plano local até o internacional. Tal situação tem exigido da sociedade civil que também atue com afinco em diferentes escalas. O que não é tão fácil dada a existência de diversos problemas, entre os quais as dimensões continentais amazônicas, as dificuldades de acesso a recursos públicos no Brasil para desenvolver suas atividades e as crescentes restrições da cooperação internacional. Em terceiro, que o bloco hegemônico tem resgatado elementos do passado para justificar a nova onda expansionista do grande capital na região. É o caso da ideia de “progresso”, muito utilizada durante a ditadura militar no Brasil como suporte para conquistar o apoio da opinião pública às políticas e projetos de ocupação acelerada do território amazônico. Esse discurso encontra enorme receptividade da sociedade brasileira, principalmente nas camadas de renda mais baixa, seduzidas pela expectativa de que tais empreendimentos se converterão na produção de grande número de empregos e, consequentemente, na melhoria da sua qualidade de vida. Por conta disso, o discurso de quem combate o atual modelo encontra muitas dificuldades para enraizar-se entre a população” (CARVALHO, 2011, p. 28-29).

 

7 As mulheres que lutam em Altamira, município que integra o estado do Pará, na parcela ocidental da Amazônia brasileira, contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte são chamadas de prostitutas nas rádios locais e em outros espaços públicos.

 

8 A expressão ‘barrageiro’ foi utilizada na matéria para designar os funcionários que trabalham na construção das barragens.

 

9 Como parcela considerável do operariado é formada por pessoas de outros estados brasileiros, o acordo prevê, por exemplo, que a cada três meses as empresas são obrigadas a pagar passagens aéreas para que os mesmos passem uma semana com suas famílias. O não cumprimento desse item foi um dos principais motivos da revolta.

 

10 Carecemos de maiores informações sobre as lutas sociais na Guiana, Suriname e no Departamento

 

11 O tempo também é caracterizado como um “fluir” que independe do ser humano.

 

12 1968, lido nos muros de Paris.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BOECHAT, Yan. O crack avança nos canteiros e corrói empregos e sonhos dos operários do

 

PAC. Site IG. Disponível aqui

 

BRANDÃO, Carlos. Acumulação primitiva permanente e desenvolvimento capitalista no Brasil contemporâneo. In. Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo / Alfredo Wagner Berno de Almeida… [et al.]. – Rio de Janeiro: Lamparina, 2010.

 

BRASIL. Corredores de Escoamento da Produção Agrícola. Companhia de Nacional de Abastecimento (CONAB). Brasília (DF), agosto de 2006.

 

CARVALHO, Guilherme. Elementos para analisar os grandes projetos de infraestrutura na Amazônia. In. Amazônia: olhares inquietos na floresta. Luiz Arnaldo Campos e Dion Monteiro (org.). – Rio de Janeiro: Fundação Lauro Campos, 2011.

 

MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In. A sociedade em busca de valores: para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Instituto Piaget – Lisboa. Coleção Epistemologia e Sociedade, 1996, p. 239-254.

 

POMAR, Milton. As estratégias comerciais de Brasil e China. Revista Amanhã. Edição Fevereiro/2012. Disponível aqui

 

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Apresentação. In.O Futuro das Metrópoles: desigualdades e governabilidade. / Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (org.). – Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2000.

 

SANTOS, Milton. A aceleração contemporânea: tempo mundo e espaço mundo. In. O Novo Mapa do Mundo: Fim do Século e Globalização. Milton Santos, Maria Adélia A. de Souza (et alli). São Paulo : Hucitec/ANPUR, 2002, p. 15-22.

 

SILVA, Eliezer Batista da. Infra-estrutura para Desenvolvimento Sustentável e Integração da América do Sul. Editora Expressão e Cultura, 1997.

 

FOBOMADE

Temas: Megaproyectos

Comentarios