Estrangeirização de terras e segurança alimentar e nutricional: Brasil e China em perspectiva
"Naturalmente, o processo de estrangeirização de terras leva a questionamentos a respeito da segurança alimentar e nutricional não apenas no âmbito doméstico, mas também internacional. Com a crise alimentar de 2008, diversos países buscaram evitar ficar dependentes da volatilidade do mercado internacional de alimentos através da aquisição de terras no Sul Global. O problema é que o processo se retroalimenta e essas aquisições geram ainda mais distorções na cadeia de produção de alimentos".
O presente livro é resultado dos debates do I Seminário sobre Estrangeirização de Terras e Segurança Alimentar e Nutricional, fi nanciado pelo Programa de Apoio a Eventos no País (PAEP) da CAPES e organizado pelo Instituto de Estudos da Ásia da UFPE com o apoio do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FOMERI/UFPB) e o Programa de PósGraduação em Direito da UFPE.
No seminário, foram realizadas conferências e mesas sobre o avanço do Land Grabbing, desenvolvimento rural no Brasil e na China, questões atuais a respeito da segurança alimentar e nutricional, agroecologia e agricultura familiar. O tema central que une todos os tópicos trabalhados é a crise ambiental internacional, que em conjunto com outros fatores, impulsiona a corrida global por terras.
Em fevereiro de 2019, o Institute for Public Policy Research (IPPR), com sede no Reino Unido, publicou um ensaio que tem por título “This is a Crisis. Facing up to the age of Environmental Breakdown”. O documento nos alerta que os impactos humanos sobre o meio ambiente alcançaram um estágio crítico, capaz de afrontar as condições sobre as quais a estabilidade socioeconômica seja possível. Trata-se de um processo em andamento que danifi ca fatores substantivos da vida no planeta, desde a própria estrutura da natureza não humana. Por consequência, há o avanço da desertifi cação, perda acelerada dos solos, a falta crescente de água nos meios rurais e urbanos, a redução da biodiversidade animal e vegetal, a acidifi cação dos oceanos, entre outros desastres.
Também o prestigioso Karlsruher Institut für Technologie (KIT) em estudo recente, liderado pelo Dr. Calum Brown, chegou a conclusões preocupantes, de que um quarto dos gases de efeito estufa antropogênicos vem do uso da terra e do esgotamento maciço associado de sumidouros naturais de carbono. Portanto, as ações mais comuns deveriam buscar reduzir signifi cativamente o desmatamento, arborizar grandes áreas e reduzir os gases de efeito estufa da agricultura. Os planos para reduzir esse danoso impacto climático deveriam sempre fornecer benefícios claros e imediatos para os agricultores, pequenos proprietários e silvicultores, já que são eles que podem mudar ativamente o uso da terra de maneira sustentável.
Segundo Brown, não existe um quadro que vincule os países em desenvolvimento para comprovar o que se comprometeram a realizar e, na maioria dos casos, não têm umplano defi nido de implementação. «Esta é , diz ele, talvez a maior ameaça para se atingir 1,5o C.” e continua: “O cronograma do acordo climático transcende a natureza de curto prazo das decisões políticas.” .
Outra dimensão grave do problema está associada à escassez de alimentos e à fome endêmica. Embora o sistema capitalista tenha capacidade de alimentar todos os seres humanos, a desigualdade econômica que tem se ampliado em escala global não permite o acesso sufi ciente para todos. Portanto, essas ameaças não-humanas/humanas talvez representem o maior desafi o enfrentado pela vida no planeta. E com certeza as ameaças ambientais recairão de modo muito mais forte sobre os setores mais pobres da sociedade mundial.
Segundo Philip McMichael, sob o atual arranjo político mundial, alimentar o mundo é um sonho. Embora haja comida produzida o sufi ciente e capaz de alimentar a população mundial, sua distribuição é imensamente desigual. Ele lista três razões que ajudam a explicar o problema:
1. A agricultura industrial baseada em bioengenharia substitui sistematicamente o agricultor que fornece alimentos para os pobres;
2. Os mercados respondem às pessoas que tem rendas, e não pessoas comuns;
3. O sistema agro-exportador, que é um imperativo estrutural do sistema estatal,exacerba essas tendências. Ironicamente, embora a tecnologia, o mercado e o comércio tenham sido reconhecidos como condições essenciais de desenvolvimento e prosperidade; as forças políticas se combinaram, sob a bandeira do desenvolvimento, para criar a fome em meio a abundância. A ironia se dá pela maneira como a tecnologia, os mercados e o comércio comprometem as condições ecológicas para a futura produção de alimentos.
A sustentabilidade global tem sido cada vez mais considerada como um pré-requisito para se alcançar o desenvolvimento humano em todas as suas escalas, desde as comunidades rurais, as cidades, nações e o mundo. Mas com a entrada do capitalismo em uma nova época geológica, o Antropoceno, onde as pressões humanas estão causando e fazendo crescer os riscos ambientais por um lado, e uma concentração das riquezas cada vez maior e turbinada pela fi nanceirização, por outro, pela primeira vez nos deparamos com o risco ambiental humanamente produzido, como o condutor da mudança planetária.
A agricultura está no coração dessa mudança. Todo um complexo de produção de alimentos baseado no latifúndio, na monocultura, nos pesticidas no desmatamento e na deterioração dos solos está sendo impulsionado para estimular a exportação de
commodities.
Dentro deste contexto, a estrangeirização de terras talvez seja o fenômeno mais saliente que corporifi ca todas as mudanças mencionadas. É através desta grilagem que, atualmente, os povos tradicionais são expulsos de suas terras, além de todo o dano ambiental dela decorrente.
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