Educação do Campo 25 anos: legado político-pedagógico
Continuamos lutando arduamente contra o fechamento das escolas do campo e por condições dignas de trabalhar nelas; além de enfrentar o negócio do transporte e combater o negócio da EAD.
Em 2023 completam-se 25 anos da I Conferência Nacional “Por uma Educação Básica do Campo”, realizada de 27 a 31 de julho de 1998, em Luziânia, Goiás [1]. Uma efeméride a ser co-memorada, celebrada recordando junto, com alegria, responsabilidade histórica e o zelo próprio de quem trabalha com formação humana. Não é o evento em si que comemoramos e sim o processo de luta e construção que a Conferência demarcou: o acúmulo que permitiu chegar até ali e o feito desde então. E que precisa avançar a partir do exame crítico do que construímos e da análise coletiva das exigências do momento atual.
No processo de preparação daquela Conferência partimos de um levantamento da realidade, do país, do campo, da educação, das escolas, e analisamos a gravidade da situação. Porém, naquele primeiro encontro entre sujeitos sociais do campo diversos para discutir sobre educação, não nos centramos somente nos problemas, porque tínhamos práticas, lutas, valores, símbolos, sonhos e objetivos a compartilhar. Há quem tenha nos chamado na época de românticos ou “idealistas”. Talvez em alguma medida tenhamos sido. Mas essa postura diante do que éramos e tínhamos em comum nos animou a lutar juntos contra o que nos impedia de avançar na construção que já fazíamos em nossas organizações, movimentos populares e escolas. Agimos sobre uma materialidade viva, que se movia contra nós, mas que estava prenhe de contradições e possibilidades a apreender.
Hoje, 25 anos depois temos o desafio de lapidar mais nosso método de análise coletiva da situação atual. Porque é preciso “atravessar o rio, sentindo as pedras”, como nos diz a sabedoria chinesa. A realidade histórica com a qual trabalhamos está mais complexa. É necessário compreender as determinações estruturais da crise social que o mundo atravessa junto com as contradições que precisam ser trabalhadas para que a realidade se movimente a favor das necessidades humanas da maioria.
Temos o desafio de converter esse “respiro” político que conquistamos em força de luta e de organização para um novo impulso de criação que nos fortaleça para as lutas sociais mais amplas nas quais já nos inserimos e precisamos mergulhar mais fundo.
Em 2023 também celebramos os 25 anos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), conquistado na luta pela terra coletivamente organizada. Programa que é necessário revitalizar como política pública, agora contando com a força de sua relação orgânica com o todo da Educação do Campo.
Há, portanto, várias dimensões do legado dos 25 anos a abordar. E certamente terá especial destaque a análise do nosso legado político-organizativo para identificar as necessidades de retomada e de avanço postas pela plataforma de lutas decidida pelo Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), nossa organização nacional, em novembro de 2022, frente ao novo momento político do país.
Esta exposição foi organizada pensando na dimensão do legado político-pedagógico desses 25 anos. Construção coletiva, diversa, contraditória e fecunda. Discutir e sistematizar esse legado, pondo-o em diálogo com as exigências da atualidade e nossa autocrítica coletiva sobre tudo que fizemos ou deixamos de fazer, pode ser uma das formas de celebração projetiva. Não se trata de comemorar para nos fixarmos no passado e sim para melhor planejar e realizar nossas ações no presente, pondo as mãos no futuro.
Nosso foco aqui será sistematizar alguns aspectos do legado político-pedagógico que se referem às escolas do campo [2]. A escolha desse foco tem a ver com os objetivos desse seminário, mas também com a finalidade primeira das lutas e da construção da Educação do Campo que foi garantir o acesso das comunidades camponesas à escola pública em seus territórios. E construídas efetivamente como parte deles.
Destaque-se de partida: 25 anos depois, continuamos tendo que lutar arduamente contra o fechamento das escolas do campo e por condições dignas de trabalhar nelas. Em um contexto que essa luta tornou-se necessária para o conjunto das escolas públicas. E além de enfrentar o negócio do transporte é preciso combater o negócio da Educação à distância com tecnologias digitais (EAD), que tem permitido fechamentos disfarçados.
Mas merece igual destaque o fato de que as escolas do campo passaram de “resíduo” do sistema à referência pedagógica e para além do campo. Na época da Conferência de 1998, as “escolas rurais” eram classificadas como “resíduos” porque logo desapareceriam todas e por isso não havia necessidade de ter política para elas, e menos ainda uma elaboração pedagógica específica. Conquistamos esse reconhecimento social pela forma de nossa luta e construção. Política e pedagógica. Temos práticas de raiz forte que puseram ramos que alcançam o mundo. Desde uma realidade específica assumimos o desafio de ajudar a construir um projeto educativo maior.
Essa conquista passa, entretanto, a ser outro motivo para que o sistema tente fechar nossas escolas: impedir que avancem desde o que já fazem, quebrar o vínculo orgânico da escola com processos de reconstituição da função social das comunidades camponesas que pode transformá-las em laboratórios materiais de um novo modo de viver e de educar capaz de confrontar as relações sociais capitalistas em seus fundamentos.
É sobre o legado político-pedagógico do trabalho de escolas do campo que se tornam referência pedagógica que nos desafiamos a pensar aqui. Apenas um ensaio aberto que visa motivar reflexões coletivas ao longo de 2023, especialmente em nossos processos formativos. Temos consciência de que esse legado é ao mesmo tempo desafio porque nossas práticas e lutas ainda não o fazem suficientemente abrangente e hegemônico, nem mesmo entre nós.
A pergunta que nos fizemos para pensar esta exposição: que aspectos da construção político-pedagógica nas escolas do campo nós podemos dispor aos que vêm chegando agora, aos que virão depois? Legado de práticas diversas, de diferentes sujeitos que constituem hoje a Educação do Campo, porém unitário em finalidades e princípios que vão se constituindo nas lutas e nas atividades formativas que fazemos em comum.
Aqui destacamos aspectos que dialogam com exigências sociais e formativas do momento atual. Porque isso nos põe mais à mostra os desafios de avanço: em que direção amplificar e dar mais radicalidade pedagógica ao que fazemos; e, sobretudo, nos indica o que não podemos abrir mão: em nossas lutas, em nossa formação como educadoras. Chegamos a sete aspectos para esse início de discussão.
1. Defendemos e tratamos a escola pública como um bem comum
Nesses 25 anos temos lutado para garantir escolas públicas no campo e do campo. Escolas que como um bem social comum, devem ser de todos e servir ao bem de todos.
Entendemos que assim como bens naturais, terra, água, ar, devem ser tratados como bens comuns, há bens sociais, com a função social de garantir direitos humanos, que também precisam ser tratados como bens comuns. Isso quer dizer que não devem ser vendidos e, portanto, não devem ser privatizados. Porque quando se tornam mercadorias, sempre visam primeiro o “bem” de seus donos, de quem as vende.
A escola é um bem público a que todos devem ter acesso em igualdade de condições. Em formas de sociedade ainda baseadas na desigualdade social substantiva esse acesso somente pode ser garantido pela ação do Estado, sem terceirizações privadas de nenhuma ordem. Sem privatizações nem meias nem inteiras, nem disfarçadas de “parcerias público-privadas”. E o Estado somente age nessa direção quando pressionado pelo povo.
Temos mostrado com nossa luta em defesa de escolas públicas do campo e com a criação pedagógica desde essa especificidade que sim, escolas públicas são compatíveis com respeito à diversidade, gestão coletiva, inserção territorial, autonomia pedagógica de coletivos. Como bem comum, a escola pública não é propriedade do Estado, de governos: ela é do povo, podendo ser construção social e pedagógica dos diferentes sujeitos que no dia a dia a fazem, sempre que essa construção se realize na direção do bem comum. E esse princípio não é compatível com a padronização pedagógica, avaliação para regulação externa, ranqueamento entre estudantes, docentes, escolas.
O momento atual das sociedades capitalistas é de destruição da escola pública, como de todos os bens públicos que se tornam privados para fins de lucro dos donos do negócio e ou de dominação ideológica de grupos ou de classe. O sistema precisa desse movimento mercantil para enfrentar a crise estrutural profunda que atravessa, mas ele está muito longe de ser, e mesmo de pretender ser, para o bem de todos.
Temos hoje o desafio político de massificar a defesa incondicional da educação pública. E nossa luta imediata é para alguma inflexão que ponha barreiras à avalanche privatista e de precarização da ação pública nas escolas. Em todas elas: campo e cidade.
Nossa luta específica continua: nenhuma escola pública a menos e muitas escolas públicas a mais em nossos territórios camponeses. É sempre necessário frisar: escolas presenciais com relações sociais reais, vida pulsando desde fora e desde dentro.
2. Discutimos coletivamente as finalidades sociais e educativas da escola
Aprendemos do legado de quem veio antes que a construção ou reconstrução pedagógica de uma escola a serviço do bem comum começa pela discussão coletiva e sistemática de suas finalidades sociais e educativas.
As finalidades são a direção consciente que orienta a formação dos/das estudantes. No todo da escola e em cada processo ou ação que ali se realize. Não são dadas como tentam nos fazer crer e nem devem ser de decisão de cada educadora, educador, da direção ou de quem esteja fora da escola. Não são absolutas nem valem para sempre. Precisam considerar o movimento da história e da formação humana que nele acontece.
Há diferentes níveis de finalidades educativas cuja discussão pode envolver diferentes círculos de sujeitos. Há finalidades gerais que se referem à concepção de educação assumida e o projeto social a que correspondem. Há finalidades específicas a determinada realidade – em nosso caso, pensadas desde a realidade do campo e sua historicidade. E há finalidades próprias de cada escola que encarnam o movimento geral na vida concreta de seu entorno e as necessidades formativas dos sujeitos reais, particulares, que atende. A discussão de cada escola precisa considerar esses diferentes níveis, modulados pela análise da atualidade e suas exigências e possibilidades formativas.
Na Educação do Campo essa discussão se firmou pela necessidade de defesa coletiva da especificidade das escolas do campo, do ponto de vista das políticas públicas e da construção pedagógica. Responder para que lutar por escolas no campo e qual o sentido de afirmar que sejam escolas do campo nos exigiu pensar coletivamente sobre a atuação social pretendida para nossas crianças e jovens, quem são elas, de que formação necessitam e qual a inserção que a escola pode ter no meio em que vivem. E já lá no início de nossas lutas comuns tivemos que responder por que não nos basta uma escola de ensino remoto e por que é preciso superar a “ruptura metabólica” entre escola e vida?
Essas perguntas precisam voltar sistematicamente às nossas discussões. Porque a realidade se transforma e a compreensão que vamos tendo sobre ela e sobre o trabalho que fazemos também muda. A cada início de ano letivo, a cada coletivo que se constitui é necessário rediscutir as finalidades do nosso trabalho educativo diante da situação atual e suas exigências formativas. Que traços de ser humano a transformação da realidade atual exige? Em que a defesa dos territórios camponeses diversos pode contar com o trabalho educativo das escolas? Para pensar se o que estamos fazendo, se os conteúdos educativos, se a forma de escola que temos dá conta das finalidades definidas coletivamente e do que precisamos transformar.
3. Reconstituímos a função social das escolas do campo
Função que se interconecta com os processos em curso de reconstituição da função social e ambiental dos territórios camponeses diversos.
A luta permanente pela construção e contra o fechamento das escolas do campo foi nos mostrando na prática que elas não se mantêm por si mesmas. São as comunidades que seguram suas escolas e têm força de pressão para garantir seu caráter efetivamente público. Fazem isso com suas lutas e desde a compreensão do lugar da escola em seus processos de resistência ativa, construída em discussões que a própria escola, se ali já existe, pode puxar.
Foi, por sua vez, a discussão coletiva das finalidades educativas das escolas que nos levou a compreender que uma escola é considerada do campo quando ela toma parte dos processos de produção da vida no campo. Pelo trabalho social e todas as suas conexões. E aprendemos que é possível transformar o entorno da escola no ambiente de realização de seu trabalho educativo específico de modo a conectá-lo com as questões da vida, para compreensão e ação sobre elas.
Iniciativas diversas de realizar a tão falada “relação escola-comunidade” nos permitiram entender que nossas escolas não podem ficar alheias às contradições que movem a realidade do campo. Sua função social implica tomar posição, política e prática, no confronto de lógicas de agricultura que está no centro desse movimento. E é ele que fecha ou pode abrir escolas no campo e põe determinadas exigências ao trabalho educativo.
Hoje, é esse movimento das contradições da realidade do campo e do conjunto da vida social que torna incontornável o desafio de inserir as escolas no movimento de construção massiva da agricultura camponesa de matriz produtiva agroecológica. Essa construção social é parte do confronto ao sistema do capital e seu impulso cada vez mais destruidor da vida, em todas as suas formas, naturais e sociais.
Já temos um legado a honrar de experiências diversas que buscam reconstituir a função social da escola pública pelo seu vínculo orgânico com processos de restauração da função socioambiental da terra e do trabalho camponês [3]. A atualidade exige fortalecer esse vínculo como parte da luta em defesa dos territórios camponeses (na rica diversidade de suas formas), que podem manter e multiplicar as escolas no e do campo. Assim como as escolas que existem têm o desafio de transformar em força pedagógica as lutas de que são fruto e ajudar na apropriação coletiva dos fundamentos desse novo modo de produção da vida e de conhecimentos que permitam compreender porque sua construção é necessária e seu avanço é estruturalmente incompatível com relações capitalistas de produção.
4. Organizamos a escola como lugar de pertencimento e formação humana
Aprendemos juntos que a escola pode ser construída pedagogicamente como um lugar que o humano que somos pode ser mostrado e que nos dispõe às transformações que tornem nossa humanidade mais plena. Lugar onde sentimos tomar parte, pertencer.
A língua indígena guarani tem uma palavra que nos diz sobre esse pertencimento: tekoha (ou tekoá) que é o nome dado à aldeia guarani como o lugar do modo de ser guarani. E para os guaranis a escola é parte do seu tekoha.
Essa sabedoria indígena, presente no legado da Educação do Campo, nos remete a pensar em uma escola que acolhe o ser humano que adentra a escola de uma forma que cada um sinta que ali pode dizer sua palavra, contar sobre sua origem e ser o que é, sem nenhum tipo de vergonha, constrangimento ou culpa. E coloca-se à escola a tarefa educativa de conhecer o meio em que esse ser humano vive e as relações que seu modo de ser expressa e toma parte, fazendo disso material de planejamento e atuação pedagógica.
Esse acolhimento, portanto, não visa uma acomodação que fixa as pessoas no que já são. Acolher é tarefa educativa necessária para que cada pessoa (estudante, educadora, pai, mãe…) se abra aos processos educativos que a podem levar a reafirmar ou transformar o que estão sendo. No tempo que precisem sem padronizações ou concorrências que o desrespeitem. Quando a escola se organiza como um lugar de ser humano, questões de diferentes dimensões da formação humana ficam postas para seu trabalho pedagógico. Daí que ele precise ser multilateral e sempre aberto a novas questões e possibilidades.
No âmbito da Educação do Campo temos ricas e diversas práticas de como tornar a escola um lugar do modo de ser indígena, quilombola, Sem Terra, ribeirinho, camponês, sem deixar de formar um ser humano que alcança o mundo. E desenvolvemos valiosos aprendizados sobre como confrontar relações desumanizadoras e como firmar traços formativos próprios da participação nas lutas e no trabalho, coletivamente organizados. Um legado a honrar e enriquecer.
O momento atual de desumanização crescente e ao mesmo tempo de contradições que tendem a impulsionar as lutas sociais populares, nos desafia a pensar com especial cuidado as intencionalidades pedagógicas da escola como ambiente de humanização, lugar de afirmação e transformação humana. Lugar de formação de lutadores e construtores, humanizados pela missão histórica de erigir um novo modo de produção da vida, uma nova forma de sociedade.
5. Construímos escolas conectadas com a vida
Vamos compreendendo que a complexidade da vida é o nosso grande objeto. Vida real, que pulsa com suas relações, contradições e possibilidades. Vida natural e social, que precisa ser compreendida para melhor ser cuidada, desenvolvida em todas as suas dimensões. Vida que nos põe exigências de conhecimento e também de valores e sabedoria para que se realize na plenitude humanamente possível.
A ruptura entre o trabalho educativo da escola e a vida real, concreta, que acontece ao seu redor foi instituída a partir de determinadas finalidades sociais que não visam o bem comum. Temos práticas que fazem uma crítica material a essa forma de escola.
Fomos aprendendo que uma “escola de ensino” e aprisionada na sala de aula não tem como superar essa ruptura e dar conta de educar para compreender e agir sobre a complexidade da vida. Porque essa totalidade precisa ser abordada em múltiplas dimensões e intencionalidades pedagógicas e no ambiente educativo dos diferentes tempos e espaços da escola. Aprendemos que o que existe e acontece no entorno da escola pode ser transformado em ambiente gerador da vida social da escola, tornando-se mediação real entre o trabalho educativo e as questões da vida concreta.
Muitas escolas do campo têm se desafiado a construir-se como uma escola de vida, em que a construção pedagógica se move pelo vínculo orgânico com processos de trabalho vivo que são base da produção da vida a ser compreendida nas suas relações e em perspectiva histórica. Nessas relações a escola ajuda a construir parâmetros para abordar as diferentes questões da vida. Ensinando e aprendendo a compreender e agir sobre elas.
Temos construído formas pedagógicas diversas para conectar escola e vida e ir desenhando nossa forma de escola do trabalho. É desafio avançar na sistematização e em discussões coletivas sobre finalidades e aprendizados comuns. Precisamos identificar e socializar mais amplamente experiências de subversão da disciplinarização dos conhecimentos que desconsidera as relações próprias de uma realidade viva que precisam ser compreendidas. Experiências que buscam reorganizar o trabalho com o conhecimento visando o todo da formação humana e suas diferentes dimensões, a partir de novas formas de organização curricular e de como concebem o plano de estudos da escola.
Diante das exigências formativas da atualidade é necessário avançar. Temos um desafio fundamental de enfrentar em nossos coletivos pedagógicos e processos de formação o debate sobre concepção de conhecimento e métodos de estudo da realidade viva, superando fragmentações e cisões inventadas para deixar a compreensão da realidade a meio caminho ou nem isso. Precisamos consolidar um modo de estudar que efetivamente leve à compreensão da complexidade da vida, em suas relações e transformações.
Merece nosso especial empenho avançar em nossos métodos de trabalho pedagógico com as ciências e as artes, as duas grandes formas de conhecimento produzidas pela humanidade e que precisam ter lugar prioritário na escola. Para isso é necessária uma abordagem crítica do acúmulo socialmente produzido na direção de restabelecer a unidade perdida entre formas diversas de conhecimento e de superar a cisão ainda presente nas escolas entre as ciências da natureza e as ciências sociais. Já compreendemos que essa tarefa pode ser facilitada se tomamos processos vivos de trabalho social como objeto de estudo privilegiado na escola.
Uma pergunta que pode nos orientar considerando finalidades educativas emancipatórias que temos em comum: de que conhecimentos sobre a realidade natural e social necessitam as novas gerações para que compreendam, se disponham e sejam capazes de tomar a si, de modo coletivamente organizado, sua missão histórica de construir uma nova forma de vida social, antes que a ordem capitalista torne nossa humanidade incapaz dessa construção?
6. Construímos relações sociais cooperativas e democráticas
Aprendemos dos diferentes modos de vida comunitária no campo e da organização coletiva própria aos movimentos populares que tomam parte da construção da Educação do Campo, que a escola não precisa ser um lugar de relações sociais hierárquicas, autoritárias, discriminatórias. Nem precisa alimentar o individualismo, a desigualdade e a concorrência insana entre estudantes, entre docentes, entre as famílias, entre as escolas.
Essa forma de relações sociais é a que sustenta ideologicamente a sociedade capitalista e por isso passou a dominar também a cultura escolar. Mas essas relações não são próprias da educação que visa o bem comum e a realização do ser humano. Ao contrário, elas estão levando a humanidade a se perder de si mesma e por isso precisam ser confrontadas em cada prática até que possam ser superadas no conjunto da vida social.
Temos escolas do campo com ricos ensaios de novas relações sociais a compartilhar. Escolas que buscam exercitar a gestão democrática, garantindo a participação igualitária da comunidade, do conjunto de educadores e de estudantes na tomada de decisões; que desenvolvem experiências de auto-organização de estudantes para que crianças e jovens tenham experiências de vida coletiva e de participação política; que se desafiam no cultivo paciente e persistente de relações de gênero e inter-raciais efetivamente igualitárias, superando no dia a dia os preconceitos que mesmo crianças, às vezes, já carregam. E vamos coletivamente aprendendo a enfrentar as tensões e os conflitos que novas relações sempre trazem antes que se consolidem como cultura.
O momento atual nos coloca um desafio urgente. Atravessamos um momento histórico de desumanização crescente e de quebra dos padrões básicos de sociabilidade humana. Precisamos ajudar a restabelecer parâmetros de relações sociais que a lógica do “vale-tudo” e do individualismo vem, perigosamente, deteriorando. Todos nos assustamos com os exemplos de desumanização, de crueldade, de violência, presenciados no cotidiano e, às vezes, entre nós mesmos.
A escola não tem a força material necessária para superar o caráter estrutural dessa deterioração social, humana. Porque ela é produto de uma determinada lógica de vida social. Mas a escola pode assumir uma posição crítica e tomar parte do confronto prático ao estado de barbárie a que essa lógica nos vai levando. O mínimo que educadores (pessoas e coletivos) com alguma forma de consciência do descalabro humano e social que assola nossa sociedade devem fazer é intencionalizar vivências que levem, especialmente as novas gerações, a sentir e compreender que tudo pode ser diferente do que lhes parece inevitável.
A realidade é sempre contraditória e por isso é histórica, se transforma. Há formas de vida não alienada dentro da sociedade alienante. Há práticas de solidariedade dentro da vida social que induz ao individualismo cego. Há processos formativos que já nos mostram a direção de outra forma de relação dos seres humanos entre si e com o todo da natureza e da sociedade. E são esses processos que precisam ser postos à mostra, tornados conscientes, vivenciados, fortalecidos.
Tenhamos presente: uma superação mais ampla das relações sociais desumanizadoras ainda dominantes não cairá do céu e sim virá de relações humanizadoras que já existem, mesmo que ainda impedidas de seu pleno desenvolvimento. Algumas das práticas que já realizamos podem nos parecer singelas, porém quando adequada e coletivamente intencionalizadas tornam-se força real para essa construção. Podem ajudar a preparar lutadores e construtores de uma forma de sociedade baseada na igualdade social substantiva, no trabalho cooperativo e na participação democrática de base popular, com envolvimento coletivo real na tomada das decisões que afetam o conjunto da sociedade.
A prática de novas relações sociais gera novas necessidades de aprendizagem e põe novos conteúdos educativos, por sua vez, exigentes de transformações na forma escolar como um todo para que sejam efetivamente desenvolvidos no cotidiano do trabalho pedagógico. Temos o desafio de avançar na socialização e discussão mais sistemática sobre como garantir as condições de realizar e avançar nessas práticas, desde finalidades educativas que nos colocam no rumo de uma vida social organizada para o bem de todos.
7. Vinculamos práticas de reconstrução político-pedagógica da escola a processos de formação de educadores
Esse vínculo é organizativo e de conteúdos educativos que fundamentem e fortaleçam essas práticas e seus sujeitos.
A valorização das educadoras e dos educadores, como pessoas e como profissionais, foi um princípio firmado já naquela primeira Conferência Nacional que realizamos em 1998. E essa valorização foi entendida como ter garantidas condições materiais básicas de trabalho e como direito de participação em processos de formação de educadores que criem condições político-pedagógicas para o exercício consciente do trabalho educativo. Agenda de luta e construção, coletivamente organizadas.
Fomos aprendendo que entre as condições de trabalho que precisam ser conquistadas está a livre criação de coletivos pedagógicos nas escolas, envolvendo seus diferentes sujeitos e incluindo o conjunto de profissionais da educação que ali atuam e sob sua responsabilidade de coordenação e animação. Sem coletivos pedagógicos fortes nenhuma transformação consequente da escola se realiza ou se consolida.
Temos ricas experiências de como vincular organicamente práticas de reconstrução social e pedagógica da escola com processos de formação de educadores, que as alimentam e fundamentam. Elas incluem a ocupação político-pedagógica de processos institucionais da chamada “formação inicial” visando uma profissionalização que não deixe de atender nossas necessidades educativas específicas. E a constituição de espaços e tempos de autoformação coletiva autônoma em cada escola, entre escolas, e com atividades mediadas por organizações e movimentos populares do campo, potencializando seu acúmulo político, organizativo e formativo.
Essa autoformação se conquista com luta, mas também com disciplina e disponibilidade de tempo pessoal para participação em coletivos de estudo, debate e, principalmente, de planejamento pedagógico cooperativo.
Práticas de transformação político-pedagógica que vêm se tornando referência para além delas e da própria Educação do Campo são aquelas que têm conseguido uma ligação orgânica entre a criação de coletivos pedagógicos e processos de autoformação. E que incluem neles a participação em atividades políticas mais amplas que dão acesso a análises mais gerais e sistemáticas do momento atual e permitem enxergar o trabalho que cada escola realiza em perspectiva histórica.
Alguns de nossos cursos de formação tem se tornado laboratórios vivos de experimentação prática desses aspectos político-pedagógicos que destacamos aqui como legado. São experiências diversas, mas com o princípio comum de garantir uma matriz formativa multilateral tal como a defendida para as escolas, com o diferencial que precisam incluir o preparo sobre como intencionalizar nas escolas as dimensões e os processos que integram essa matriz, e o tratamento rigoroso dos fundamentos de teoria social e pedagógica.
Nesse momento de culto exacerbado ao indivíduo e negação ideológica da vida social organizada em coletivos, torna-se desafio ajudar para que também nossas educadoras e educadores não caiam nas armadilhas do sistema e entendam que soluções individualizadas, por melhores intenções que possam ter, não tornarão nossa luta pela vida nem efetiva, nem mais confortável.
Precisamos avançar na conquista e na construção prática de processos de formação de coletivos de educadores que dialoguem com o legado que já construímos, avançando a partir das exigências da atualidade. E organizar espaços de diálogo entre os sujeitos das nossas práticas diversas, a partir do esforço necessário de sistematizá-las.
Para finalizar, lembremos que comemorar nosso percurso, tornar mais vivo nosso legado e o legado dos que vieram antes de nós, terá ainda mais sentido se feito na direção de avançar coletivamente na consciência de nossos objetivos estratégicos de transformação social, mantendo-os mesmo sob condições adversas. E de abrir caminho para realização desses objetivos de modo a nos devolver ou fortalecer a alegria pessoal de trabalhar com educação, com formação humana, o que inclui a formação do ser humano de nós mesmos.
Para o todo de nossa construção pedagógica a atualidade torna ainda mais forte o desafio da busca da universalidade: pensar desde nós, enxergando bem além de nós, como aprendizado e como construção coletiva. Raiz forte e ramos que alcançam o mundo.
Referências
[1] Elaborado a partir de exposição no “I Seminário Piauiense Híbrido de Educação do Campo”, realizado em 19 de dezembro 2022. Participação a convite da Coordenação de Educação do Campo da Secretaria de Educação do Estado do Piauí. Tema do Seminário: “Educação do Campo: desafios renovados e horizontes possíveis”. Mesa coordenada por Ivonete Vitor e compartilhada com Lucineide Barros. Texto concluído em 4 de janeiro 2023.
[2] Para retomar a análise de outras dimensões, cf. o texto “Educação do Campo 20 anos: um balanço da construção político-formativa”, feito para exposição no Encontro Nacional – 20 anos Educação do Campo e Pronera, realizado em junho de 2018. Publicado em: GUEDES, C. G., SANTOS, C. A., ROCHA, E. N.. ANJOS, M. P. e MOLINA, M. C. (organizadoras). Memória dos 20 anos da Educação do Campo e do PRONERA. Brasília: Editora da UnB, 2018, p. 118-132.
[3] Confira uma discussão mais detalhada sobre essa questão no texto “Função social das escolas do campo e desafios educacionais do nosso tempo”, disponibilizado eletronicamente em março de 2020.
*Roseli Salete Caldart é membro do Sector da Educação do MST e do Fórum Nacional de Educação de Campo (FONEC).
**Editado por Solange Engelmann