Descolonizar o imaginário. Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento
"Esta obra pretende contribuir com o desafio de pensar além do imediato e construir horizontes emancipadores para nosso continente, a partir das necessidades expressas por nossos povos. Os tempos são de urgência: afloram os sinais de falência das propostas políticas que, embora tenham canalizado a esperança da região por algum tempo, resignaram-se a exaurir essa potência caminhando pela linha da menor resistência e pactuando com o poder oligárquico...Reagrupar a energia social do continente, aprofundar nosso horizonte democrático e romper com o modelo primário-exportador que nos é imposto desde a Colônia certamente são aspectos que constarão de qualquer proposta transformadora para a América Latina."
Apresentação à edição brasileira
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6 de setembro de 2016
Ousar pensar “fora da caixa”
Por Gerhard Dilger e Jorge Pereira Filho
Com o capitalismo desenfreado que importam
ao “desenvolver-se”, nossos países se encontram
hoje à beira do deserto ecológico e do inferno
explosivo da miséria das maiorias. Como se não
bastasse, o servilismo mimético resultante ameaça
nossas raízes históricas e culturais.
Orlando Fals Borda
Hoje, dezoito anos depois que o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda apresentou seu diagnóstico, e dezoito anos depois da primeira vitória eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela, o ciclo inédito dos governos progressistas na América Latina, que tantas esperanças despertara em todo o mundo, parece encerrar-se, com algumas poucas exceções. A direita neoliberal, golpista ou não, e que sempre pode contar com o apoio dos governos e das empresas transnacionais do Norte global, está em festa. E a advertência de Fals Borda segue tão vigente como em 1998. De fato, a publicação deste livro no Brasil se dá em um momento oportuno: as autoras e os autores pertencem a uma esquerda plural e crítica e não se calaram diante de alguns dos enfoques mais problemáticos dos governos progressistas que, por pragmatismo ou convicção, se apegaram à lógica capitalista, em sua variante neodesenvolvimentista.
O maior êxito desses governos na América Latina consiste, sem dúvida alguma, em tirar da pobreza dezenas de milhões de pessoas. Além disso, no âmbito internacional, graças a uma política exterior que o ex-chanceler Celso Amorim denominou “altiva e ativa”, as vozes do Sul global foram ouvidas com mais força e se forjaram novas alianças. O “enterro” da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), em 2005, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, Néstor Kirchner e Hugo Chávez, e apoiado por uma amplíssima articulação de movimentos sociais, restará como marco mais importante desta cooperação regional. ( Veja também vídeo com a íntegra do debate de lançamento da publicação)
Ainda assim, os tímidos avanços na área social tiveram respostas ferozes das oligarquias regionais, que não hesitaram em promover golpes de Estado de novo tipo, como se tem verificado em Honduras (2009), no Paraguai (2012) e no Brasil (2016). Por uma série de fatores, esse campo de força progressista não foi capaz de construir mecanismos que pudessem barrar a atual ofensiva neoliberal na América Latina.
Na realidade, esses governos não conseguiram – ou não quiseram – aproveitar o boom das commodities a partir de 2003 para implementar reformas estruturais que apontassem para um horizonte pós-extrativista,[1] para não falar pós-capitalista ou ecossocialista. Diante de alianças pragmáticas com o agronegócio, por exemplo, a reforma agrária tem sido praticamente esquecida.
E a febre dos megaprojetos chegou inclusive ao aprazível Uruguai, onde o projeto de mineração de ferro a céu aberto Aratirí não saiu da etapa de planejamento por razões puramente econômicas. Ao mesmo tempo, continua a expansão do “país florestal” com enormes plantações de eucalipto e fábricas de celulose, impulsionada desde os anos 1990 pelo Banco Mundial, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e outras agências do capitalismo global.
Na Argentina, o governo direitista de Mauricio Macri aprofunda as apostas do fracking, da megamineração e do modelo sojicultor iniciadas durante os doze anos do kirchnerismo, e que, segundo Maristella Svampa e Enrique Viale, já tinham levado a um verdadeiro “maldesenvolvimento”.[2]
A Nova Maioria no Chile, formada em 2014 pelo Partido Comunista e pela Concertação de centro-esquerda – que, entre 1990 e 2010, apenas tinha modernizado o modelo neoliberal instalado por Augusto Pinochet –, tampouco dá sinais de que pretende livrar-se de sua nefasta dependência do extrativismo florestal ou da grande mineração de cobre e ouro.
Lucio Cuenca, do Observatório Latino-Americano de Conflitos Ambientais, adverte que é preciso estarmos alertas “para o extrativismo de Estado, porque, embora estejamos de acordo em nacionalizar, não queremos que a política de mineração seja a mesma praticada pelas transnacionais hoje em dia”.[3] No Peru, a primavera da esquerda durou apenas alguns meses, em 2011, até que os poderes estabelecidos fizeram o presidente Ollanta Humala “cair em si”.
O caso equatoriano é mais complexo: sua Constituição de 2008, construída em torno do conceito ainda aberto do Bem Viver[4] e com a inclusão dos Direitos da Natureza, não foi implementada. Ao mesmo tempo, abandonou-se a proposta visionária de deixar o petróleo embaixo da terra na parte oriental do Parque Yasuní.[5]
Guardadas as consideráveis particularidades de cada processo, a queda dos preços de alguns produtos primários – como o cobre no Chile, o petróleo no Equador e na Venezuela ou as exportações agrícolas no Brasil – mostra de maneira drástica o calcanhar de Aquiles da aposta continuada no modelo primário-exportador e da aliança com as forças políticas que o representam.
Segundo Edgardo Lander,
nos dezessete anos do processo bolivariano, a economia foi se
tornando cada vez mais dependente das receitas do petróleo,
receitas sem as quais não é possível importar os bens requeridos
para satisfazer as necessidades básicas da população, incluindo
uma ampla gama do que antes se produzia no país.[6]
O que Lander acrescenta vale, grosso modo, para todos os governos progressistas: “priorizou-se durante esses anos a política assistencialista em detrimento da transformação do modelo econômico; a pobreza foi reduzida sem alterar as condições estruturais da exclusão”.[7] De fato, os únicos governos progressistas que contam com uma situação estável, no momento em que esse texto é redigido, são o uruguaio e o boliviano.
No Brasil, o cenário de golpe contra Dilma Rousseff confere contornos emblemáticos para o fim do ciclo petista. A ofensiva contra a presidenta se inscreve, entre outros aspectos, em um roteiro novelesco de traições e capitulações protagonizado pelo vice-presidente Michel Temer e apoiado por setores políticos que também patrocinaram o golpe civil-militar em 1964: entidades patronais, fazendeiros e oligopólios midiáticos.
Repleto de simbolismo, o processo tem um significado explícito para as forças de esquerda que irromperam durante a resistência ao período de arbítrio. Se é verdade que o governo petista promoveu avanços sociais, o arranjo político conservador em que se apoiava guardava fragilidades tão evidentes que não resistiu a um cenário adverso, marcado pela retração econômica.
Não era mais possível, para o governo, manter a conciliação entre a feroz exigência do capital por taxas de lucros crescentes e as políticas sociais que apontavam timidamente para uma redistribuição de renda.
E o golpe colocou uma pá de cal na perspectiva de que as concessões ao poder oligárquico seriam uma contrapartida necessária para garantir a famigerada “governabilidade”.
O período do Partido dos Trabalhadores no governo poderá se encerrar, assim, sem que fossem atendidas demandas sociais históricas, forjadas em décadas de resistência popular e construção democrática, como a reforma agrária ou o fim da concentração dos meios de comunicação.
Nesse momento, a América Latina vive uma fase melancólica, talvez terminal, de alguns governos progressistas – Bolívia, Chile, El Salvador, Uruguai –, acompanhada pela ascensão de governos de direita, com novas roupagens, cuja agenda é conhecida: o aprofundamento do extrativismo, o desmonte das débeis conquistas sociais, a conformação do poder político a serviço das oligarquias regionais e a constituição de Estados repressores para criminalizar a dissidência e os movimentos sociais.
No entanto, são justamente muitos destes inúmeros movimentos, dos pingüinos chilenos ou dos secundaristas paulistanos, passando por comunidades indígenas, quilombolas ou camponesas, até as cooperativas da economia solidária, que vêm resistindo há tempos a esse projeto neocolonial e construindo alternativas ao capitalismo e ao colonialismo do século xxi.
Renovar horizontes
É neste debate que se inserem os treze ensaios reunidos nesta obra.[8] Os textos problematizam a noção de “desenvolvimento”, entendido hegemonicamente como um processo linear, ininterrupto, associado à “dominação da Natureza”, reduzido ao acúmulo incessante de mercadorias. Predomina aqui uma perspectiva crítica em relação à fetichização da técnica, convertida em reles instrumento para promover a racionalidade capitalista. No lugar do excludente e autoritário lema “ordem e progresso”, tão caro aos regimes pouco democráticos brasileiros, sugere-se uma narrativa radicalmente polifônica e diversa como horizonte para nossas construções coletivas.
Não se trata, porém, apenas da imprescindível crítica da coisificação do ser humano, submetido a uma modernidade infecunda, esterilizada de sentidos. Os autores partem do resgate da tradição latino-americana – e do diálogo com os saberes de seus povos ancestrais invisibilizados pelo pensamento eurocêntrico – e para assim desvendar novas articulações e novos horizontes para o continente. E um aspecto fundante dessa abordagem é a proposição de um convívio ressignificado com a Natureza, a partir de uma relação pautada não mais pela instrumentalização, mas pela harmonia e pela autodeterminação.
Daí o papel-chave que se inscreve a crítica ao extrativismo, compreendido nesta obra com uma ênfase distinta da acepção usual no Brasil. Cabe aqui um importante esclarecimento. A rigor, em português, o termo remete a qualquer atividade praticada pelo ser humano que envolve a obtenção de produtos da Natureza, abarcando a extração vegetal, mineral e animal, em uma relação que pode ou não ser pautada pelo equilíbrio com o meio ambiente. Trata-se de uma atividade, assim, que remonta à própria interação do homem com seu habitat.
Segundo essa definição, consideram-se hoje atividades extrativistas tanto a coleta realizada por povos indígenas ou a pesca efetuada por comunidades litorâneas, como também a exploração desenfreada do solo para a mineração. Tradicionalmente, no entanto, no Brasil, a palavra vem sendo associada ao convívio equilibrado do homem e seu meio. A legislação que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza é um exemplo disso, ao definir extrativismo como “sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis”. Uma aplicação prática dessa acepção são as chamadas “Reservas extrativistas” (Resex), espaços territoriais protegidos cuja finalidade é justamente proteger os meios de vida e a cultura das populações tradicionais, bem como assegurar o uso sustentável dos recursos naturais de uma localidade.
Nesta obra, porém, extrativismo é sinônimo da extração desenfreada de recursos naturais, sem preocupação com a sustentabilidade. Assim, quando se lê extrativismo, os autores estão se referindo à remoção de grandes volumes de recursos naturais destinados à exportação, não se limitando aos produtos minerais ou ao petróleo. Trata-se de uma ênfase na reprimarização da economia, que, para ser efetivada, quase sempre requer um sistema político pouco democrático. Sem diálogo com as necessidades locais do território, necessita de um Estado repressor para impor sua racionalidade diante de qualquer dissidência e, dessa maneira, manter uma divisão desigual de seus rendimentos.
O primeiro texto desta coletânea, de Alberto Acosta, esclarece bem o que os autores destes ensaios entendem por extrativismo: consiste em uma “uma modalidade de acumulação que começou a ser forjada em grande escala há quinhentos anos” e que “esteve determinada pelas demandas das metrópoles – os centros do capitalismo nascente”.
Essa perspectiva crítica em relação à instrumentalização da Natureza também dá o tom dos textos assinados por Camila Moreno, Verena Glass, Felício de Araújo Pontes Júnior e Lucivaldo Vasconcelos Barros. Esses autores problematizam, em diferentes abordagens, os impactos negativos de uma relação predatória com o meio ambiente, da inserção subordinada no mercado internacional, da financeirização das questões ambientais, das violações decorrentes de megaempreendimentos.
Maristella Svampa e Eduardo Gudynas compartilham dessa crítica, mas enfatizam a necessidade de construções que extrapolem a noção de desenvolvimento tão cara a determinados governos da região, inclusive aos progressistas, seja partindo das novas gramáticas de lutas sociais da América Latina, seja relacionando algumas propostas para a transição ao pós-extrativismo a partir do Bem Viver. Esse também é o caso do texto escrito por Margarita Aguinaga Barragán, Miriam Lang, Dunia Mokrani Chávez e Alejandra Santillana, que assinalam como o feminismo pode contribuir com essa discussão, articulando processos de descolonização e despatriacalização. Mario Rodríguez situa esse debate no ambiente urbano, propondo a reconfiguração das cidades a partir de outros modelos de viver e conviver.
Klaus Meschkat, Ulrich Brand e Edgardo Lander destacam o papel do Estado nos processos de transformação, com especial atenção para os desafios e limites relacionados aos governos progressistas latino- -americanos. Nesse sentido, o texto de Alexandra Martínez, Sandra Rátiva, Belén Cevallos e Dunia Mokrani Chávez aprofunda a discussão sobre as dificuldades de se transformar as instituições, refletindo em particular sobre experiências ocorridas na Bolívia, na Colômbia, no Equador e na Venezuela. Por fim, Horacio Machado Aráoz encerra a coletânea com um texto atualizando o debate sobre as alternativas ao desenvolvimento após o recente refluxo das forças políticas progressistas que hegemonizaram o continente na última década.
Esta obra pretende, assim, contribuir com o desafio de pensar além do imediato e construir horizontes emancipadores para nosso continente, a partir das necessidades expressas por nossos povos. Os tempos são de urgência: afloram os sinais de falência das propostas políticas que, embora tenham canalizado a esperança da região por algum tempo, resignaram-se a exaurir essa potência caminhando pela linha da menor resistência e pactuando com o poder oligárquico. Pensar “fora da caixa” (nas palavras da nossa companheira equatoriana Esperanza Martínez), reagrupar a energia social do continente, aprofundar nosso horizonte democrático e romper com o modelo primário-exportador que nos é imposto desde a Colônia certamente são aspectos que constarão de qualquer proposta transformadora para a América Latina.
São Paulo, julho de 2016
Gerhard Dilger é jornalista, formado em Letras e Sociologia. Mora na América Latina desde 1992, onde trabalhou como correspondente para die tageszeitung (taz), neues deutschland, Evangelischer Pressedienst (epd), Der Standard e Die Wochenzeitung (WoZ), entre outros. Desde 2013, é diretor do escritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo para o Brasil e o Cone Sul, em São Paulo.
Jorge Pereira Filho é coordenador de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo. É formado em Comunicação Social e cursou Geografia na Universidade de São Paulo (usp), onde é mestre e doutorando em Comunicação Pública.
Descolonizar o Imaginário – Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento
Organização: Gerhard Dilger, Miriam Lang, Jorge Pereira Filho
1ª edição brasileira, Fundação Rosa Luxemburgo
São Paulo, 468 páginas, 2016
ISBN 978-85-68302-07-1
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Fonte: Fundação Rosa Luxemburgo
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