Compromissos da FASE contra a mercantilização do clima e pela justica climática
As mudanças climáticas e a mercantilização do clima estão afetando diretamente os grupos sociais com quem a FASE atua no enfrentamento e na proposição de alternativas ao insustentável e desigual modelo de produção, distribuição e consumo.
Nas periferias urbanas e nos territórios em disputa contra o agronegócio os efeitos da mudança do clima atingem principalmente os grupos sociais urbanos vulnerabilizados, que vivem em moradias precárias e sem acesso a serviços de saneamento, os povos tradicionais, camponeses e agricultores e agricultoras familiares, sem terras e extrativistas, com forte incidência sobre as mulheres.
De fato, as fortes alterações no regime de chuvas, as enchentes e deslizamentos em periferias urbanas e áreas rurais, a semi-aridização de partes da Mata Atlântica e do Cerrado, o aumento da desertificação em áreas do Nordeste, a sucessão de secas no Sul, compõem um cenário de emergência social e ambiental.
As mudanças climáticas são o resultado de um modo de produção, distribuição e consumo baseado na exploração intensiva dos recursos naturais, que considera a natureza e os bens comuns - água, terra, ar - como recursos a serem infinitamente explorados e privatizados. A crise do clima no mundo não é uniforme, nem democrática. Afeta mais os países do Sul do que os do Norte, responsáveis por 80% das emissões de gases do efeito estufa (GEE), provenientes em sua maioria da queima dos combustíveis fósseis. E nos países do Sul, afeta mais intensa e diretamente os grupos sociais que menos emitem os gases do efeito estufa porque menos consomem, e que mais protegem as florestas e os sistemas hídrico e climático.
Por um lado, a Justiça Climática – entendida como o princípio que estabelece que o peso dos ajustes à crise climática deve ser suportado por aqueles que historicamente foram responsáveis pela sua origem e não pelos que menos contribuíram e que são as principais e potenciais vítimas das mudanças climáticas - indica um caminho de intervenção estratégica da FASE : a crise do clima reclama por alternativas ao modelo de desenvolvimento global, que enfrentem as desigualdades econômicas, sociais, ambientais, o desequilíbrio Norte-Sul, as desigualdades no interior dos países, e que garantam o direito a padrões dignos de consumo à maioria excluída do acesso à energia e outros bens essenciais.
Por outro, a FASE discorda das supostas “soluções” ao problema climático, tal como apresentadas, desde o Protocolo de Kyoto e das Conferências das Partes (COPs), pelos Estados nacionais, bem como, pelos Bancos e Instituições Financeiras Internacionais e pelas grandes corporações transnacionais. As metas de redução de emissões de CO2, os instrumentos financeiros, jurídicos e políticos das propostas compensatórias, os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL), as propostas de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD), merecem maior questionamento na sociedade brasileira, notadamente junto aos povos, populações e regiões mais vulneráveis às consequências das mudanças climáticas. O mercado de carbono, como panacéia de solução para a crise climática, desvia o foco das principais e urgentes ações de desconstrução progressiva do modelo de desenvolvimento vigente nas sociedades industriais do Norte e reproduzido pelas elites do Sul; e retarda as mudanças estruturais nos padrões de produção, distribuição e consumo global. Os projetos de MDL em curso ou em negociação reforçam o mesmo modelo excludente, continuando a sacrificar populações para a instalação de pequenas centrais hidrelétricas, projeto de plantações de árvores, entre outros, mas desta vez em nome do meio ambiente.É preciso dizer que não consideramos que os problemas climáticos serão resolvidos apenas pela adoção de medidas técnicas e tecnológicas.
Consideramos que é preciso enfatizar a responsabilidade do Norte pela grande maioria das emissões de CO2 e que, portanto, o enfrentamento da crise do clima passa fundamentalmente por mudanças nestes países. No entanto, isso não significa que devemos deixar de apontar a responsabilidade do Brasil nas emissões causadas pelo modelo de desenvolvimento vigente, que devora florestas e recursos naturais. Para manterem as emissões de GEE e o modelo do sobre-consumo no Norte e entre as elites do Sul, através do mercado de carbono, os Estados e corporações incentivam os plantios homogêneos de eucalipto, a ampliação do monocultivo da cana de açúcar para etanol, a construção de grandes hidrelétricas, a regularização de terras de grileiros, bem como a energia nuclear, que apenas aprofundam a posição subordinada e as desigualdades sócio-ambientais do Sul, comprometendo inclusive a segurança alimentar. Sem falar das indústrias eletro e hidro intensivas de siderurgia, do alumínio e da petroquímica, transferidas para países do “Sul”, e que mascaram assim reais emissões de GEE feitas para perpetuar os padrões de consumo vigentes. É esse modelo que os sucessivos governos adotaram no país, sendo responsáveis, portanto, junto com a grande maioria dos setores produtivos, pelo atraso do país em enfrentar a crise climática.
A FASE, em diferentes dimensões e regiões, está engajada em várias ações de enfrentamento das injustiças ambientais e climáticas e na popularização das experiências democráticas e sustentáveis promovidas pelas populações do campo e da cidade, e pelos povos da floresta. Exemplos concretos são a promoção da agroecologia e o fortalecimento da agricultura familiar; a formulação de propostas de políticas públicas que reconheçam e valorizem os serviços públicos ambientais prestados por comunidades tradicionais; as diversas lutas de movimentos sociais urbanos pela reforma urbana, pelo direito a cidade, pela melhoria das moradias, do transporte coletivo e do saneamento.
A pressão sobre o território em particular por parte do agronegócio, a depreciação das atividades da agricultura familiar e camponesa e do agroextrativismo e a penetração de valores ligados à sociedade contemporânea fazem com que nenhum setor social possa continuar vivendo em regime de economia fechada. Questionamos, porém, a remuneração pelo mercado de grupos sociais que prestariam “serviços ambientais”, pois significaria associar esses grupos a estratégias de mercado estranhas a sua vivência, em condições de desigualdade e subordinação às estratégias empresariais.
Para a FASE, a noção de commons deve ser resgatada. Ao manejar de maneira sustentável suas propriedades, suas posses e seus territórios, camponeses, extrativistas, quilombolas e povos indígenas cuidam do bem comum. É dever da sociedade e do Estado reconhecer a importância e o trabalho desses grupos sociais na preservação do meio ambiente, apoiar e viabilizar políticas públicas de reconhecimento desse papel. Essas políticas devem se traduzir em apoio financeiro para assegurar as atividades sócio-produtivas - tais como manejo florestal comunitário, pesca artesanal, manejo dos recursos aquáticos, agro-floresta, plano de uso etc – que garantem a reprodução sócio-cultural da comunidade e a preservação dos recursos naturais, em detrimento de atividades que, além de não assegurar a sobrevivência e a reprodução desses grupos sociais, destroem o meio ambiente.
I. Sobre o Plano Nacional de Mudanças Climáticas
O Plano Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC-Brasil), apesar de representar certo avanço, demonstra a dificuldade do governo brasileiro no enfrentamento sério das mudanças climáticas. Ele apresenta ações genéricas de mitigação, adaptação, pesquisa e desenvolvimento que reunidas compõe uma colcha de retalhos, corroborando a posição brasileira de exportador de commodities para o Norte, buscando atrair para o País os créditos de carbono, pouco alterando as causas estruturais da crise climática e social do País.
Seu primeiro objetivo “fomentar aumentos de eficiência no desempenho dos setores da economia brasileira na busca do alcance das melhores práticas”, não coloca o debate do atual modelo produtivo brasileiro, exportador de semi-elaborados de alto custo no que tange ao uso de água, minérios, energia, agroquímicos e carbono, como no caso da soja, do minério de ferro e produtos siderúrgicos, da celulose, da carne bovina.
No segundo objetivo, ao “buscar manter elevada a participação da energia renovável na matriz elétrica...”, o governo promove a construção de mais hidrelétricas, sem investir na diversificação das fontes, senão marginalmente, na promoção da economia e da eficiência,na repotenciação das usinas já existentes e na melhoria das linhas de transmissão, passando ao largo dos impactos já conhecidos das grandes barragens sobre as populações ribeirinhas, em todo Sudeste, Sul e mais recentemente no Centro-Oeste e na Amazônia, bem como do debate acerca do alto custo domiciliar da energia para as famílias brasileiras.
No terceiro objetivo, ao “fomentar o aumento sustentável da participação dos bio(sic)-combustíveis na matriz de transporte nacional e ainda, atuar com vistas à construção de um mercado internacional de biocombustíveis sustentáveis”, o governo promove um novo boom de expansão do monocultivo da cana de açúcar, sem alterar significativamente as históricas relações sociais e ambientais de produção, como em Pernambuco. Também não pauta o setor de transporte, um dos principais responsáveis pelas atuais mudanças climáticas, no que tange à valorização do transporte coletivo em detrimento ao individual. Cabe destacar que as cidades brasileiras são marcadas por grandes aglomerações com forte concentração populacional somada a periferias também muito densas, resultando em longas distâncias entre casa e trabalho e em imensos engarrafamentos. Esta dinâmica está altamente relacionada a grande participação que têm os transportes nas emissões de CO2 no Brasil e deve ser levada em consideração no PNMC.
No quarto objetivo, ao “buscar a redução sustentada das taxas de desmatamento, em sua média quadrienal, em todos os biomas brasileiros, até que se atinja o desmatamento ilegal zero”, o Plano Nacional não assume as ações de defesa dos povos das florestas, de regularização e titulação de suas terras como estratégia central da preservação ambiental e redução das emissões, bem como não calcula a interferência do modelo de integração regional e os efeitos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) nas próprias florestas e seus povos.
No quinto objetivo, “eliminar a perda líquida da área de cobertura florestal no Brasil até 2015”, o Plano Nacional propõe a duplicação dos atuais 5,5 milhões de hectares de plantios homogêneos para 11 milhões de hectares, até 2020. Utilizando o conceito latu sensu de floresta, irão promover a expansão dos desertos verdes de pinus e eucalipto, no ES, BA, PI, MG, RS, PA, seja para abastecer indústrias de papel e celulose; seja para abastecer os pólos siderúrgicos, onde a resistência social concomitantemente se expande em larga escala; seja para expandir a produção de dendê na Amazônia para a fabricação de agrocombustível.
No sexto objetivo, “fortalecer ações inter-setoriais voltadas para a redução das vulnerabilidades das populações”, não se prioriza os grupos sociais mais afetados pelas mudanças climáticas, no sentido da construção da Justiça Climática.
No sétimo e último objetivo, ao “procurar identificar os impactos ambientais decorrentes da mudança do clima e fomentar o desenvolvimento de pesquisas científicas para que se possa traçar uma estratégia que minimize os custos sócio-econômicos de adaptação do país”, o Plano Nacional prioriza o desenvolvimento de tecnologias do mercado de carbono, como no caso dos MDLs; e em nada recorre à enorme e tradicional sabedoria dos povos florestais e camponeses no manejo sustentável dos recursos naturais.
Portanto, para a FASE, o PNMC precisa ser mais consistente e deixar de ser uma colcha de retalhos de ações, deve buscar maior coerência entre as políticas propostas, incluindo metas em todos os campos relacionados ao enfrentamento das mudanças climáticas, e principalmente, deve partir de um propósito de mudança no padrão de produção e sobre-consumo atual, buscando medidas que visem transitar para um novo modelo de sociedade. Ademais, os outros planos nacionais já implementados ou em discussão como o Plano Nacional de Recursos Hídricos e o Plano Nacional de Saneamento Básico devem estar em sintonia com o PNMC, estabelecendo sinergias entre suas ações.
II. Sobre a contribuição da FASE para o enfrentamento das mudanças climáticas.
Há quase cinco décadas a FASE se encontra em processo permanente de construção e de acumulação em diversos temas nos territórios em que atua, por meio da parceria com as populações e grupos sociais, aperfeiçoando sua visão sobre desenvolvimento e se identificando com uma concepção sócio-ambiental. Neste sentido, a partir das suas práticas educativas desenvolvidas junto às populações, organizações e movimentos sociais parceiros, participou da construção de uma proposta de política pública denominada PRÓAMBIENTE apresentada durante o Grito da Amazônia 2000, que propõe um programa de desenvolvimento rural sócio-ambiental voltado à produção familiar rural agrícola, agroflorestal, extrativista, pesqueira artesanal, indígena e/ou outras formas de produção tradicional da Amazônia Legal.
Outra iniciativa é o Fundo Dema, criado em 2003, fruto da doação do MMA/IBAMA de seis mil toras de mogno extraídas ilegalmente, apreendidas na região de Altamira, Oeste do Pará. É um fundo permanente de financiamento de projetos de proteção ambiental, manejo florestal comunitário e ações de desenvolvimento sustentável e inclusão social. A FASE foi indicada por movimentos sociais da região como donatária do mogno recolhido para administrar o fundo, em parceria com a Fundação Viver, Produzir, Preservar (FVPP) e Prelazia do Xingu.
A FASE contribuiu por meio de seu Programa Regional Espírito Santo para a criação, em 2004, do Grupo de Durban para Justiça Climática, onde organizações de diversos países articulam críticas ao mercado de carbono e apóiam grupos locais de resistência. Além disso, a FASE é membro da rede Justiça Climática Já!, uma rede internacional criada durante a COP 13, em Bali 2007, que congrega atualmente mais de 180 organizações de todo o mundo que lutam em prol da justiça climática, e vem participando ativamente da preparação para as mobilizações durante a COP 15, em Copenhague, dezembro 2009. No plano nacional, a FASE é membro do GT Clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio ambiente e o Desenvolvimento – FBOMS.
III. Nossas visões e propostas
Nesse sentido, a FASE se posiciona e trabalha com alguns conceitos que servem para guiar sua atuação na discussão sobre clima, em geral, e sobre estes mecanismos, em particular:
- A justiça e a dívida climáticas devem ser os princípios para qualquer negociação sobre mudanças climáticas.
- A mudança no modelo de produção, distribuição e consumo deve ser o pano de fundo para qualquer negociação sobre mecanismos de enfrentamento das mudanças climáticas e políticas que visem este enfrentamento.
- As medidas de mitigação e adaptação aos efeitos do clima devem ir à direção contrária dos mecanismos de mercado e rumo a políticas públicas nacionais, regionais e internacionais que priorizem:
(i) estratégias estruturais para a urgente redução das emissões e do sobre-consumo.
(ii) na área rural, os sistemas agro-florestais, o manejo comunitário das florestas nativas, a agroecologia, a titulação das terras indígenas e quilombolas (e de populações agroextrativistas), o reconhecimento social e econômico do papel, do trabalho e das atividades produtivas sustentáveis realizadas por comunidades rurais e tradicionais para a humanidade) Por conseguinte, entende que essas populações devem receber o apoio governamental necessário para tornar viável uma economia baseada no uso sustentável da floresta.
(iii) nas cidades, a garantia do acesso das maiorias excluídas a fontes de energia limpas e baratas; a moradias seguras; ao saneamento ambiental; aos planos de prevenção e enfrentamento de enchentes, com monitoramento permanente das áreas de risco; e a sistemas de transporte coletivo com energia limpa ancorados em planos de encurtamento das distâncias entre moradia e local de trabalho.
- O gasto de energia envolvido nos longos circuitos do comércio global de mercadorias é um importante fator de agravamento das mudanças climáticas, e esta é mais uma razão para seguirmos resistindo ao avanço dos monocultivos de soja, cana, eucalipto e outros, voltados para exportação. É preciso encurtar as distâncias entre produção e consumo de alimentos, investindo no fortalecimento dos mercados locais através do abastecimento alimentar das cidades pela agricultura familiar e camponesa. A segurança e soberania alimentar no campo e na cidade é, portanto, elemento central e constitutivo de nossa noção de Justiça Climática.
- As comunidades, populações tradicionais e grupos vitimizados devem ser sempre osprincipais beneficiários pelos fundos públicos e voluntários. E as políticas públicas e os acordos internacionais ambientais e climáticos devem ser orientados para essas populações e não para a preservação dos privilégios das elites.
- A FASE apóia a criação de políticas e fundos voluntários e públicos desde que não atrelados a mecanismos de mercado.
- Em relação às negociações sobre REDD, a FASE manifesta sua preocupação quanto a possibilidade do mecanismo premiar quem mais desmatou; das florestas se tornarem apenas reservatórios de carbono e inviabilizarem o uso sustentável pelos povos da floresta; do mecanismo servir como compensação para a emissão de gases de efeito estufa em outros pontos do planeta; e pela estrutura que está sendo estabelecida não diferenciar florestas naturais ou recompostas perenes, de plantações homogêneas que serão abatidas em poucos anos. A FASE critica as propostas que relacionam qualquer medida ou fundo ao mercado de carbono, e a gestão por parte das Instituições Financeiras Multilaterais, e vem formulando proposições que partem da noção de bens comuns , de detenção do desmatamento, articulados à necessidade de criação de um conjunto de fundos voluntários e de políticas públicas. Estas propostas se apóiam em nossas ações referentes à gestão territorial e constituição de territórios das populações e povos, práticas agroecológicas e agroflorestais, ações de transformação e comercialização de produtos, bem como a garantia da soberania e segurança alimentar.
- Nos preocupa sobremaneira o fato do Brasil liderar o ranking internacional de projetos para o mercado de carbono, ao mesmo tempo em que é o País que mais emite por causa do desmatamento e da queima de florestas e de vegetação, o que torna ainda mais urgente tanto a crítica organizada da sociedade, quanto a execução de medidas concretas que alterem o próprio modelo de desenvolvimento.
Por fim, entendemos que para se alcançar a Justiça Climática é necessária a criação de um novo padrão de desenvolvimento, democrático e ambientalmente sustentável, com cuja construção a FASE se compromete junto aos parceiros e redes com as quais atua.
FASE
Brasil/Agosto 2009