"Com o aquecimento global, um quarto dos furacões do mundo será devastador"
Nunca uma espécie que habita a face da Terra mudou, de forma tão radical e global, as condições no planeta quanto nós, seres humanos. Elevamos a temperatura e acrescentamos a rios, lagos e oceanos substâncias e sedimentos que não existiam.
Somos comparáveis a uma “força tectônica”, como a que modificou a estrutura da Terra pouquíssimas vezes em bilhões de anos, a ponto de pesquisadores estarem propondo mudar o nome da época geológica atual: sairíamos do Holoceno, inaugurada com o fim da era glacial, e ingressaríamos no Antropoceno, a “época dos humanos”.
A entrevista é de Rodrigo Lopes, publicada por Zero Hora, 18-02-2017.
A proposta, do holandês Paul Crutzen, Nobel de Química em 1995, é defendida por Carlos Afonso Nobre, um dos principais cientistas brasileiros, doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), ex-presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e curador do Museu do Amanhã. O prédio impressionante no Rio, quase flutuando sobre a Baía da Guanabara e assinado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, põe o dedo em nossa consciência: que mundo deixaremos para nossos filhos, qual nosso papel na mudança no ambiente? Entre as alterações provocadas pelo homem está a elevação da temperatura do planeta:
– Estamos condenando populações que vivem em ilhas oceânicas a mudarem de lugar. Se (o aumento da temperatura do planeta) passar de 4ºC, cidades que conhecemos há séculos e milênios, na Europa e na Ásia, e mesmo as mais jovens das Américas, Rio de Janeiro, Nova York, deixarão de existir – afirma Nobre, nesta entrevista.
O cientista pesquisa os gases que provocam o efeito estufa desde os anos 1980. Climatologista, Nobre é o único brasileiro no grupo de trabalho que estuda, junto à comunidade científica mundial, a formalização da época do Antropoceno. Na entrevista a seguir, ele fala sobre os efeitos da ação do homem na Terra; o ceticismo de parte dos pesquisadores, em sua opinião, potencializado pela indústria de combustíveis fósseis; a luta contra o aquecimento global em tempos de Donald Trump na Casa Branca – os EUA são, junto com a China, um dos maiores poluidores mundiais – e sobre investimentos em ciência no Brasil.
Eis a entrevista.
A ideia do antropoceno defende que o ser humano alterou tanto as condições atmosféricas e ambientais do planeta Terra que estamos vivendo em uma nova época geológica. Qual o tamanho do estrago?
Nenhuma espécie desde que existe vida aqui – a primeira delas as cianobactérias nos oceanos, há 3 bilhões de anos – conseguiu transformar o ambiente, de forma global, em tão pouco tempo. Isso fez com que o professor Paul Crutzen, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Química em 1995, propusesse que somos a causa do surgimento de outra época geológica. Estamos há 12 mil anos em uma era que os geólogos chamaram de Holoceno, em que o clima relativamente ficou estável. Desde que existe o Homo sapiens, esses foram os 12 mil anos mais estáveis. Isso fez com que, pela primeira vez, os humanos pudessem estabelecer assentamentos. Antes, eram nômades. Com isso, houve o desenvolvimento da agricultura e das civilizações. Os geólogos dão nomes para as eras em cima da característica dos sedimentos, o material biológico carregado pelos rios, depositado no fundo de oceanos e lagos. Eles começam a ver certas características biológicas fósseis nesses sedimentos e, com base nisso, concluem: “Durante essa época aqui os sedimentos foram dessa natureza, essas espécies existiam centenas de milhões de anos atrás nesse registro fóssil, já nessa camada de sedimentos, deixaram de existir”.
E o que podemos esperar dessa nova era? Episódios climáticos extremos?
Se uma civilização futura olhar para esses sedimentos, irá ver que, de uns 200 anos para cá, são totalmente diferentes em todos os aspectos. Vamos supor que a espécie humana desapareça e algum disco voador, outra espécie, comece a fazer a reconstrução do tempo, daqui a alguns bilhões de anos. Eles falariam: “Nessa época aqui, alguma coisa diferente estava acontecendo nesse planeta...” Vão começar a olhar os registros: “Olha, tem uns negócios aqui...” Vão fazer a análise química e ver que é plástico. Isso nunca existiu antes. Vão ver também que há uns isótopos radioativos do carbono 14 que não existiam antes. É o resultado dos isótopos radioativos introduzidos pelo homem com as explosões nos testes nucleares, nos anos 1940, 1950, 1960. Foram banidos depois, mas deixaram rastros. Essa modificação foi chamada antropoceno: “ceno”, época em grego, porque é a época do homem, do “antropo”. Esse conceito ficou muito poderoso. A sociedade mundial de geólogos criou um grupo de trabalho e está para normatizar que estamos em uma outra época geológica. Isso deve ocorrer em uma reunião daqui a três anos. Há uma discussão metodológica, se começou em 1945, quando tem uma marca muito poderosa, o começo dos testes nucleares, ou se foi quando começou a aparecer o plástico. Nós nos tornamos uma força tectônica equivalente às forças geológicas que causaram grandes mudanças de épocas e eras geológicas, como o vulcanismo, os movimentos das placas tectônicas, os terremotos e as grandes extinções de espécie.
O senhor afirmou em uma entrevista para a emissora alemã Deutsche Welle que esses eventos extremos chegaram mais rápido do que o esperado. Chegamos a um ponto em que não adianta mais reduzir o aquecimento global?
O ponto de retorno seria na geração dos meus pais, nas décadas de 1960, 1970. Se essa geração tivesse tido a consciência que nossa geração tem hoje, dava praticamente para não afetar muito. Se diminuíssem as emissões (de gases poluidores) ou se escolhessem outro modo de desenvolvimento, o impacto no ambiente seria pequeno, e o planeta voltaria a seu estado anterior. Já passamos desse ponto. A Convenção do Clima (das Nações Unidas) exige esforço gigantesco para que o aumento da temperatura do planeta fique abaixo de 2ºC. Já temos 1ºC. E o ponto de não retorno a 1,5ºC é certo que já atingimos, porque com a quantidade de gases do efeito estufa que lançamos, só o que está na atmosfera garante isso. Hipoteticamente, se parássemos de emitir hoje, a temperatura subiria a 1,5ºC. Não dá para diminuir abaixo disso. E todos os esforços que o acordo de Paris clama são para não deixar passar de 2ºC, porque haveria consequências catastróficas. As geleiras da Groenlândia e da Antártica ocidental derreteriam. Isso significa o aumento do nível do mar de 10 a 15 metros em mil a 2 mil anos. Pode parecer distante, mas acontecerá. Então, em 500 anos, podemos ter entre três a quatro metros de aumento no nível do mar. Com isso, você está condenando populações de ilhas oceânicas a se mudarem. Os países-ilha deixarão de existir. E vão ter de ser reacomodados. Isso é para 2ºC. Se passar de 4ºC, o aumento do nível do mar pode chegar a 15 metros. Isso significa a zona costeira mudar totalmente, e cidades que conhecemos há séculos e milênios, na Europa e na Ásia, e mesmo as mais jovens das Américas, como Rio de Janeiro, Nova York, deixarem de existir como as conhecemos. A Holanda, nesse cenário, deixa de existir. Será oceano. Vietnã, 80% será oceano. É quase como criar Atlântida (o lendário continente submerso): as pessoas vão fazer viagens submarinas para ver o que foi um dia Nova York, a zona sul do Rio. Se as mudanças climáticas continuarem, mesmo com 2ºC, estima-se que desaparecerão da face da Terra entre 10% a 15% de todas as espécies. Cerca de 95% dos recifes de corais desaparecerão dos oceanos tropicais. Isso é o que dá o sentido de urgência. O aumento de 1,5ºC não dá para recuperar. O de 2ºC, teríamos que reduzir as emissões praticamente a zero até 2050 e depois estabilizar em zero até o final do século. No século 22, teríamos de passar a ter emissões negativas, ou seja, retirar gás carbônico da atmosfera. Mas isso é teórico, estamos longe disso. Na prática, estamos aumentando emissões.
A que o senhor atribui que tantos não acreditem no aquecimento global?
Raramente há um assunto científico em que exista tanto consenso quanto o aquecimento global. O percentual de cientistas que não têm dúvidas de que é a ação humana que causa o aumento da temperatura, com graves consequências, passa de 98,5%. Isso é raríssimo em qualquer área da ciência. Na medicina os consensos são muito menores. Por exemplo: o vírus da zika causa má-formação cerebral em fetos. Quantos cientistas da área médica endossam essa tese? Não passa de 70%. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fez um alerta máximo, todo mundo está preocupado, mulheres evitam engravidar em regiões com a epidemia, isso inclusive vai ter efeito demográfico nessas cidades. A proteção do clima global exige criar uma economia sem combustíveis fósseis, e os interesses econômicos afetados são muito grandes. A indústria fóssil responde por quase 20% do PIB mundial. É poderosíssima, e mesmo que dure só mais 20 anos, quer sobreviver e vender petróleo, carvão e gás natural e ganhar dinheiro.
Mas ainda há ceticismo de parte da comunidade científica.
É uma coisa extremamente confinada aos EUA. Não se ouve mais falar em cientistas céticos (com relação ao aquecimento global) na Europa, na América Latina, na Ásia. Esse 1,5% se divide em várias categorias: há uma fração que não acredita que os gases estão aquecendo o planeta. Tem quem diga até que o planeta não está aquecendo; outros dizem que, sim, o planeta está aquecendo, mas o gás carbônico aumenta na atmosfera por causas naturais, fissuras, erupções vulcânicas e não pela queima de combustíveis fósseis. Isso já foi descartado porque, com estudos que analisam as moléculas de gás carbônico na atmosfera, se consegue ver pela fração isotópica o carbono 13, produzido pela queima de carvão, diferente do que tem na atmosfera e do que tem embaixo da terra; e há um terceiro grupo que diz que o gás carbônico aquece o planeta, só que as projeções estão exageradas. Esse consenso (sobre o aquecimento global) é quase como a lei de gravitação de Newton. Até o consenso científico sobre a teoria da relatividade geral de Einstein é menor.
Donald Trump já disse que o aquecimento global é “uma bobagem”. Que consequências vê com ele na presidência dos EUA?
Lógico que otimistas não estamos. Mas ele ainda não deu uma resposta completa. Falou no começo da campanha que era besteira. Depois, disse: “É, tem alguma coisa aí, parece que tem”. Mas a pessoa que ele colocou na Agência Ambiental dos EUA ( Scott Pruitt) é representante da indústria de carvão, já processou inclusive essa agência... Ele colocou como secretário de Estado um ex-presidente da maior empresa petrolífera do mundo, a Exxon Mobil (Rex Tillerson, ex-CEO da empresa). Ele tem colocado no governo pessoas que, no passado, ou eram da indústria fóssil ou já defenderam o carvão. Não dá para ser otimista. Por outro lado, as pessoas dizem que o processo de tirar os EUA do Acordo de Paris, diplomaticamente falando, não só traria enorme desprestígio como seria algo lento, uma negociação internacional, que 95 países firmaram. Não é uma coisa que Trump, sentado na cadeira, simplesmente declara: “Não quero mais”.
Tivemos, em 2004, o primeiro furacão no litoral brasileiro, o Catarina, no Sul. No Sudeste, de tempos em tempos há enchentes. O que disso tudo se pode atribuir às mudanças climáticas e o que são fenômenos que ocorreriam independentemente delas?
O furacão Catarina foi atípico, não havia registro e as condições atmosféricas e oceânicas não são propícias para a formação de furacões no Atlântico Sul. Não foi relacionado com o aquecimento global. Aconteceu, era mesmo furacão, terminou sua “vida” como furacão de intensidade 1, a mais fraca, mas causou bastantes danos na divisa entre RS e SC. O mais provável com o aquecimento global não é o surgimento de coisas que nunca aconteceram. É a mudança no número de vezes que acontecem coisas que conhecemos. Por exemplo: furacões. O número de furacões é de 80 a 90 por ano. Com o aquecimento global, os furacões de categoria 4 e 5, como o Katrina (em 2005, em Nova Orleans, nos Estados Unidos), que representam no máximo 15% desses 90, vão subir para 25%. Um quarto dos furacões que acontecem no mundo será devastador. Os fenômenos extremos se tornam mais frequentes e quase sempre mais intensos. O que já acontece no sul do Brasil. Chuva acima de 50mm em 24 horas. Antes, um fenômeno desses em certa localidade acontecia uma vez a cada cinco anos. Agora, ocorre todo ano duas vezes. Vamos diferenciar: a origem de um evento extremo pode ser dentro da variabilidade natural, como a seca no Nordeste, La Niña e El Niño, mas o impacto hoje normalmente é maior por causa do aquecimento global.
Nos EUA, institutos conseguem antecipar a chegada de um furacão a tempo de as autoridades organizarem a evacuação de populações nas áreas que serão atingidas. Por que no Brasil não temos o grau de precisão e antecipação da previsão meteorológica?
A previsão do tempo no Brasil é muito boa. Se você olhar na TV, nos jornais, não ficamos muito a dever à previsão em outros países. Hoje em dia, os modelos matemáticos de previsão são globais. É possível entrar no Centro Americano de Meteorologia e pegar a previsão para todo o globo. O Brasil também tem aqui no Inpe, fui eu que implementei esse projeto de modernização a partir de 1991. Como cidadão, olho as previsões e estou muito satisfeito. Ninguém faz previsões com mais do que alguns dias, uma semana é o limite máximo. Passando disso, em nenhum lugar do mundo se faz previsão com qualidade. Se quero saber se posso fazer um evento fora de casa daqui a três meses, não dá. Agora, se você me perguntar: “O La Niña, que está acontecendo agora no Oceano Pacífico, vai causar uma seca no Rio Grande do Sul?” Sobre esse tipo de previsão estamos no mesmo nível de países desenvolvidos.
O Museu do Amanhã, no Rio, do qual o senhor é curador, é um exemplo de valorização da ciência. Mas é uma exceção. Como é fazer ciência em um país cuja educação não é prioridade?
O Brasil avançou muito cientificamente. Houve uma preocupação em aumentar os financiamentos para pesquisa, que cresceram nas últimas décadas em relação a 30 anos atrás. O Brasil em 2015 formou 18 mil doutores, eu estava na Capes à época. Isso tem muito a ver com o aumento dos financiamentos para a pós-graduação brasileira. Cresceu demais a pós-graduação brasileira, com mais de 4 mil programas em todo o Brasil. Melhoramos muito a qualidade da nossa ciência, hoje somos produtores de conhecimento respeitados internacionalmente, somos o 13º país em número de artigos científicos publicados no mundo. Tudo isso graças a investimentos que foram feitos tanto em nível federal, principalmente através das agências federais, CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e também das agências estaduais de financiamento, as FAPs (Fundações de Amparo à Pesquisa). Tivemos muito sucesso nisso e, lógico, depende de financiamentos públicos.
Como a ciência no Brasil será afetada a médio prazo pelos cortes no financiamento de pesquisas impostos pela crise financeira?
Essa crise demostrou que, na hora de efetuar cortes orçamentários no mais alto nível de governo, a ciência não teve valorização. Enquanto na crise de 2008 países que passaram por recessões mais ou menos profundas preservaram os investimentos em ciência e desenvolvimento tecnológico como pontes para o futuro, cortando outras coisas, o Brasil cortou pesadamente os orçamentos das agências de financiamentos, todas. A gente viu que, nos altos escalões dos tomadores de decisões governamentais, a ciência não é uma área que tem o mesmo grau de (valorização) da educação e da saúde. Ciência está relacionada com educação e é estratégico. O CNPq teve corte de 50% em três anos. Torço para que o Brasil volte a ter um ciclo de crescimento econômico e, quem sabe, com menos corrupção. Que comece a olhar com mais atenção não só educação e saúde, que não tem nem o que discutir, mas também para a ciência, que é o futuro. Se o Brasil diminuir investimentos em ciência e formação de pesquisadores, em pesquisa universitária, corremos o risco de um enorme retrocesso. É uma questão que a sociedade como um todo tem de valorizar.
21 Fevereiro, 2017
Fonte: IHU