Carta Política da VI Assembleia-Geral da ADECRU – 2014
Neste momento em que o povo moçambicano continua em suspensão pós-eleitoral e as comunidades rurais vivendo uma incerteza dramática e estranguladora, 21 integrantes da Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU) de Moçambique, em representação de 45 membros e mais de 200 militantes estivemos reunidos em nossa VI Assembleia Geral Anual 2014, na Vila de Muxungue, Distrito de Chibabava, Província de Sofala, entre os dias 19 e 22 de Dezembro corrente.
Durante os quatro dias debatemos, analisamos e aprovamos entre outras temáticas as que se seguem: a organização e coordenação político-associativa; Relatórios Narrativos e Financeiros 2014; Plano de Actividades e Orçamento da ADECRU 2015; revisão, alteração e aprovação dos Estatutos da ADECRU; eleição dos membros dos órgãos sociais da ADECRU e a realidade das comunidades rurais e do País dos últimos 10 anos.
A partilha e troca de experiências dos membros durante os quatro dias faz parte de um processo de construção e coordenação colectiva de todos os militantes e órgãos sociais da ADECRU com as comunidades rurais, baseado em um amplo diálogo e vivências inter-comunitárias visando fortalecer a auto-organização e a inserção produtiva das comunidades rurais, membros e militantes, aprofundando os princípios político-ideológicos e estratégicos que orientam e fundamentam a luta da ADECRU em prol do desenvolvimento das comunidades rurais e do nosso País.
Em relação a realidade das comunidades rurais e a situação do País apontamos para:
1. A história dos últimos 10 anos e a realidade actual demonstram que Moçambique tem sido vítima da “obsessão dos doadores” e das instituições financeiras multilaterais por um lado, e por outro da conivência e patrimonialismo da elite no poder, provando inequivocamente as evidências irrefutáveis de que as autoridades moçambicanas têm falhado no seu principal objectivo de representar o povo e assegurar a soberania, a paz, os interesses e as prioridades nacionais de governação e de desenvolvimento. 20 Anos depois de uma Paz quebrada, o País vive a última e violenta fase de aprimoramento e fortalecimento contínuo da estratégia de implementação das políticas de (des) ajustamento (des) estrutural no continente africano que contribui fatalmente para um maior empobrecimento da população e das comunidades rurais.
2. As estatísticas indicam que, no período entre 1996 e 2009 a taxa média anual de redução da incidência da pobreza em Moçambique foi de 1.17%, porém dados actuais revelam que no período subsequente até ao presente ano, a taxa definida de redução da incidência da pobreza de 2.6%, não foi atingida, pelo contrário a taxa decresceu atingido fasquias negativas em relação ao ano base (1996). Em 2011 o índice de incidência da pobreza situava-se em 54.7%, sendo que o objectivo do governo plasmado no PARP é de sua redução para 42% em 2014, e abaixo de 40% em 2015, facto que se revela distante evidenciando o total falhanço do Governo. Outrossim, dados do Inquérito Demográfico e Saúde (IDS – 2013), revelam que 43% das crianças menores de 5 anos têm altura baixa para a sua idade (classificadas como sendo crianças que sofrem de subnutrição crónica moderada), 44% sofrem de desnutrição crónica aguda (baixo peso por idade), 20% sofrem de subnutrição crónica grave, índices muito acima dos aceites pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujas consequências são irreversíveis para o País.
3. Existência de um padrão de governação e desenvolvimento excludente, hegemónico, dominante, explorador, oligárquico e imperial assente no crescimento económico pela via da extracção e exportação de commodities e penetração e fixação de grandes grupos financeiros e corporativos, que exacerbaram a disputa pelo acesso e partilha das riquezas naturais ao longo da última década.
4. Surgimento e propagação de estruturas corruptas, desiguais, injustas e oligárquicas nacionais, regionais e internacionais que usurpam e capturam a soberania do País e todos os interesses nacionais, transformando Moçambique numa plataforma e campo de batalha entre interesses capitalistas excludentes e mercantilistas conflituosos de diversos quadrantes do mundo.
5. Penetração e expansão de instituições financeiras multilaterais globais e gigantes corporações transnacionais, muitas das quais financiadas pelos estados mais imperialistas do mundo, que convertem ecossistemas, biodiversidade, terras, água, riquezas naturais, diversidade e patrimónios culturais e históricos comuns e a vida dos Povos em mercadorias.
6. Nova onda de ataque e expansão das políticas neoliberais expressa numa nova conquista e expansão mercantilista e domínio dos territórios, o saque e delapidação das riquezas naturais, bens comuns, patrimónios culturais e históricos, a crescente degradação da vida das comunidades, exclusão e marginalização dos povos, desmantelamento dos seus direitos e usurpação de suas fontes seculares de vivência.
7. O retorno das companhias mercantilistas e majestáticas, camufladas em pressupostos filantrópicos de libertar Moçambique e a África da fome e da miséria, ignorando os fracassos de diversas incitativas do género implementadas no passado pelas mesmas agências multilaterais e potências imperialistas, representa uma das formas mais abusivas e agressivas de exploração do nosso País e continente, que tem prejudicado o investimento interno e dos interesses de largas maiorias de camponeses e de comunidades rurais.
Neste âmbito, denunciamos:
1. A Indústria mineira e de hidrocarbonetos que se baseia numa matriz energética perversa e destruidora do nosso meio ambiente, violação de direitos e injustiças sociais e ambientais e têm convertido o nosso País em fonte de extracção de commodities e foco de instabilidade e incerteza social, económica e política. O avanço do agronegócio e os impactos da expansão das monoculturas de árvores nas províncias de Niassa, Manica, Nampula, Sofala e Zambézia provoca e fomente a expropriação e usurpação de terras, violação de direitos humanos, a violência e criminalização de militantes e lideranças comunitárias e de movimentos e organizações sociais. Políticas e programas agrários como Nova Aliança para Segurança Alimentar e Nutricional, os Programas ProSavana, o Projecto de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio e ProSul, plantações florestais de eucalipto e pinheiro desenvolvidas pela Portucel, Lúrio Green Resources, Indústrias Florestais de Manica, representam uma ameaça e perigo para comunidades rurais.
2. Denunciamos as concessões arbitrárias de grandes extensões de terra pelo Conselho de Ministros, sem que tenha havido o mínimo de consulta junto das comunidades atingidas, como são os casos da Portucel, Lúrio Green, Chikweti, entre outros projectos.
3. Instituições financeiras multilaterais globais e gigantes corporações transnacionais que garantem o controlo das principais regiões geoestratégicas e agroecologógicas de Moçambique, detentoras de mais de 70% das potencialidades das riquezas naturais e do subsolo do País, situadas nos Corredores de Desenvolvimento de Maputo, do Limpopo, da Beira, de Nacala, de Pemba e Vale do Zambeze, Bacia do Rovuma e Vale do Rio Lúrio, com objectivo de torná-las em regiões de fluxo e expansão de capital agro-industrial, financeiro e exportação de matérias-primas para os mercados globais, aprofundando desta forma os graves problemas relativos a usurpação de terra, deslocação involuntária e reassentamentos de milhões de pessoas, degradação ambiental e conflitos sócio-ambientais.
4. Notamos com grande preocupação e indignação que temáticas nacionais sobre questões ambientais atinentes a conservação e usufruto da biodiversidade e compromissos do País estejam a ser negociados e tratados sem a participação efectiva e soberana das populações e comunidades rurais directamente atingidas pela mineração e hidrocarboneto, dependendo de agendas internacionais dos Governos, corporações e algumas agências internacionais.
5. Assistimos a total violação de instrumentos nacionais e internacionais de protecção das comunidades como a Lei de Terra, legislação mineira e ambiental, o Regulamento de Reassentamentos Resultantes de Actividades Económicas, bem como instrumentos internacionais como as Directrizes Voluntárias sobre a Governação Responsável de Posse de Terra, Florestas e Pescas do qual Moçambique é Estado signatário, e a total ignorância e violação dos princípios do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais que consagra o Direito Humano a Alimentação (DHAA) o qual é negado a mais de 20 milhões de moçambicanos e que o Estado moçambicano se recusa a ratificar este instrumento.
6. Brutal exclusão e marginalização de vários segmentos da sociedade moçambicana na definição das prioridades nacionais de desenvolvimento e de governação, aumento exponencial do fenómeno de usurpação de terras, precarização das condições de vida, violação e desmantelamento dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Evidências documentadas e devidamente sistematizadas demonstram que há uma crescente propagação de casos de conflitos sócio-ambientais e violação de direitos humanos e liberdades fundamentais, excessiva influência e interferência do poder corporativo no funcionamento e decisões das instituições do Governo e do Estado, legalmente soberanas.
Defendemos:
1. Um modelo de desenvolvimento inclusivo, participativo e democrático assente em estratégias endógenas que respondam aos anseios dos cerca de 25 milhões de moçambicanos, possibilitando transformações quantitativas e qualitativas na vida económica, social, política e cultural do país, corporizadas outrora na Agenda 2025. Que a agricultura enquanto a base de desenvolvimento nacional constitucionalmente consagrada, seja vista na perspectiva de desenvolvimento dos sistemas produtivos camponeses, vistos nas suas dimensões pluriactivas, com vista ao alcance da soberania alimentar.
2. O carvão mineral, o gás, o petróleo e todos os recursos naturais de Moçambique fazem parte dos bens e patrimónios comuns do povo moçambicano pelo que não podem continuar em saque para alimentar um modelo de desenvolvimento hegemónico e fracassado de produção, distribuição e consumo, sobretudo ao serviço de poucos Países coloniais. Que as comunidades deixem de ser vistas como beneficiárias, mas sim, como actores chave na tomada de decisões com base em suas perspectivas endógenas de desenvolvimento.
3. Recusamos a acreditar que possa haver qualquer possibilidade de convivência no mesmo espaço entre o agronegócio e a agricultura de conservação praticada milenarmente pelas comunidades rurais e populações nelas residentes, porque o agronegócio implica desflorestação, uso de agrotóxicos e destruição de ecossistemas e biodiversidade. Nos opomos firmemente, contra os processos de reassentamentos para dar lugar ao agronegócio, e defendemos que estes sejam proibidos por lei.
4. Responsabilizamos o Governo e o Estado moçambicano diante da pressão sobre a terra, reassentamento forçados das populações e destruição de seus meios de vida e ameaças ao acesso à água, florestas, patrimónios culturais, e todos os conflitos sócio ambientais causados.
5. Reafirmamos o nosso engajamento incondicional em defesa da terra e dos recursos naturais, pela reforma agrária soberana e pela garantia e protecção dos direitos comunitários das populações. Defendemos e reafirmamos que os direitos à terra, água, à saúde, educação, habitação e alimentação adequada estão directamente ligados, pelo que, resistiremos contra todas iniciativas de sua alienação, hipoteca, pilhagem e colonização.
Reafirmamos nossas linhas político-associativas:
A natureza comunitária e colectiva de nossas lutas requer o fortalecimento institucional da ADECRU e suas estruturas de base, inspirando a construção de um movimento popular em articulação nacional e internacional na denúncia e visibilidade de conflitos e das propostas populares. As vivências, reflexões e experiências que construímos com as comunidades rurais e com os militantes da ADECRU, antes e durante a VI Assembleia-Geral deste ano, demonstraram que as temáticas da nossa causa comunitária e humana representam os desafios e as lutas diárias que emergem e se desenvolvem em defesa das comunidades rurais atingidas pela mineração, monoculturas de árvores, violação de direitos, desigualdades, injustiças sociais e ambientais e pelo modelo neoliberal de desenvolvimento capitalista.
A ADECRU reafirma por isso seu engajamento e compromisso na organização das famílias vivendo nas comunidades rurais para uma resistência alternativa em defesa dos direitos, sonhos, aspirações e dignidade dos povos e comunidades rurais, impulsionando os focos da consciência cidadã e a agenda soberana de desenvolvimento solidário e justo. Seguimos por outro lado, firmes na construção e fortalecimento de nossas alianças estratégicas e renovação de nosso engajamento e lutas comunitárias, assegurando que as comunidades sejam protagonistas e mais engajadas no desenvolvimento soberano e sustentado.
Estamos cientes que isso requer uma organização, militância, coordenação político-pedagógica e formação política assentes na consciência militante e articulação entre as várias instâncias de Coordenação.
O objectivo principal da nossa estratégia de luta consiste na comunicação, inserção, mobilização e educação popular, inspirando as pessoas para um engajamento democrático e inserção produtiva na construção de um poder popular e uma agenda soberana de desenvolvimento sociopolítico, económico e cultural das comunidades rurais. Isso passa por:
1. Impulsionar os focos da consciência cidadã para o engajamento democrático e inserção produtiva de diversos actores na construção de uma agenda comunitária soberana de desenvolvimento sociopolítico, económico e cultural das comunidades rurais.
2. Defender a observância e construção de uma agenda comunitária dos direitos humanos e liberdades fundamentais das comunidades rurais e do povo moçambicano, lutando por justiça social, económica e ambiental e contra todas as formas de injustiças e desigualdades, sobretudo no seio das camadas excluídas.
3. Promover a democratização da produção e partilha de saberes e conhecimentos através da realização de pesquisas, mobilização e cooperação solidária para construir um poder popular e uma agenda soberana desenvolvimento das comunidades rurais.
4. Contribuir para o aumento da consciência cívica e engajamento democrático em defesa dos direitos sociais e económicos e da popularização dos serviços sociais e desenvolvimento de infra-estrutura social nas comunidades rurais do País com destaque para a saúde, a educação, a agricultura, o transporte e a habitação.
5. Garantir o acesso e o controlo dos recursos naturais, patrimoniais e históricos às comunidades rurais, com enfoque para a terra, florestas e água.
6. Contribuir para o aprofundamento da mobilização e auto-organização das comunidades camponesas e rurais em seus territórios como forma de promover e fortalecer os princípios e actividades de economia comunitária e inter-comunitária em resistência alternativa aos padrões hegemónicos e construção de alternativas viáveis.
7. Intensificar a mobilização de todos os segmentos da sociedade comprometidos com a luta dos povos, multiplicando práticas e acções de promoção de diálogos e convergências a partir das comunidades rurais onde a disputa pela ocupação e divisão de terras e recursos naturais se expressa na forma de conflitos sócio-ambientais, com consequências desastrosas na saúde e na vida das populações para que as estruturas corruptas, desiguais, injustas e oligárquicas do actual padrão hegemónico e imperial de desenvolvimento sejam liquidadas e transformadas.
8. Lutar pelos direitos, interesses e aspirações soberanas das comunidades rurais para o controlo e domínio colectivo de terras, água, riquezas naturais e patrimónios culturais e históricos comuns dos Povos e em defesa da biodiversidade e dos ecossistemas.
A VI Assembleia Geral da ADECRU saúda, encoraja, solidariza-se e apoia incondicionalmente todas as lutas incansáveis dos povos em curso no País e no mundo em defesa da dignidade, justiça social e acesso e controlo produtivo dos bens da natureza, entre os quais: terra, água, patrimónios históricos e culturais. A acção corajosa de reivindicação e os sacrifícios que têm sido consentidos para eliminar a exploração e opressão representam uma demonstração de engajamento para qual vai nossa solidariedade militante à todos os envolvidos.
Queremos igualmente deixar vincado que nossa esperança pela vitória dos povos oprimidos e vítimas das políticas neoliberais é inesgotável e para a sua conquista dirigimos todo o nosso esforço e apoio. No êxito desta luta estão também as nossas esperanças e uni-las-emos solidariamente as dos pobres e despossuídos de Moçambique e do mundo inteiro, pondo todas as nossas forças e inteligência ao serviço do seu triunfo inevitável e construção de justiça baseada num poder popular, que coloque homens e mulheres na mesma linha de dignidade humana.
Muxúngue, Dezembro de 2014
Conselho de Coordenação Politico-Associativa da ADECRU
Fuente: ADECRU