Brasil: Sete lições da Desembargadora Vivian à CTNBio

Idioma Portugués
País Brasil

"Confira abaixo as sete lições que a Desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha deu aos membros da CTNBio. Todos os trechos foram retirados do voto da desembargadora, demonstrando que a luta por direitos também pode ser travada no Poder Judiciário, âmbito que pode e deve estar mais atento à realidade de quem vive no campo e às necessidades dos consumidores."

10, junho, 2014

 

Terra de Direitos, 10/06/2014

 

Voto divergente em julgamento da ACP sobre milho transgênico é passo importante para barrar contaminação genética

 

A desembargadora Vivian Josete, do TRF4, apresentou fundamentos técnicos que comprovam ineficiência da norma da CTNBio que deveria estipular regras para evitar a contaminação genética dos milhos crioulo e convencional pelo transgênico.

 

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) julgou, na quarta-feira (4), a Ação Civil Pública (ACP) que questiona as regras adotadas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que teriam por finalidade evitar que milho transgênico contaminasse variedades crioulas e convencionais. Por dois votos a um, o TRF4 confirmou a validade da norma da CTNBio. No entanto, a decisão foi marcada pelas divergências entre os votos dos desembargadores.

 

A Desembargadora Marga Inge Barth Tessler, relatora do processo, votou afirmando a validade da Resolução Normativa de nº 4 (RN4), mesmo tendo constatado que “a Resolução é certo, não é perfeita, poderia ser melhorada, mas no mínimo é um critério razoável que não é de ser afastado sem prova firme e segura.” Assim, para a desembargadora, que foi acompanhada pelo Des. Federal Carlos Eduardo Thopson Flores Lens, existem dúvidas quanto à efetividade da RN4, mas essas imperfeições não são suficientes para condenar a CTNBio a editar nova norma.

 

Contudo, no voto divergente a Desembargadora Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha, em mais de 40 páginas, afirmou decisivamente que RN4 da CTNBio é absolutamente ineficiente para garantir a coexistência entre as variedades de milho transgênico e convencionais e crioulos. Para a desembargadora, a dúvida quanto à efetividade da RN4 deve ser interpretada segundo o princípio constitucional da precação, devendo-se condenar a CTNBio a editar nova regra. Segundo ela, a RN4 “foi analisada primordialmente pelo prisma da insuficiência da prova produzida pelos autores, e não pela ótica da insuficiência da própria norma impugnada. Reconhecida sua imperfeição (tanto em relação às exigências legais como à sua aplicação prática), não vejo motivo para declarar higidez que não ostenta”.

 

Criada em 2007 pela CTNBIO após determinação judicial, a RN4 prevê que a distância entre uma lavoura comercial de milho geneticamente modificado e outra, de milho não geneticamente modificado, localizada em área vizinha, deve ser igual ou superior a 100 metros ou, alternativamente, 20 metros, desde que acrescida de bordadura com, no mínimo, 10 fileiras de plantas de milho convencional.

 

Esses parâmetros são amplamente questionados por estudiosos da área e agricultores. A ACP apresenta um estudo de campo realizado pela Secretaria de Abastecimento e Agricultura do Paraná, 14 artigos científicos publicados internacionalmente, além de depoimentos de agricultores e agricultoras que comprovam a necessidade de revisão dessa normativa, que tem parâmetros insuficientes e que não propicia segurança mínima contra a contaminação.

 

A ACP foi proposta em 2009 pela organização Terra de Direitos, AS-PTA – Assessoria de Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, Associação Nacional de Pequenos Agricultores e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec. As organizações vão recorrer da decisão e o voto divergente abre caminho para uma decisão favorável à ACP.

 

Mesmo sem uma vitória judicial, o voto da desembargadora Vivian Josete representa um marco importante para a luta dos agricultores e agricultoras, indígenas, quilombolas e povos tradicionais pelo direito de cultivar alimentos livres de transgênicos. Consequentemente, a posição da desembargadora favorece os consumidores, que têm direito a optar por alimentos livres de transgênicos.

 

Confira abaixo as sete lições que a Desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha deu aos membros da CTNBio. Todos os trechos foram retirados do voto da desembargadora, demonstrando que a luta por direitos também pode ser travada no Poder Judiciário, âmbito que pode e deve estar mais atento à realidade de quem vive no campo e às necessidades dos consumidores.

 

Sete lições da Desembargadora Vivian à CTNBio

 

1) O QUE ESTÁ SOB JULGAMENTO E QUAIS OS EFEITOS DESSA DECISÃO?

 

Em ambas as ações (nesta e naquela ACP antes mencionada), o tema é acalorado. Embora a solução do litígio deva ser técnica e jurídica, a discussão posta em causa extrapola esses limites, envolvendo aspectos de natureza biológica do alimento, sua produção, dimensões econômicas, sociais, culturais, ambientais e de saúde pública etc. Essa circunstância conduz os julgadores ao enfrentamento de questões alheias ao âmbito estritamente jurídico.

 

(…)

 

Ainda que a discussão aqui não diga respeito, repito, à conveniência e qualidade dos produtos transgênicos – cujo debate está longe de uma conclusão definitiva -, não se desconhece a existência de diversos aspectos relacionados à transgenia, como as regras para exportação, as vantagens e desvantagens quanto à produtividade, o custo final ao consumidor, as teses de imunodeficiência das plantas e os reflexos no sistema imunológico dos animais, a fome no mundo e o problema distributivo dos pequenos produtores que se vêem forçados à monocultura, à compra de insumos, ao endividamento e ao consequente êxodo rural, dentre outros. Digo isso, porque, apesar de a CTNBio afirmar que o produto transgênico pode ser consumido livremente, em razão de já ter passado por todos os testes e por já existirem no mercado há mais de uma década – sendo tão seguros quanto os convencionais -, esse período de tempo ainda é ínfimo na história da humanidade ou na vida de um ser humano e escasso para se aferir, com um mínimo de certeza, os efeitos no organismo humano e animal em longo prazo. E um alimento transgênico não pode ser considerado exatamente igual ao mesmo alimento não transgênico.

 

2) A NORMA DA CTNBIO SERVE PARA IMPEDIR A CONTAMINAÇÃO GENÉTICA?

 

Ainda, não deve vingar o argumento de que a Resolução é eficaz, porque sua aplicação restringe o percentual de transferência de OGM àquele permitido pelo Decreto n.º 4.680/2003. De fato, coexistência e rotulagem não se confundem. Apesar de o referido Decreto admitir a tolerância de até 1% de OGM em produtos para que não sejam rotulados como transgênicos, não se pode partir da premissa de que, em razão da permissão legal, os agricultores convencionais sejam obrigados tolerar a presença de OGM em suas lavouras, principalmente aquelas que produzem vegetais orgânicos, não obstante essa tenha sido a justificativa apresentada pelo MAPA em manifestação quanto ao pedido de antecipação de tutela

 

3) LIBERAÇÃO COMERCIAL DOS TRANSGÊNICOS, O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E AS CARACTERÍSTICAS DO BRASIL

 

Essa questão, ao que me parece, até o momento, foi analisada primordialmente pelo prisma da insuficiência da prova produzida pelos autores, e não pela ótica da insuficiência da própria norma impugnada. Reconhecida sua imperfeição (tanto em relação às exigências legais como à sua aplicação prática), não vejo motivo para declarar higidez que não ostenta.

 

(…)

 

Contudo, a liberação comercial e a coexistência são questões umbilicalmente ligadas, não havendo como considerar necessária a ponderação das peculiaridades das diferentes regiões brasileiras e seus biomas na implantação dos cultivos (liberação comercial) e desprezar tal diversidade na norma que dispõe sobre a coexistência das plantações, a qual provavelmente será analisada no monitoramento pós-liberação.

 

(…)

 

Em suposto atendimento a esses diplomas e à decisão judicial da ACP n.º 2007.70.00.015712-8/PR (5000629-66.2012.404.7000), a CTNBio editou a RN n.º 04/2007, a qual se limitou a disciplinar sobre o isolamento espacial. Ou seja, a norma emitida pela CTNBio diz respeito tão somente a distâncias entre uma e outra lavoura e pretende regular todas as plantações de milho transgênico no Brasil, um país de dimensões continentais, com mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, sete biomas e diversos tipos de relevo, clima e regimes de vento, os quais, a meu ver, geram diferentes efeitos nas condições que proporcionam a polinização do milho e a transferência de genes entre um e outro plantio.

 

4) A CTNBIO, O DIREITO E A REALIDADE DA AGRICULTURA

 

Consoante o disposto no art. 4º da Lei n.º 10.831/2003, a responsabilidade pela qualidade relativa às características regulamentadas para produtos orgânicos é dos produtores, distribuidores, comerciantes e entidades certificadoras, segundo o nível de participação de cada um. Embora os produtos orgânicos tenham regramento próprio, considerando que a RN 4/2007 pode orientar lavouras próximas a eles, não há como dissociar, no mundo jurídico, normas que devem estar em consonância na realidade fática.

 

Nessa perspectiva, a Resolução hostilizada não parece considerar o real impacto das diferentes especificidades sobre as plantações em cada região do País, tal como exigido pela Lei.

 

(…)

 

No mais, impende ressaltar que, embora o fundamento da norma e sua aplicação sejam claras aos membros da CTNBio que a elaboraram, as disposições da RN n.º 04/2007 são insuficientes e impraticáveis àqueles alheios à Comissão e que as aplicarão em suas lavouras. Assim como faltam dados técnicos e aprofundamento quantitativo ao estudo realizado pela SEAB/PR, também à norma da CTNBio falta o rigor exigido de uma norma de biossegurança.

 

(…)

 

Não é porque a CTNBio possui competência para elaborar as normas que pode fazê-lo sem observância dos preceitos legais e dos princípios de direito que regem a matéria. O fato é que, objetivamente, a CTNBio não elaborou a RN n.º 04/2007 de acordo com os requisitos da Lei que visou regulamentar, nem com o ordenamento jurídico vigente, e tampouco justificou razoavelmente sua decisão, como igualmente exige a Lei.

 

5 .CONTAMINAÇÃO POR TRANSGÊNICO E VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DOS AGRICULTORES E DOS CONSUMIDORES

 

Se é certo que a contaminação de uma lavoura transgênica por pólen não transgênico não lhe retira essa característica, o contrário (a não perda da característica de não transgênico, mesmo com contaminação por transgênico) não pode ser afirmado, pois resta desqualificado, descaracterizado, o produto orgânico. Nessa linha, os agricultores convencionais tornam-se quase hipossuficientes frente à possibilidade de contaminação, devendo ser-lhes dada proteção efetiva por meio da norma que dispõe sobre coexistência.

 

(…)

 

No que tange a esse índice, há duas considerações a serem observadas. A primeira é de que esse índice máximo é, ao mesmo tempo, um direito e um dever do produtor. É um dever, porque com mais de 1% de OGM o produto deve ser rotulado como transgênico. E é um direito, porque com menos de 1% de OGM o produtor não tem a obrigação de qualificar seu produto como transgênico. Embora coexistência não se confunda com rotulagem, a obediência ao critério estabelecido pelo art. 2º do Decreto n.º 4.680/2003 (que dispensa a rotulagem de produtos alimentares destinados ao consumo humano ou animal como transgênicos, caso o índice de OGM seja igual ou inferior a 1%) é afetada pela aplicação prática das medidas de coexistência que deveriam ter sido elaboradas pela CTNBio. Ou seja, se a norma não é efetiva, não funciona na prática, o direito de não ter seu produto (seja convencional ou orgânico) qualificado como transgênico é subtraído do agricultor. A segunda é de que não é porque tem o direito de não rotular o produto como transgênico até o percentual de 1% que o produtor é obrigado a tolerar a presença de OGM – mesmo abaixo desse percentual – em sua plantação. Mesmo o produtor convencional (que usa agrotóxicos, por exemplo) deve ter o direito de escolha sobre a existência de transgênicos em sua lavoura, porque, reitero, a contaminação por transgênicos não se iguala à transferência adventícia entre espécies não transgênicas.

 

6. DE QUEM É A RESPONSABILIDADE PARA EVITAR A CONTAMINAÇÃO GENÉTICA?

 

A RN n.º 4/2007 estabelece a distância mínima entre lavouras de milho geneticamente modificado e outras, sem especificar se convencional ou orgânica e sem estabelecer sobre qual produtor (em havendo divisa de produtores) recai a responsabilidade de atender à norma, gerando inevitáveis conflitos concretos.

 

(…)

 

Entretanto, não está expresso na Resolução que os custos (prejuízo pela não utilização da terra, por exemplo) ficarão a cargo daquele que utilizar a tecnologia, corroborando sua incompletude. Em situação hipotética, em que fossem lindeiras duas plantações, uma de milho GM e outra de milho orgânico, à míngua de estipulação normativa sobre a responsabilidade pelo distanciamento, a maior probabilidade é de que o produtor orgânico se veja compelido a restringir o uso de sua terra para manutenção da integridade de sua colheita, pois é legalmente responsável por sua pureza.

 

(..)

 

Nesse contexto, tenho que não é compatível com o princípio da precaução a transferência, aos agricultores de lavouras convencionais e orgânicas, da responsabilidade de provar a contaminação – depois de ocorrida – por OGM, em razão de norma reconhecidamente insuficiente e imperfeita. Por que esperar que haja transferência, para que depois os prejudicados venham a provar que a Resolução não atendeu à Lei que a originou? Ao contrário, a observância ao mencionado princípio e à razoabilidade impõe que se exija do órgão responsável pela elaboração da norma, desde logo, o seu detalhamento, a fim de que sejam minimizados os riscos posteriores ao seu cumprimento.

 

(…)

 

Outro aspecto a ser considerado é o fato de que, em várias passagens, afirma-se a suficiência da RN n.º 04/2007, pois apenas confirmaria prática há muito estabelecida por produtores. Olvida-se, porém, que os produtores também se valem de outros métodos para garantir a coexistência de plantações distintas, como o isolamento temporal dos cultivos, e esse tipo de medida poderia e deveria ter sido disciplinada na RN n.º 4/2007.

 

(…)

 

Deveras, é adequado que haja cooperação mútua entre os agricultores para garantir a integridade dos cultivos. Contudo, não pode a norma ser omissa, como o é, sob o fundamento de que existirá, de fato, essa cooperação. Tendo em vista que a transferência de OGM não se iguala à transferência de pólen convencional, a garantia de coexistência não pode depender apenas e precipuamente dessa possível cooperação, pois eventual falta de colaboração colocaria o agricultor em posição de vulnerabilidade. Do mesmo modo, não se pode dizer que as práticas já existentes entre os produtores – em relação às quais a própria CTNBio admite que existe fluxo gênico – serão suficientes para segregar essas variedades do milho transgênico.

 

7. O VALOR DA PALAVRA DOS AGRICULTORES

 

A produção de prova testemunhal foi deferida por esta Corte em agravo de instrumento, sob o fundamento de que ‘A peculiaridade da situação fática aconselha a produção de prova testemunhal, em especial, em se tratando de atestar situação fática relativa aos efeitos e os distintos tipos de danos ambientais e a cultura de milho provocado por sementes transgênicas‘. Desse modo, valho-me das transcrições de trechos dos depoimentos, para expor a experiência de pequenos agricultores, pesquisadora e funcionário de empresa que trabalha com processamento de milho orgânico, os quais embasam a convicção de que a RN n.º 04/2007 não é suficiente para garantir a coexistência das diferentes variedades de milho.

 

Fonte: http://pratoslimpos.org.br/

Temas: Transgénicos

Comentarios