Brasil: Pará, sangrento Pará
"O golpe e a força política ruralista em Brasília mandaram uma carta branca para a pistolagem na Amazônia. Estamos vivendo o tempo da morte. E o massacre de nove homens e uma mulher em Pau D'Arco, na fazenda Santa Lúcia, no sul do Pará, traz de volta a memoria de tempos terríveis."
Mesmo quando não mata, a polícia no Pará deixa matar
O golpe e a força política ruralista em Brasília mandaram uma carta branca para a pistolagem na Amazônia. Estamos vivendo o tempo da morte. E o massacre de nove homens e uma mulher em Pau D'Arco, na fazenda Santa Lúcia, no sul do Pará, traz de volta a memoria de tempos terríveis, do retorno do terror. As velhas chacinas do passado voltaram a ocorrer no Pará.
Mortes coletivas perpetradas por grupos de pistoleiros a mando de fazendeiros. Empreitadas da morte que são feitas como um filme de terror, com tortura, muitos tiros, crueldade, e são seguidas de festa, a celebração da vitória do latifúndio pela destruição do pobre, aventuras contadas com orgulho de caçador.
Tal como aconteceu em Colniza (MT), na chacina de nove trabalhadores na Gleba Taquaruçu do Norte, em 19 de abril, há dez anos eu descrevi na revista RollingStone, com base no depoimento de um pastor à policia civil, detalhes de como Pássaro Preto foi morto por pistoleiros, em 28 de agosto de 2006. José Roberto Sabino, o “Pássaro Preto”, estava rendido quando foi morto. Depois do crime, os pistoleiros (chamados lá de guachebas), entre eles um de nome “Polaquinho Matador”, foram beber cerveja, comer picanha e contar vantagem da crueldade desumana que recém haviam praticado.
No caso de Colniza, a ganância que justifica as mortes visa a venda ilegal da madeira. São as "madeiras de sangue". Nesses assassinatos recentes no Pará, é a grilagem da terra. E o capital anda junto de um moralismo da violência: a ética do sucesso econômico é conjugada com as mortes dos pobres que permitiram ganhar dinheiro, tudo com altivez e orgulho pscicopata. E quando teme-se perder a terra, o fazendeiro não quer perder a honra: manda matar. Na fazenda Santa Lúcia, há fortes indícios que associam o massacre a uma “vingança” associada com a defesa da terra grilada.
Nesses primeiros cinco meses do ano, já são pelo menos 36 mortes de defensores da terra no Brasil, sendo duas chacinas, em Colniza (MT) e em Pau D’Arco (PA). Para sempre esse ano de 2017 será lembrado. E no caso do Pará, onde já se sabia que um novo massacre poderia ocorrer, o governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), junto de seu aliado Michel Temer (PMDB), já tem o "Eldorado", ou a “Curva do S”, para chamar de seu.
No Pará, há uma configuração histórica local que contribui para que, num momento de Estado de Exceção como vivemos, de paralisia da democracia e das instituições do Estado de Direito, a máquina de matar seja ligada. Uma carta branca de Brasília, como um ministério da (in)Justiça chefiado por um ruralista, a força política no congresso, a capacidade de anular o trabalho de instituições de controle, basta para dar inicio aos banhos de sangue.
Os movimentos sociais sacaram faz tempo, desde antes do golpe, que a nuvem da morte estava se aproximando. Foi no fatídico 17 de abril de 2016, quando se completava 20 anos do massacre de Eldorado, que se consumou o golpe parlamentar na Câmara. Passado um ano, a coisa piorou. Nas celebrações que marcam a lembrança do Massacre, em 17 de abril deste ano, 2017, o clima estava tenso no Acampamento da Juventude Sem Terra, organizado pelo MST na “Curva do S”. A noite, carros passaram a noite dando tiros em direção ao acampamento. No dia do ato, que sempre ocorre de manhã, militantes perceberam a presença de pistoleiros portando armas, tentando se disfarçar no meio dos camponeses. Eram, ao menos, oito. Havia ainda alguns P2 tentando se disfarçar de camponeses, da polícia do Pará e, diziam, também da polícia federal.
Fazendeiros já colocaram para circular novas listas da morte, nomes que saem de encontros dos sindicatos rurais. Sobretudo circulam pelas mãos de fazendeiros violentos que vivem (e grilaram terras) entre Parauapebas, Curionópolis, Xinguara, São Felix do Xingu, Redençã, Tucumã e Canaã dos Carajás. O mercado da pistolagem também voltou a ficar aquecido, e apelidos de novos matadores circulando, sempre acompanhados do mito de destemidos profissionais, executores frios.
Pará, sempre sangrento no campo, a cada dia o espaço da morte e do terror se renova, se reconstrói. É o palco onde se encena o “Teatro da Crueldade”, como escreveu o Arnaud, cujo roteiro passa por Brasília e Belém. O espaço da morte no sul do Pará é o lugar mítico da violência desde a brutal execução/eliminação da Guerrilha do Araguaia, da guerra que veio depois contra posseiros nos anos 1970 e 1980, e as chacinas aterrorizantes de 1985 e 1986, como Chacina da Ubá, Chacina da Princeza, entre outras. Na metade da década de 1980, o Pará era um banho de sangue promovido por figuras como o mítico Sebastião da Teresona, notório pistoleiro da família Mutran, uma espécie de senhores feudais da castanha e que formaram grandes latifúndios de terras griladas com a floresta virou pasto. E novamente, com o moderno golpe midiático-parlamentar, está o Pará banhado de sangue com pelo menos 17 mortes nesse ano.
No filme A Igreja dos Oprimidos (1986), o diretor Jorge Bodanzky entrevistou Sebastião da Teresona na sala de sua casa, em Marabá. Tranquilão no sofá de casa, falava esquivando das acusações de seus crimes com expressões de falsas ingenuidades. Se dizia “extraidor de castanha” e “empreiteiro”.
—“Tem um rapaz que subiu num palanque dizendo que eu tenho um escritório de pistoleiro na cidade. E eu não sou disso. Não tem testemunha, não tem prova. E eu mando procurar prova em qualquer lugar, mande procurar qualquer queixa de mim na policia. Não tem. Pode procurar a juíza, pode procurar o delegado regional. Não tem.”
Em 1986, uma grande guerra entre posseiros e pistoleiros foi filmada numa fazenda localizada, justamente, em Pau D'Arco, palco da chacina da semana passada. Os diretores Adrian Cowell e Vicente Rios, no filme Matando Por Terras, registraram a participação da polícia nas mortes de posseiros. A polícia tomava conta da fazenda de um empresário que vivia longe, em São Paulo, e de lá financiava a morte para garantir incentivos fiscais. Desesperados, em certo momento, posseiros contra-atacaram e mataram policiais-pistoleiros que tentavam matar os posseiros. No entanto, era a rara exceção de um verdadeiro massacre de posseiros — e não uma guerra. No filme, são os policiais-pistoleiros matam diversos pobres posseiros.
Como hoje, a impunidade era uma garantia da liberdade dos policiais para realizar serviços terceirizados de pistoleiros. Como hoje, os policiais dificultam o acesso de familiares ao corpo, e os posseiros só conseguem chegar para resgatar os restos de seu companheiro, quando está em estágio de putrefação. Cowell e Rios ainda tentaram filmar o "outro lado", do trabalho da polícia.
Mesmo quando não mata, a polícia no Pará deixa matar. Em Jacundá, em 1986, os pistoleiros mataram o líder rural Sebastião Pereira e seu filho pequeno, a criança de três Clésio. Todo mundo sabia quem eram os pistoleiros e o fazendeiro que pagou pelos crimes: Joaquim Branco. Em uma cena, ao recolhe o corpo de outro posseiro morto, o “João Ventinha”, o carro do delegado Mascarenhas faz um desvio absurdo: ao invés de ir bater na porta da fazenda, da meia volta. Como hoje, a polícia do Pará não investiga mandante.
No entanto, pior ainda do que atitude do Delegado Mascarenhas, da velha Jacundá dos anos 1980, que com o seu ray-ban e camisa aberta até o peito dizia que a polícia iria prender os pistoleiros por ser uma questão de “honra”, hoje sabemos, pela reportagem de Lilian Campelo no Brasil de Fato, que testemunhas escutaram a voz do delegado Antônio Gomes Miranda Neto entre os policiais que massacraram os camponeses na semana passada no Pará. Nesse caso, então, é o próprio delegado que pode estar envolvido com a pistolagem. A repórter Ana Aranha, na ReporterBrasil, ouviu de sobreviventes da Chacina em Pau D’Arco relatos de torturas dos policiais antes das mortes. Inclusive vitimas chorando antes de morrerem.
Estes dois filmes foram passados no festival CINEFRONT, que acontece no Sul do Pará, organizado pela Universidade Federal do Sul e do Sudeste do Pará. A intenção era oferecer à juventude camponesa informações audiovisuais do violento passado que conhecem por histórias e memórias em primeira pessoa.
Não há dúvidas de que a juventude camponesa no Pará tem perfeita noção da violência que seus pais sofreram e lutam para que não mais ocorresse. É o resto do Brasil que precisa chacoalhar a cabeça e se revoltar contra essa barbárie que opera, apenas, por ter uma carta branca de Brasília.
O sangrento Pará, que sem jamais ter deixado de ser o mais violento espaço da morte no campo do Brasil, volta a ser o banho de sangue dos piores momentos da história política do Brasil, como na ditadura e na transição-intransitiva. Talvez porque o Brasil político, longe da fronteira, também tenha se esquecido do que significa a violência do latifúndio no Estado de Exceção. É no sangue que jorra no Pará que o latifundio, que o agro, mostra a sua verdadeira face.
29 de maio de 2017
Por Felipe Milanez - Professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB)
Da Página do MST
Fonte: MST