Brasil: A resistência da agroecologia no Pantanal
A produção agroecológica é uma realidade que os donos do poder - os mesmos que comandam a produção de commodities - fazem de tudo para não dar visibilidade.
30 de novembro de 2015
Por Najar Tubino / Da Página do MST
Na verdade trabalhar com este tema no estado campeão na produção de soja, com mais de 24 milhões de toneladas, com uma percentagem de veneno distribuída entre a população de quase 10 litros por habitante é um risco sério, que inclui ameaças de todos os tipos, boicote dos governos estadual e municipais e a descrença de muitos agricultores e agricultoras, depois de muitos anos de abandono. O termo correto seria resiliência dos grupos organizados na FASE, no Fórum de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD) e no Grupo de Intercâmbio em Agricultura Sustentável (GIAS), que trabalham com agricultura familiar e agroecologia. O GIAS está comemorando 15 anos e durante dois dias – 26 e 27 de novembro – realiza um Seminário sobre Comercialização e Certificação de Produtos Agroecológicos. No evento também foram apresentados os resultados do Projeto Agroecologia em Rede, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que envolve o perfil de três agroecossistemas do Sudoeste do Mato Grosso, onde Cáceres, cidade fundada há 240 anos na beira do rio Paraguai e na fronteira com a Bolívia com 90 mil habitantes é o polo regional. Os técnicos da FASE participaram do levantamento de dados e das discussões dos três famílias analisadas.
A região de Cáceres têm 20 assentamentos e quase 1800 famílias e segundo o INCRA no estado são 546 assentamentos envolvendo 84.271 famílias. Esta é uma realidade que os donos do poder no estado, que são os mesmos que comandam a produção de commodities, alguns presentes no Congresso Nacional, como o senador Blairo Maggi, outros são integrantes raivosos da Bancada Ruralista, fazem de tudo para não dar visibilidade. É a política da negação acima de tudo. Não existe outra possibilidade de produzir alimentos, muito menos saudáveis. É uma questão econômica, social, ambiental e ideológica. Para essas figuras do agronegócio as populações tradicionais, indígenas, quilombolas, migrantes que vieram de várias partes do Brasil – antes da entrada dos sulistas – são preguiçosos, não gostam de ganhar dinheiro, não tem ambição. E isso não combina com a política seletiva, exclusivista e racista dos dirigentes do agronegócio.
Encontro à beira do rio Paraguai
O evento acontece numa chácara na periferia da cidade, mas que tem como fundo o rio Paraguai e as dezenas de aves do Pantanal cruzando a todo momento. Mas é neste ambiente que o povo resiste e defende suas ideias, suas práticas, seus alimentos, sua cultura, sua educação e suas demandas. A discussão, muitas vezes é técnica, embora importante, longe dos problemas das metrópoles, mas traz na essência o fermento de um país que se organiza em grupo e que cada vez mais quer participar e executar as políticas públicas que decidem sobre o futuro da nação. E mais uma vez, como é corrente nos encontros de agroecologia, as mulheres são protagonistas. Para mostrar este momento histórico na beira do rio Paraguai, que conta a história da região e das lutas dos movimentos sociais conversei com quatro representantes, quatro lideranças expressivas e totalmente inseridas na agroecologia e na agricultura familiar. São elas: Fátima Aparecida Moura, a Cidinha, nascida em Jauru, filha de mineiros que migraram para a região e coordenadora da FASE no MT, além de agrônoma.
Protagonismo das mulheres no Pantanal
Erica Sato, presidenta da Associação Regional de Produtoras Extrativistas do Pantanal (ARPEP), Alexandra Mendes Leite, indígena do grupo dos Chiquitanos, moram em duas aldeias em Porto Espiridião – a maior parte desta população mora do outro lado da fronteira, são 40 mil- com 350 pessoas e ela é presidente da Associação de Jovens Niorsch Haukina, que na língua dos Chiquitanos significa semente nativa – durante a ditadura eles foram proibidos de falar a língua materna. E Marinalva Paula da Silva, educadora no assentamento Roseli Nunes, onde trabalha na Escola Estadual Madre Cristina, com 400 alunos, incluindo turmas de EJA, uma escola construída pelos assentados, dirigida para os agricultores e agricultoras familiares, com grade curricular própria, voltada para atender as suas necessidades, valorizando seus conhecimentos, e da tradição dos sem terra, enfim ”uma escola do campo no campo”. Muito importante: a escola não tem muros ou grades, é aberta à comunidade.
Morreram muitos sem terra
A luta pela terra começou durante os anos 1980 com a concentração de migrantes, a expansão da fronteira agrícola em direção à Rondônia, com o desmatamento assumindo proporções graves. A FASE começou a trabalhar no MT em 1987, mas em Mirassol do Oeste, cidade homônima do município paulista, localizada no Vale do rio Guaporé, onde existe uma mancha de terra preta, muito fértil. Cidinha relembra as mortes ocorridas na região a mando dos capangas dos fazendeiros, massacre como o de Mirassolzinho, entre outros episódios. Em 1994 a FSE chegou à Cáceres, na mesma época o MST iniciava sua atividade no MT.
É preciso entender que, nesta região, uma entidade que defende as populações tradicionais, sem terras ou despossuídos é vital para enfrentar qualquer tipo de luta. Durante a ditadura todos os planos oficiais envolviam a economia de escala e a chegada de agricultores sulistas com experiência em executar o pacote tecnológico das multinacionais agroquímicas. Os pobres, na verdade, só podiam contar com as comunidades apoiadas pela igreja católica e as organizações que defendiam os direitos humanos como a FASE.
GIAS semeando agroecologia no MT
Em 2000, com a criação do GIAS começa a se organizar um movimento de denúncia contra os impactos da expansão da soja e do modelo do agronegócio, que desmatava sem limites e poluía as águas e o solo com os venenos – sem contar a contaminação das populações e dos alimentos que existiam nos biomas como cerrado, pantanal e Amazônia. Cáceres ainda se manteve distante da soja por muitos anos, somente em 2010, começaram o plantio em Mirassol do Oeste, a cerca de 40 km, onde está localizado o assentamento Roseli Nunes, onde está a Escola Estadual Madre Cristina.
Entretanto, a organização dos movimentos sociais não ficou apenas na denúncia, logo depois foram criados os programas PAA e PNAE, dando acesso à agricultura familiar às políticas públicas. Sem contar a possibilidade de gerar renda e trabalho para os assentados. Dessa forma, começaram as iniciativas extrativistas, frutas do cerrado que não eram aproveitados, como o pequi, o cumbaru e o babaçu. Como disse Erica Sato, presidente da ARPEP, no início nem os maridos acreditavam que ia dar certo, que era impossível transformar os frutos em alimentos. Hoje em dia, a associação, integrada por seis outros grupos, produz 25 mil quilos de pães e biscoitos feitos com farinhas das frutas misturadas com trigo. E são entregues em escolas e entidades da região, através dos programas do governo federal.
Chiquitanos, o povo da fronteira Brasil-Bolívia
Em 2014, a ARPEP lançou na primeira feira de produtos do cerrado de Cáceres a marca comercial “Do Cerrado”, depois de ganhar um prêmio da Secretaria Nacional das Mulheres, em Brasília. Alexandra Mendes Leite é a liderança dos Chiquitanos, jovem, lúcida e decidida, participa da Associação de Mulheres Indígenas do MT, conta com 12 etnias afiliadas, das 42 que ainda resistem no estado. A preocupação deles, quando iniciaram o movimento pela recuperação das tradições – língua, música, dança, artesanato – e produção de alimentos, com o máximo de independência da cidade, o motivo da desagregação dos jovens. Foram buscar informações, participação nos movimentos sociais e a agroecologia. Capacitaram vários integrantes da juventude, definindo as áreas importantes que precisavam atuar – formaram enfermeiros, técnicos agrícolas – agora oitos deles estudam na Universidade Federal do MT, alguns em outras universidades, inclusive ela que está cursando Gerenciamento de Sistemas em uma faculdade privada de Pontes e Lacerda.
Escola aberta sem muro ou grade
Marinalva Paula da Silva é educadora na Escola Estadual Madre Cristina no assentamento Roseli Nunes, onde moram 330 famílias. Ela pertencia ao acampamento Paulo Freire, que foi despejado muitas vezes. Acamparam seis meses na frente da sede do INCRA em Cuiabá. Depois, foram incluídos no assentamento Roseli Nunes, uma fazenda de 15 mil hectares. A escola é o orgulho da comunidade, porque foi construída pelos próprios assentados, cada um contribuindo com uma parcela em dinheiro. A grade curricular foi discutida pela comunidade e os objetivos da escola também. Uma educação voltada para a produção de alimentos de verdade, valorizando o conhecimento dos moradores da localidade e sempre mantendo o orgulho aceso da luta histórica pela terra.
É uma referência como escola do campo para o estado e já recebeu visitas de representantes de outros países. As famílias participam dos eventos, das discussões, da pontuação dos educadores, que recebem pontos por participação nos movimentos sociais. Como diz Marinalva da Silva “somos um coletivo muito organizado”. E mantém um curso profissionalizante em agroecologia. Além de educadora, ela é assentada, trabalha no lote nos finais de semana. Acabou de gradear uma área para plantar mais de 400 ramas de mandioca, e uns carreirões de milho. E mantém uma criação de porcos. Continua estudando, faz uma especialização em políticas públicas e economia solidária na Universidade Estadual. Não esquece o detalhe: nossa escola não tem grade ou muro e é aberta a comunidade.
Fonte: MST