Brasil: grileiros, latifundiários e ruralistas
O assassinato recente da irmã missionária Dorothy Stang e de outras lideranças sindicais no Pará, segue o rastro de outros assassinatos recentes, como a chacina de Unaí e o assassinato de trabalhadores rurais sem terra no vale do Jequitinhonha. Esses acontecimentos escancaram novamente os conflitos, tensões, impasses e perplexidades que rondam a realidade agrária brasileira, cujos efeitos, entretanto, atingem todos os setores a sociedade, inclusive os urbano-industriais que podem se achar distantes e imunes a essa problemática
Sim, porque o mundo rural brasileiro hoje, paradoxalmente, vive dilemas e impasses que atravessam questões extremamente atuais que dizem respeito ao conjunto dos brasileiros. Essas questões estão relacionadas, por exemplo:
- ao polêmico projeto de transposição das águas do rio São Francisco ou de integração de bacias, como quer o governo;
- ao cultivo de variedades transgênicas e à lei de biossegurança que está em tramitação no congresso nacional;
- à problemática fundiária-ambiental de modelos de ocupação e uso da floresta amazônica e o código florestal brasileiro;
- ao avanço das monoculturas de grãos sobre o cerrado e suas implicações sobre a biodiversidade, as águas, as populações locais (índios, camponeses, trabalhadores rurais);
- às condições de precariedade do trabalho rural, mesmo no chamado agronegócio moderno, que chegam ao extremo de trabalho considerado escravo em milhares de casos;
- aos conflitos que envolvem a posse da terra em várias regiões do país;
- aos impasses na implantação de projetos de geração de energia hidráulica que atingem, deslocam e desalojam inúmeras famílias camponesas pelo Brasil afora (vide o caso atual da barragem de Irapé no vale do Jequitinhonha//MG)
Todas essas questões e impasses tem relação e reflexo no mundo urbano brasileiro, cuja qualidade de vida tem sido sistematicamente comprometida pela forma como o mundo agrário tem sido tratado pelos governos, pelas políticas e pelo conservadorismo das elites brasileiras. O modelo agrário brasileiro, que sempre foi excludente, expulsor e predatório, em favor de uma minoria oligarca, teve essas características radicalizadas com a chamada modernização agrícola a partir dos anos 60. Essa modernização desembocou nesse setor abrigado hoje com o nome de agronegócio, sintomaticamente oriundo do inglês agribusiness, o que quer dizer: a agropecuária e o espaço agrário-natural tratados como mercadoria global.
Nesse barco, nossas elites agrárias, representadas oficialmente hoje pela chamada bancada ruralista, cuja estimativa de tamanho varia entre 120 a 200 congressistas (um número espantoso), passou a adotar um discurso de campeões da produtividade e da eficiência e salvadores da balança comercial brasileira. Sim, porque continuamos, como desde o ciclo da cana de açúcar, a insistir num modelo agroexportador de larga escala, só que agora dirigidos pelas transnacionais do setor agroalimentar e siderúrgico-celulósico (Monsanto, Cargill, Nestlé, Novartis, Aracruz, Veracell, etc), que, além de controlar toda a produção de máquinas, sementes, agroquímicos, armazenamento, comercialização, etc, alimentam o ego e os lucros do setor que agora se intitula de ruralista. Lucros estes que, naturalmente, precisam de proteção governamental para se manter, pois a ciranda dos preços das comodities agrícolas, periodicamente apronta estragos. É o caso da queda vertiginosa do preço da soja nesse ano de 2005.
A lógica que preside o setor hoje chamado de ruralista é ganhar sempre mantendo e ampliando os privilégios, mesmo que se tenha que desfigurar nosso código florestal para permitir maior desmate da floresta amazônica, que se tenha que aprovar uma lei de biossegurança sem o menor cuidado nem precaução com o desconhecimento e os riscos que envolvem o cultivo de variedades transgênicas e seu consumo pela população e que se tenha que expulsar e escravizar trabalhadores rurais e, de vez em quando, matar uma ou outra liderança rural, trabalhadores sem-terra, fiscais do trabalho ou do meio ambiente, agentes religiosos, etc. Matam, na verdade, o que há de melhor no campo brasileiro - lideranças, funcionários públicos e agentes que lutam pelo resgate de nossa dívida social com o campesinato e por formas duradouras e sustentáveis de uso dos recursos naturais, como nos demonstra até hoje o emblemático caso de Chico Mendes e, agora, o da irmã Dorothy.
O que os assusta, afinal, é a ameaça cada vez mais concreta de dar fim aos ciclos agrários excludentes e predatórios que constituíram nossa história, de romper com a lógica da grilagem e apropriação privada de terras públicas, de reverter o processo histórico de concentração da terra e expulsão de camponeses, de estancar o processo de extração destrutiva de nossos recursos naturais, de fortalecer estratégias de uso que não tratem a terra apenas como mercadoria-negócio, mas que conciliem produção com afeto e proteção à terra-mãe.
Essa ameaça rebate para as contradições do governo Lula que quer fazer acreditar que é possível alimentar os pintos e a raposa simultaneamente, no mesmo território. Tem uma política, ainda que tímida, de criação de assentamentos e de apoio à agricultura familiar através do Ministério do Desenvolvimento Agrário, mas tem uma macro-política econômica que fortalece o latifúndio e as monoculturas agroexportadoras, via os ministérios do Desenvolvimento e da Agricultura, que, nitidamente, desemprega, pressiona e expulsa as populações indígenas e camponesas locais. No meio desse tiroteio, fica o Ministério do Meio Ambiente, com uma ex-seringueira ecologista à frente, tendo que engolir transgênicos, transposições, avanço do desmatamento no cerrado e na floresta amazônica e outras concessões aos poderosos do campo, agora sob a bandeira moderna do agronegócio.
Enquanto isso, as cidades vão se tornando sufocantes bolsões de miséria, poluição e violência. Será porquê? Não há lugar para todos neste país? Será o território destinado só a uma pequena parte da população? E a outra parte, o que fazemos com ela? Para o governo Lula, ela vai ser cliente de outro ministério ? o do Desenvolvimento Social ? para receber as polpudas bolsas escola, família, etc. Sim porque terra, trabalho e cidadania continuam com sinal vermelho, sendo sonhos distantes e impossíveis. É a funcionalização da pobreza, como cunhou corretamente o sociólogo Francisco de Oliveira. Os hipócritas discursos de justiça e inclusão social esboroam no ar frente a essa realidade. Enquanto houver latifúndio, grileiros impunes e bancada ruralista, com esse peso e com essa lógica perversa, não haverá democracia verdadeira nesse imenso território tropical, nem possibilidade de tratá-lo com o cuidado que merece. Deduz-se, portanto, que o tal desenvolvimento sustentável é pura retórica que vai se pasteurizando, mais uma noção construída para deixar tudo com está: injusto e insustentável.
Autor: Engenheiro agrônomo, professor universitário, doutorando em Ordenamento Territorial e Ambiental
Carlos E. Mazzetto Silva
Belo Horizonte, 16-2-05