Brasil: carta ao Presidente Lula sobre a transposição do rio São Francisco

A quem vai servir, e a que custo social e ambiental, a transposição das águas do Rio São Francisco? Essa é uma pergunta indispensável e se o governo de Vossa Excelência a fizesse, honestamente, paralisaria já esse projeto! Essa atitude pode ser a oportunidade para o Governo Lula recuperar sua identidade e resgatar a autêntica esperança que acendeu no coração do povo brasileiro ao ser eleito. Águas para a vida e não para a morte!

Amigos e amigas

Segue abaixo carta ao Presidente Lula dos principais movimentos sociais, pastorais, redes, etc., de âmbito nacional, contra a transposição de águas do rio São Francisco e em favor de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável para o semi-árido e a bacia do São Francisco. Foi elaborada e entregue durante a Assembléia Popular - Mutirão por um Novo Brasil, acontecida em Brasília-DF, de 25 a 28 de outubro de 2005, que contou com a participação de mais de 6.500 pessoas de todo o Brasil.

Novas adesões podem continuar sendo feitas e enviadas ao Palácio do Planalto ( rb.vog.otlanalp@rp) com cópias para a ABRANDH ( rb.gro.hdnarba@hdnarba). Pedimos e agradecemos o seu apoio no sentido de dar ampla divulgação à carta que segue abaixo.

Saudações fraternais,

Ir. Delci M. Franzen
Assessora da Comissão Episcopal Pastoral Para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz - CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

Carta ao Presidente Lula sobre a transposição do rio São Francisco

Brasília, 26 de outubro de 2005.

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Luís Inácio Lula da Silva

e todo o povo brasileiro,

As redes de organizações e movimentos sociais da sociedade civil abaixo-assinadas dirigem-se à Vossa Excelência e publicamente vêm reafirmar posição contrária ao projeto de transposição de águas do Rio São Francisco. Pelas razões a seguir expostas:

Ausência de Debate

Vossa Excelência, durante campanha presidencial, explicitou a complexidade do projeto e a necessidade de garantir um amplo debate e novos estudos sobre o assunto, o que até agora não ocorreu satisfatoriamente. Pior, o governo se recusa a aceitar os resultados dos poucos espaços de debates existentes, quando esses se mostram contrários ao projeto. Por exemplo, o governo de Vossa Excelência se recusa a aceitar as condições estabelecidas pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) ou da I Conferência Nacional do Meio Ambiente que aprovou uma moção de repúdio e uma deliberação de proibição da transposição de águas do Rio São Francisco. Igualmente com relação aos pareceres críticos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC e do Centro de Estudos e Projetos do Nordeste - CEPEN, resultados de seminário ocorrido em Recife, em outubro de 2004.

Falta de Transparência

O governo se recusa, mesmo depois da pressão e insistência da sociedade civil, a divulgar, muito menos considerar, estudos técnicos que evidenciam a ineficácia do projeto, como o do Banco Mundial. O fato desta instituição vetar também o atual projeto porque, entre outros motivos, "a ligação com os pobres pode ser fraca", teria "baixo impacto" na diminuição da pobreza, teria “pouco efeito no custo do suprimento hidráulico emergencial durante os anos de secas”, além das críticas de natureza técnica, reflete as contradições deste projeto. Se até o Banco Mundial, conhecido por muitos por financiar projetos com impactos socioambientais negativos, é contra o projeto, por que essa informação não é disseminada como subsídio para um amplo debate e levada em conta pelo governo?

Por que é sonegada informação sobre os reais objetivos do projeto, que antes de pretender resolver o alegado déficit hídrico para consumo humano no Nordeste Setentrional, levará água para expansão do agro e hidronegócio no semi-árido?

O projeto

A transposição do Rio São Francisco, ao contrário do que afirma o governo de Vossa Excelência, não vai resolver o problema da sede e da fome das populações mais necessitadas do semi-árido, pois se trata de um projeto de alto custo, voltado para interesses outros que não são os destas populações. Desde sempre as oligarquias regionais utilizaram-se da indústria da seca para desviar recursos do poder central e os grandes projetos hídricos serviram sempre para concentrar terra e água, riqueza e poder. Esse projeto, na verdade, promove a apropriação de dois tipos de recursos públicos: (a) recursos financeiros vultosos que poderiam ser empregados em projetos mais eficazes, de convivência com o semi-árido; (b) recursos hídricos disponíveis nos estados supostamente “beneficiados”, faltando apenas sistemas adequados de distribuição e gerenciamento, na contramão do que se implantará o mercado de águas com a comercialização dos recursos hídricos transpostos do São Francisco.

Vossa Excelência disse que o projeto dará de beber a “12 milhões de famílias da região mais pobre e mais seca do Nordeste”. Nós dizemos: O acesso à água é um Direito Humano básico, mas o projeto não vai dar de beber a quem tem sede; vai entregar, mais uma vez, nossas riquezas naturais aos oligarcas, tradicionais e novos, aos que sempre foram e continuam sendo os donos do poder naquela região. Chega a ser cruel, em nome da sede, favorecer os que dela tiram proveito e até a promovem. Além disso, vale ressaltar que 12 milhões de famílias representam mais de 43 milhões de pessoas, o que inclui praticamente todos os nordestinos, inclusive aqueles da bacia “doadora” do São Francisco. Ainda que fossem 12 milhões de pessoas seria toda a população do Nordeste Setentrional, quando sabemos que o projeto beneficiaria, na verdade, 3 milhões de pessoas, sendo 2,2 milhões na Região Metropolitana de Fortaleza - CE.

Algumas questões técnicas

Os períodos de maior necessidade de água serão aqueles, de cinco a sete meses, em que os rios intermitentes do semi-árido deixam de correr. É justamente nesse mesmo período que o Rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido, obrigando à manutenção de reservas hídricas para assegurar a continuidade da produção de energia elétrica pelo sistema CHESF, responsável por 98% do consumo do Nordeste. A transposição aumentará o risco de “apagão”, como ocorreu em 2001.

Os pseudotécnicos, mais preocupados em servir a interesses privados que à ciência e à técnica, despreparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos do projeto, também não consideraram todas as questões técnicas. Por exemplo, não prevêem o elevadíssimo índice de evaporação, no domínio da caatinga, por onde passaria a maior parte dos canais.

Viabilidade Ambiental

Não é possível declarar a viabilidade ambiental do projeto sem conhecimento da dinâmica climática e da periodicidade do rio que vai perder água e dos rios intermitentes e sazonais que vão receber filetes das águas transpostas. Não só este conhecimento não está sendo considerado, como outros sobre impactos na bacia doadora. Desta forma, foi uma temeridade e uma irresponsabilidade a licença ambiental dada pelo IBAMA.

Custo financeiro e custo social do projeto

O custo financeiro do projeto, que é em torno de R$ 4,5 bilhões, nos dois anos iniciais, é alto demais para um país endividado. O projeto exigirá a liberalização de recursos a cada ano e, portanto, qualquer descontinuidade eliminará qualquer avanço obtido com os recursos já investidos. Será jogar dinheiro fora. Esse é um projeto que transcende um só governo. E ocorre em um país que diz não ter recursos para garantir os serviços públicos básicos à sua população, que desvincula cada vez mais os gastos sociais do orçamento esmagado pela política econômica de arrocho fiscal - principalmente dos altos superávits primários - implementada sob a tutela das Instituições Financeiras com o objetivo de pagar uma dívida já paga inúmeras vezes, sem considerar os custos sócio-ambientais.

Além disso, a sociedade precisa saber que quando os estudos são feitos, os custos são minimizados e os benefícios inflados. Desse modo, mostra-se que o balanço custo/beneficio é altamente favorável, mas sabemos que depois do projeto estar pronto, ele acaba custando três ou quatro vezes mais. Assim foi com a construção das hidrelétricas de Itaipu, Tucuruí, Sobradinho e outras.

Então: vai beneficiar a quem?

A transposição se baseia em um modelo que prioriza o agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, apontando para ações de privatização e comercialização da água.

Mesmo sabendo de todos os possíveis e irreversíveis impactos sócio-ambientais, este governo fez a clara opção de atender aos interesses do grande capital - da grande indústria, como a de ferro e cimento, das empreiteiras, das corporações técnicas, do agronegócio, do hidronegócio, da carcinicultura e das novas oligarquias, os reais beneficiados. Como se já não bastassem os inúmeros outros mega-projetos de infra-estrutura, que continuam sendo tarefa do Estado, a despeito do discurso neoliberal de primazia da livre-iniciativa. Este projeto aumentará a concentração de renda e a desigualdade social, além de transformar a água em mercadoria, a ser vendida através de leilões, um dos mais rentáveis negócios contemporâneos, que neste caso vai se estabelecer com a CHESF / Águas, empresa criada para gerenciar as águas transpostas. Apenas 26 m3/s serão para “matar a sede”, mas o projeto está dimensionado para muito mais.

Alternativas

As soluções para o semi-árido e suas secas cíclicas e previsíveis não dependem de grandes projetos. Dependem do aproveitamento dos mananciais existentes e suficientes (de chuva, superfície, solo e subsolo), de uma gestão competente e democrática das águas acumuladas e de um verdadeiro Programa de Desenvolvimento Integrado Sustentável e Solidário que considere formas alternativas, eficientes e mais baratas de acesso a água, em conformidade com a grande variedade de situações geo-climáticas do semi-árido.

As redes de organizações e movimentos sociais da sociedade civil abaixo-assinadas exigem:

1. Quanto ao Projeto de Transposição

1.1 - Que o governo federal paralise imediatamente o andamento do projeto de transposição do Rio São Francisco;

1.2 - Que a revitalização da Bacia do São Francisco seja definida como prioridade de governo;

1.3 - Que o povo do semi-árido, as populações ribeirinhas e as organizações sociais e profissionais que trabalham com e/ou estudam o tema sejam ouvidos e respeitados, fazendo, assim, parte do processo de decisão sobre do projeto;

1.4 - Que um amplo e transparente debate sobre a transposição do Rio São Francisco e seus impactos seja realizado em todo o país, com efetiva participação de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, comunidade acadêmica e das populações a serem atingidas pelo projeto. Queremos e temos o direito de saber os verdadeiros custos do projeto “irrigação-indústria-carcinicultura”. Quanto vai custar a água de irrigação? Quanto vai ser a produção? Quem vai produzir? O quê? Para quê? A que custo? Quem vai pagar?

2. Quanto à sustentabilidade hídrica do semi-árido brasileiro

2.1. Construir malhas de distribuição sustentável das águas estocadas nos açudes do Nordeste Sententrional e das águas da Bacia do São Francisco, para abastecer a população realmente necessitada de água para consumo humano e dessedentação animal, porque tanto uma como outra região padecem da mesma necessidade;

2.2. Implementar o uso sustentável das águas subterrâneas no semi-árido;

2.3. Implementar uma minuciosa política de captação da água de chuva, baseada nas tecnologias sociais de eficácia comprovada, para consumo humano e para produção agro-pecuária;

2.4. Por fim, não basta água, é preciso terra. É condição incontornável implementar uma reforma agrária inteligente e apropriada às condições do semi-árido.

A quem vai servir, e a que custo social e ambiental, a transposição das águas do Rio São Francisco? Essa é uma pergunta indispensável e se o governo de Vossa Excelência a fizesse, honestamente, paralisaria já esse projeto! Essa atitude pode ser a oportunidade para o Governo Lula recuperar sua identidade e resgatar a autêntica esperança que acendeu no coração do povo brasileiro ao ser eleito.

Águas para a vida e não para a morte!

Brasília, 26 de outubro de 2005.

Entidades Assinantes:

ABRANDH - Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos
ADITAL - Agência de Informação Tito de Alencar para América Latina;
AMB - Articulação de Mulheres Brasileiras
ANOTE - Agência de Notícias Esperança
CAMIC - Centro de Atendimento dos Migrantes e Indígenas da Cidade - Roraima
Campanha Brasileira Contra a ALCA
Campanha pela Auditoria da Dívida Externa
Caritas Brasileira
Casa da Mulher 8 de Março - Tocantins
CBJP - Comissão Brasileira de Justiça e Paz
CDDH - Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Roraima
CEBs - Comunidades Eclesiais de Base
CERIS - Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais
CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
CMP - Central de Movimentos Populares
CMP - SE
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNL - Conselho Nacional de Leigos
CONIC - Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
CPT - Comissão Pastoral da Terra
CRB - Conferência dos Religiosos do Brasil
ESPLAR - Centro de Pesquisa e Assessoria
FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FASUBRA
Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul
Federação Nacional dos Metalúrgicos
FENAJUFE
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS)
Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN)
Fórum da Amazônia Oriental (FAOR)
Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH)
Fórum de Mulheres de Santa Catarina
Fórum dos Movimentos Sociais de Blumenau - SC
Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo
Fórum Permanente em Defesa do São Francisco - Bahia
Fundação Águas do Piauí (FUNAGUAS)
GEJA - Grupo Especial de Jovens e de Adolescentes - Acre
Grito dos Excluídos / Continental
Grito dos Excluídos / Nacional
Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)
IBRADES - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social
Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS)
JOC Brasil - Juventude Operária Católica
MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens
Marcha Mundial das Mulheres
MNDH - Movimento Nacional dos Direitos Humanos
MOPS/SE
Movimento Consulta Popular
Movimento Nós Existimos - Roraima
MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Mutirão de Superação da Miséria e da Fome da CNBB
PACS - Políticas Alternativas para o Cone Sul
Pastoral Afro-Brasileira
Pastoral Carcerária
Pastoral da AIDS
Pastoral da Criança
Pastoral da Juventude do Brasil
Pastoral da Mobilidade Humana
Pastoral da Mulher Marginalizada
Pastoral da Pessoa Idosa
Pastoral da Saúde
Pastoral da Sobriedade
Pastoral do Menor
Pastoral do Povo de Rua
Pastoral dos Nômades
Pastoral dos Pescadores
Pastoral Indígena da Cidade - Roraima
Pastoral Operária Nacional
Pastoral Social da CNBB
Pastorais Sociais - Regional Santa Catarina
Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais
Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH)
Rede de Informações do Terceiro Setor (RITS)
Rede Economia e Feminismo
Rede Jubileu Sul/Brasil
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
SPM - Serviço Pastoral do Migrante
Sindicato dos Advogados de São Paulo
Sindicato dos Bancários de Blumenau - SC
Secretaria de Relações Internacionais da CUT
Unafisco - Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal
UNAFISCO / Sindical - SP
UNE - União Nacional dos Estudantes
União Brasileira de Mulheres - Núcleo Chapecó/SC

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