Brasil: O que há entre o domínio da terra e o genocídio indígena?
A expulsão dos povos nativos de suas terras para posterior distribuição a indivíduos não-indígenas responde a uma lógica do uso da terra para exploração, especialmente por meio da produção agrícola.
22 de junho de 2016
Do IHU Online
"O que se passa no Mato Grosso do Sul é mais do que uma simples defesa da propriedade privada pelos produtores rurais que será exitosa com a morte do índio x ou y. Ou de mais uma demonstração de incompetência do Estado em relação a questões de segurança pública. É uma tentativa de extermínio do povo Guarani e Kaiowá que se tornou um excedente no seu próprio território nativo".
O alerta é de Fernanda Frizzo Bragato, doutora em Direito, pós-doutora pela University of London, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Direito da Unisinos e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos na Unisinos, em artigo publicado por Empório do Direito.
Eis o artigo:
O Estado do Mato Grosso do Sul foi palco, na última terça-feira, 14 de junho, de mais um ataque de pistoleiros armados contra a comunidade Guarani e Kaiowa da terra indígena Dourados-Amambai Peguá, município de Caarapó. De acordo com notícia veiculada no website do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)[1], um brutal ataque de fazendeiros deixou morto o Kaiowá e agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, 23 anos.
No ataque, que durou 4 horas, outros seis indígenas foram feridos por armas de fogo e encaminhados ao hospital. Outras seis pessoas – entre elas, uma criança de 12 anos – estão internadas no hospital. Cinco delas estão em situação grave, com tiros no coração, cabeça, tórax e abdômen. O massacre foi uma resposta à retomada realizada pelos Kaiowás na fazenda Yvu, vizinha à reserva de Te’yikue e incidente sobre a terra indígena em processo de demarcação pelo Ministério da Justiça (MJ).
Retomadas de terras reivindicadas pelos Guaranis e Kaiowas no Mato Grosso do Sul como tradicionalmente ocupadas, por força do art. 231, da Constituição de 1988[2], têm sido uma estratégia utilizada por este povo para reaver aquelas que, no período de 1940-80, lhes foram sistematicamente espoliadas em benefício de indivíduos brancos. Trata-se, também, de uma forma de pressionar o governo federal para que proceda à demarcação de suas terras, providência que deveria ter sido concluída até cinco anos após a promulgação da Constituição, conforme art. 67 do ADCT.
O CIMI estima que, além das 30 terras indígenas Guarani e Kaiowá naquele Estado em algum estágio do processo demarcatório (identificação, declaração, demarcação e regularização), ainda há cerca de 25 acampamentos aguardando que a FUNAI dê início aos estudos que ainda resultarão na abertura de processos de demarcação. Em geral, o cenário é de intensa instabilidade, havendo poucas áreas já regularizadas e livres de tensão entre indígenas e fazendeiros.
O recente ataque na Terra Dourados-Amambai Peguá não é um fato isolado no Mato Grosso do Sul, mas tem-se caracterizado como uma ação constante de grupos armados que, a mando de fazendeiros, respondem às retomadas das terras com ofensivas que resultam na morte e na lesão de indígenas e na destruição total ou parcial de seus acampamentos. As forças de segurança do Estado, mesmo cientes do fato, pouco fazem para prevenir ou reprimir os ataques e as tentativas de solucionar o problema das demarcações pouco avançaram nos últimos anos, levando ao acirramento do quadro de violência.
A expulsão dos povos nativos de suas terras para posterior distribuição a indivíduos não-indígenas responde a uma lógica do uso da terra para exploração, especialmente por meio da produção agrícola. Trata-se de uma lógica quase sagrada da cultura ocidental, assumida pelos Estados como um propósito legítimo de suas políticas públicas de ocupação e uso da terra. Por isso, a íntima relação do Estado com a espoliação das terras indígenas em passado remoto (na medida em que foi o agente de tais políticas) e a explicação para sua atual leniência no que concerne à prevenção e à repressão dos atos criminosos de fazendeiros a pretexto do legítimo direito de defesa de suas propriedades.
A tradição filosófica do Ocidente sempre legitimou o domínio dos bens apelando ao uso da razão, ao passo que estabeleceu a hierarquia entre os seres mais perfeitos e os menos perfeitos. Dizia Tomás de Aquino: “o homem tem o domínio natural sobre as coisas exteriores. Pois, pela razão e pela vontade, pode delas usar para sua utilidade, como se para ele fossem feitas. Pois sempre os seres menos perfeitos existem para os mais perfeitos, como já foi demonstrado. […] E tal domínio natural sobre as outras criaturas compete ao homem, porque é dotado de razão, na qual consiste a imagem de Deus.
Ele se manifesta na sua criação mesma quando Deus diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que domine sobre os peixes do mar…”[3]. Ou seja, além de o homem, indivíduo racional, encontrar-se acima de todos os demais seres da criação, a sua perfeição reside no uso da razão, o que permite hierarquizar, mesmo dentro da espécie humana, os mais e os menos racionais, sendo os últimos aqueles que se encontram mais próximos dos animais e da natureza dominável. Para estes a posse das coisas não é natural. Como seres inferiores, que não sabem fazer uso racional das coisas porque lhes falta agência e autonomia, justifica-se a tutela.
Alguns séculos mais tarde, os europeus encontrar-se-iam justamente com o exemplo mais bem acabado de seres imperfeitos que desconhecem qualquer tipo de relação racional com a terra e os bens: os povos nativos da então descoberta América. E é assim até hoje. Guardadas as devidas diferenças que caracterizam, somente no Brasil, as aproximadamente 300 diferentes etnias, os povos indígenas concebem e estabelecem a sua relação com a terra de forma profundamente diversa daquele que nós, povos ocidentais, estabelecemos. Veem-se como parte dela, não a usam com fins de exploração econômica.
A terra é a base física de seus territórios, espaço imprescindível para o desenvolvimento de seu modo de vida. Essa forma de relação dos indígenas com a terra é inaceitável para os padrões ocidentais que veem nela tão-somente um recurso econômico, algo do qual nos apossamos para extrair o máximo de riquezas que possa nos fornecer.
O problema de reconhecer as terras aos Guaranis e Kaiowas no Mato Grosso do Sul (e, de resto, aos demais povos indígenas) não é uma questão meramente jurídica que se resolva nos termos do Direito Civil tradicional, em que o título de propriedade devidamente registrado no Cartório de Registro de Imóveis possa se opor ao direito originário dos índios. Todos nós sabemos que a ocupação tradicional concede uma espécie de direito congênito dos povos indígenas a suas terras e, portanto, títulos de propriedade formal são insubsistentes, não têm valor, mesmo que adquiridos de boa-fé[4].
O problema é mesmo ideológico. É um embate entre duas visões de mundo. Uma dominante (sobretudo encarnada nas normas do Direito Civil) e outra marginal e desprestigiada pelo mais convicto e remoto arsenal ideológico da cultura ocidental (mas reconhecida pela Constituição de 1988 desde que a PEC 215 não a desmantele): o de que a posse natural sobre as coisas só se reconhece a quem – pela sua superioridade – saiba fazer uso racional delas. Portanto, devolver terras aos índios torna-se um problema político que, em última análise e mesmo sem estudos aprofundados de que isso possa realmente acontecer, é entendido como um entrave ao desenvolvimento do Estado.
Ocorre que a resistência dos povos nativos da América a esta visão de mundo é histórica. Passados quinhentos anos, eles ainda resistem, já perceberam isto? E resistem a despeito de basicamente dois violentos processos: a assimilação e o extermínio. Como desproporcionalmente mais fortes e poderosos e a pretexto de impormos nossa justa e correta visão de mundo, temos sido responsáveis por um brutal derramamento de sangue. Há alguns anos que, no Mato Grosso do Sul, são assassinados centenas de indígenas em ataques armados de “produtores rurais” considerados, no imaginário social, como legítimos homens de bem.
Essa guerra político-ideológica resultou em um cenário que configura, no mínimo, um conjunto de inúmeros indicadores de risco para um gravíssimo[5] crime contra a humanidade, que é o genocídio. Se é que já não estamos diante de um. Não falo isso de forma meramente retórica, mas com base no recente “Quadro de Análise para Crimes de Atrocidade: uma Ferramenta para Prevenção”[6], elaborado em 2014 pelas Nações Unidas como forma de auxiliar os Estados a efetivarem seu compromisso primário com a responsabilidade de proteger (R2P) suas populações contra crimes de atrocidade (assim considerados o genocídio (Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 1948), crimes de guerra (Estatuto de Roma), crimes contra a humanidade (Estatuto de Roma) e limpeza étnica).
Trata-se de uma ferramenta que permite aos Estados agirem preventivamente para proteger suas populações vulneráveis quando constatados fatores de risco presentes neste documento. O que as autoridades brasileiras ignoram, podendo levar a uma atuação das Nações Unidas em relação ao caso, especialmente porque o Escritório de Prevenção de Genocídio e de Responsabilidade de Proteger é ligado ao Conselho de Segurança e a ocorrência de crimes de atrocidades, após falhar a prevenção e a cooperação internacional, é justificação para intervenção humanitária.
No caso dos Guaranis e Kaiowás no Mato Grosso do Sul, são inúmeros os fatores de risco para genocídio já mapeados, a saber: atos passados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou sua incitação; relutância ou recusa em usar todos os meios possíveis para cessar graves violações de direitos humanos; desconfiança generalizada nas instituições do estado ou entre diferentes grupos como resultado da impunidade (são poucos os casos de punição dos perpetradores dos ataques); marco jurídico nacional que não oferece uma proteção ampla e eficaz (caso da recente consolidação da tese do marco temporal no STF, que levará à anulação, no Judiciário, de diversas demarcações já realizadas); recente adoção de medidas legislativas que afetam ou deliberadamente os discriminam (como é o caso da PEC 215); crescente retórica inflamada, campanhas midiáticas ou discursos de ódio atingindo grupos protegidos, populações ou indivíduos (exemplos são os discursos de incitação à violência de alguns deputados federais em suas bases eleitorais[7]); ataques contra a vida, a integridade física, a liberdade ou a segurança dos líderes, indivíduos proeminentes ou membros de grupos de oposição; entre outros.
O fato de que as disputas territoriais indígenas envolvam um embate ideológico é confirmado pelo seu desfecho como crime ou risco de crime de genocídio, em relação ao qual faltou uma última palavra. O genocídio é um crime que não se configura simplesmente como um assassinato coletivo. Configura-se, inclusive, sem a ocorrência de morte. Um genocídio ocorre quando diferentes atos (assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro grupo) são cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso[8].
O genocídio visa exterminar uma identidade coletiva, mesmo que seus membros permaneçam vivos, mas desde que alheios às diferenças e peculiaridades que os caracterizam. São grupos indesejáveis que desafiam, com sua cultura diferenciada, um conjunto de valores estabelecidos, levando ao ato irracional do extermínio. Daí os discursos de ódio figurarem, em duas oportunidades, como fatores de risco no quadro de análise supramencionado.
O que se passa no Mato Grosso do Sul é mais do que uma simples defesa da propriedade privada pelos produtores rurais que será exitosa com a morte do índio x ou y. Ou de mais uma demonstração de incompetência do Estado em relação a questões de segurança pública. É uma tentativa de extermínio do povo Guarani e Kaiowá que se tornou um excedente no seu próprio território nativo.
Notas e Referências:
[1] Conselho Indigenista Missionário - CIMI
[2] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
[3] Suma Teológica, II, 2, qu. 66, 1.
[4] STF – Tribunal Pleno. Acórdão do RExt 44.585 (1961) – MT, Min. Victor Nunes Leal.
[5] O uso do vocábulo gravíssimo neste caso é apenas retórico. Qualquer crime contra a humanidade é gravíssimo.
[6] Nações Unidas
[7] G1. Em vídeo, deputado diz que índios, gays e quilombolas ‘não prestam’.
[8] Convenção da ONU para prevenir e reprimir o crime de genocídio de 1948.
Fuente: MST