Brasil: Carta de Porteirinha: I Encontro Norte Mineiro de Agrobiodiversidade

"Após o intercâmbio, oficinas, discussão em plenária e visitas a comunidades tradicionais, acampamentos e áreas de assentamentos de reforma agrária, reafirmamos a riqueza cultural regional fruto de uma ampla articulação das diversidades de seus modos de vida e de integração com a natureza em suas expressões regionais frente à sua desvalorização a partir da introdução do modo de produção capitalista centralizador e concentrador dos meios de produção e excluidor de amplas parcelas da população dos benefícios gerados pela sociedade conduzindo-as à uma condição de vida não condizente com a dignidade humana"

Companheiros e Companheiras,

Entre os dias 27 e 30 de abril, o povo indigena, quilombolas, geraizeiros, caatingueiros, sem-terras e sem-água, agricultores e agricultoras, estiveram reunidos em Porteirinha, numa grande articulação em defesa de toda a diversidade de culturas, povos, cultivos, intervenções sociais e políticas do sertão norte mineiro. Foi o I Encontro Norte Mineiro de Agrobiodiversidade: "Valorizando seus Guardiões" e a Feira da Agrobiodiversidade. Visitas, oficinas e debates, envolveram os cerca de 300 participantes dos eventos. A síntese de todas as discussões e propostas levantadas, encontra-se em anexo, na Carta de Porteirinha, com atenção para a VIOLENTA AGRESSÃO sofrida pelos povos do Norte de Minas, nas ações de luta e resistência na região. Pedimos que repassem a todas as redes e contatos possíveis, para que esse grito ecoe a todos os cantos do país. Revigorados pela força da articulação popular e cheios de esperança, no caminho da transformação, despedimos com um abraço fraterno.

Anilde Dias de Paula
P/ Organização do Evento

I ENCONTRO NORTE MINEIRO DE AGROBIODIVERSIDADE:
VALORIZANDO SEUS GUARDIÕES CARTA DE PORTEIRINHA

Nós, membros de 37 municípios e comunidades norte mineiras, Guardiãs da Agrobiodiversidade do Cerrado e da Caatinga, 300 participantes do I Encontro Norte Mineiro de Agrobiodiversidade e entidades de apoio à suas lutas, reunidos em Porteirinha entre os dias 27 e 30 de abril de 2005, após o intercâmbio, oficinas, discussão em plenária e visitas a comunidades tradicionais, acampamentos e áreas de assentamentos de reforma agrária, reafirmamos a riqueza cultural regional fruto de uma ampla articulação das diversidades de seus modos de vida e de integração com a natureza em suas expressões regionais – cerrado e caatinga – frente à sua desvalorização a partir da introdução do modo de produção capitalista centralizador e concentrador dos meios de produção e excluidor de amplas parcelas da população dos benefícios gerados pela sociedade conduzindo-as à uma condição de vida não condizente com a dignidade humana. Também reafirmamos os direitos inerentes à vida, em todos os seus aspectos, culturais, sociais, políticos, ambientais e econômicos e nos posicionamos para continuarmos a luta, a defesa e a conquista desses direitos. Reafirmamos, ainda, que se constituem como defensores da singularidade cultural regional em suas diversas formas de expressão, ou seja, como sertanejos, geraizeiros, Xakriabá, quilombolas, caatingueiros, barranqueiros, vazanteiros e trabalhadores sem terra e sem água, no conjunto da humanidade.

Uma questão é comum a todas as comunidades presentes, A VIOLENTA AGRESSÃO a que têm sido submetidos os seus membros diante dos processos de territorialidade de cada uma dessas comunidades. Diante da constatação dessa realidade ultrajante, porque submete cidadãos à perda de direitos, da terra, da condição de reprodução material e social, bem como da riqueza cultural vivida, denunciamos:

- A empresa de reflorestamento ITALMAGNÉSIO e seu proprietário de origem italiana, senhor Tricanato, na região do Alto Rio Pardo de Minas pela ampliação indiscriminada do plantio de eucalipto destruindo o Cerrado, em regeneração, usado pelos membros das comunidades em suas estratégias de reprodução, pela apropriação de terras públicas inviabilizando a utilização coletiva e a preservação da agrobiodiversidade tradicionalmente manejada pelos geraizeiros dessa área, lavagem de notas fiscais para escoamento de carvão nativo como carvão de eucalipto, a cooptação a Justiça local pela empresa que tem sistematicamente perseguido os membros das comunidades de Mocambo e Bom Jesus em seus conflitos jurídicos contra a referida empresa e pela implantação de uma indústria de álcool e cachaça sem possuir nenhum pé de cana plantado, colocando em risco as fabriquetas da tradicional pinga norte mineira e a possibilidade de reprodução de vida material e social das comunidades dessa micro-região;

- O cercamento do território ancestral da Comunidade Quilombola de Brejo Grande, no município de Indaiabira, por advogado belohorizontino, Pedro Henrique Costa, que visa especular imobiliariamente com a terra que constitucionalmente deveria permanecer, como patrimônio da nação brasileira, em mãos dos quilombolas, bem como, pelo trabalho escravo forçado a que os legítimos donos da terra são submetidos;

- As ameaças e violências que os quilombolas de Brejo dos Crioulos e d´Os Gurutubanos têm sofrido por parte de especuladores imobiliário que se dizem fazendeiros desde que retomaram parcelas do território de acordo com o Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e com a decisão da Justiça de que a propriedade da terra seja comprovada com título legal;

- As contínuas ameaças e perseguições políticas das lideranças das comunidades e membros das entidades comunitárias e sociais, militantes de movimentos de luta pela terra gerada pelas empresas de monocultura de eucalipto, representantes e empregados de empresas vinculadas ao agronegócio;

- A articulação dos prefeitos de Alto Rio Pardo de Minas com o Governador do Estado de Minas Gerais para a expropiação de 750 famílias de geraizeiros dos municípios de Berizal, Indaiabira, Rio Pardo de Minas, São João do Paraíso, Taiobeiras e Vargem Grande de Minas para a implantação da barragem de Berizal;

- As tentativas de maquiagem dos impactos sociais e ambientais promovidos pela monocultura do eucalipto através da certificação florestal como as que vem ocorrendo com a PLANTAR, VM Florestal, Gerdau, inclusive se habilitando projetos subsidiados pelo “Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – créditos de carbono”;

- A carência de políticas públicas sociais de prefeituras municipais que impossibilitam o desenvolvimento sustentável das comunidades e favorecem a concentração de renda e de poder em mãos de aliados políticos;

- O descaso e morosidade do aparelhamento estatal, federal e estadual, para a resolução dos conflitos agrários e para a implantação da reforma agrária no norte de Minas, como o caso, dentre outros, do acampamento Alvorada em Pintópolis que aí se encontra instalado desde 2001;

- A truculência na ação da Polícia Militar, por ocasião do despejo de camponeses do MST, no acampamento de Eldorado dos Carajás em Uberlândia, e o descaso e conivência do poder judiciário que concedeu hábeas corpus ao fazendeiro Adriano Chafik, comandante da chacina no acampamento Terra Prometida em Felizburgo em 20 de novembro de 2004.

Durante estes três dias vimos que a (agro)biodiversidade presente nos sistemas culturais de produção, tradicionais e agroeocológicos, encontram-se sob ameaça pela expansão do agronegócio da monocultura de eucalipto e da criação do gado bovino que pretende atingir todos os rincões do sertão norte mineiro. Remanescentes de cerrado e caatinga onde vivem estas populações estão sendo postos a chão e transformados em carvão; as águas estão sendo represadas ou sendo utilizadas intensivamente pela irrigação, contaminando, secando rios e nascentes e expulsando milhares de famílias de camponeses; as seguidas tentativas de comercialização de nossos produtos culturais como o queijo, requeijão, farinha, goma, aguardente em outros centros urbanos como São Paulo e Belo Horizonte são implacavelmente perseguidos pelos órgãos da fazenda estadual e federal, pelos órgãos de defesa sanitária, pela polícia rodoviária, que apreendem os ônibus, taxam de forma abusiva e classificam pejorativamente nossos produtos como clandestinos.

Vimos também uma riqueza de experiências e de ações concretas que estão sendo conduzidas pelas nossas comunidades, pelas nossas organizações, que estão estimulando a preservação e o uso sustentável da (agro)biodiversidade, dos recursos hídricos, no acesso ao mercado, na alimentação saudável, na medicina preventiva e popular, no acesso à terra e conquista de territórios expropriados pelos fazendeiros e empresas reflorestadoras, sinalizando que outro modo de produção e de vida é possível com a garantia da segurança alimentar e da reprodução material e social de nossas comunidades, nos levando a reivindicar aos poderes públicos municipais, estadual e federal as propostas que apresentamos a seguir:

Movimento dos Encurralados pela Monocultura do Eucalipto

- Suspender o avanço da monocultura do eucalipto e promover a reconversão agroextrativista dos terrenos devolutos que foram arrendados de forma criminosa pelo Governo do Estado de Minas Gerais aos grandes grupos econômicos associados ao carvão e celulose, transformando estas áreas em unidades de conservação de uso sustentável e beneficiando as famílias geraizeiras sem terra ou com pouca terra que vivem em seu redor;

- Penalizar imediatamente as empresas reflorestadoras responsáveis por crimes ambientais e sociais no sentido de reparar os danos provocados e introduzir medidas de conservação dos solos, das águas e da vegetação nativa;

- Suspender o fornecimento de crédito público destinado ao fomento da monocultura do eucalipto, entre eles o do PRONAF Florestal, que estão sendo estimulados pela EMATER, IEF, Banco do Nordeste e Bando do Brasil com aquiescência da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente;

Movimento pela Reapropriação de Territórios dos Quilombolas do Norte de Minas Gerais

- Promover a identificação, o reconhecimento e demarcação de territórios de dezenas de comunidades quilombolas que vivem nas regiões da baixada sanfransciscana e nas áreas de gerais no Norte de Minas;

- Promover a desapropriação imediata das fazendas que estão no interior dos territórios das comunidades quilombolas de Brejo dos Crioulos e d’Os Gurutubanos;

- Promover ações imediatas de políticas afirmativas que garantam os direitos humanos básicos como o acesso a água, energia, alimentação, educação diferenciada, infraestrutura social e produtiva;

Movimento de Luta pela Terra

- Destinar recursos para a Reforma Agrária agilizando os processos de desapropriação e implantação de assentamentos rurais, beneficiando imediatamente as cerca de 5.000 famílias de sem terra acampadas no Norte de Minas;

- Destinar recursos para dotação de infra-estruturas sociais (entre eles o de abastecimento de água nas parcelas familiares), créditos produtivos e contratação de assistência técnica e social para todos os assentamentos de reforma agrária do Norte de Minas;

Movimento Indígena

- Ampliar o Território do Povo Xacriaba, incorporando todas as famílias dos desaldeados;

- Implantação do ensino superior indígena e garantir reserva de vagas e condições de estudo nas universidades da região, entre elas da UFMG/ICA e UNIMONTES;

- Garantir o acesso a projetos de promoção social, cultural, ambiental e da segurança alimentar que beneficiem a comunidade Xacriaba como um todo;

Agricultura Familiar, Agroecologia e Segurança Alimentar

- Reconhecer a diversidade cultural que constitui a agricultura camponesa e indígena, valorizando os seus saberes, os seus produtos culturais, suas estratégias agroalimentares, contextualizando a educação escolar, os programas de acompanhamento técnico e de segurança alimentar;

- Fortalecer o processo de valorização de nossas sementes e mudas apoiando o processo de melhoramento participativo e de intercâmbio entre as comunidades de agricultores e populações tradicionais, com a revisão da legislação que permitiu a legalização de uma forma vergonhosa das sementes transgênicas;

- Promover o desenvolvimento da agroecologia nas unidades de ensino e pesquisa, na UFMG, UNIMONTES, EPAMIG e EMBRAPA, inserindo os movimentos sociais e ONG´s em seus projetos e programas;

- Apoiar ações que dêem visibilidade às experiências, garantindo recursos para visitas e intercâmbio de experiências entre as comunidades, assentamentos, estudantes, professores e técnicos de instituições governamentais e não governamentais;

- Apoiar o desenvolvimento de programas de convivência com o semi-árido envolvendo organizações dos agricultores familiares, ONG’s e instituições de pesquisa e de ensino;

- Desburocratizar o acesso aos créditos com o financiamento de projetos que atendam a demanda das famílias de agricultores e agricultoras;

- Promover o desenvolvimento e aprimoramento de experiências de uso sustentável da biodiversidade (frutos do cerrado e caatinga, plantas medicinais e oleíferas),

- Promover o aprimoramento da produção artesanal garantindo a qualidade e mantendo as suas características culturais, adequando a legislação sanitária e fiscal e viabilizando o acesso aos mercados locais e dos centros urbanos;

- Apoiar programas populares de saúde valorizando a utilização de plantas medicinais, a alimentação sertaneja, e estimulando a criação de farmácias vivas;

- Que a Segurança Alimentar e Nutricional se constitua como uma política publica e permanente e unificada, e que não fique a mercê de vontades políticas do poder executivo a exemplo do que vem acontecendo com o PSA e PROSAN ou com ações pouco transparentes como vem ocorrendo com o Minas Sem Fome gerido pela EMATER.

- Que o programa de Segurança Alimentar da CONAB seja fortalecido e ampliados.

Sobre a Revitalização do rio São Francisco

- Que o projeto de transposição do rio São Francisco seja imediatamente cancelado por entendermos que o mesmo não resolverá os problemas reais de acesso à água da população nordestina, pelo contrário, atenderá aos interesses dos mesmos grupos que sempre se apropriaram das políticas públicas construídas para a região;

- Que a revitalização do rio São Francisco se apóie no investimento nas populações que aí vivem, construindo com elas os projetos que melhorem suas condições de vida e de manejo dos recursos, e que seja revisto o modo de ocupação e uso dos cerrados pelos conglomerados econômicos associados ao agronegócio como a soja, eucalipto, café e cana.

Porteirinha, 30 de abril de 2005

Assinam esta Carta:

ACEBEV – Associação Casa de Ervas Barranco da Esperança e Vida

CAA – Centro de Agricultura Alternativa

NASCer – Núcleo de Agricultura Sustentável do Cerrado

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

CARITAS Brasileira Regional Minas Gerais

CARITAS Diocesana de Januária

CÁRITAS Diocesana de Janauba

CÁRITAS Diocesana de Montes Claros

Prefeitura de Porteirinha

STRS:

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Varzelândia

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Taiobeiras

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bocaiúva

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Buritizeiro

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Joaquim Felício

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Montezuma

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Novo Horizonte

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São João do Paraíso

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Indaiabira

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Verdelândia

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ibiracatu

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lassance

POVO XACRIABA

ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLAS

Comunidades, acampamentos e assentamentos dos municípios de:

Porteirinha

Pai Pedro

Serranópolis de Minas

Jaíba

Riacho dos Machados

Grão Mogol

Montes Claros

Bocaiúva

Capitão Enéas

Pirapora

Buritizeiro

Joaquim Felício

São João da Ponte

Varzelândia

Ibiracatu

Rio Pardo de Minas

Indaiabira

Taiobeiras

São João do Paraíso

Montezuma

Januária

Itacarambi

Verdelândia

Pintópolis

Campo Azul

Guaraciama

Novo Horizonte

São Romão

Matias Cardoso

Manga

Juvenília

Montalvânia

Cônego Marinha

São Francisco

Vargem Grande do Rio Pardo

Governador Valadares

Lassance

Comentarios